Por David Pavón-Cuellar, via David Pavón-Cuellar blog, traduzido por Thales Fonseca, doutorando em psicologia pela UFSJ
Conferência organizada pelo Movimiento Freudomarxista na Facultad de Psicología da Universidad Autónoma de Nuevo León (UANL), em Monterrey, no dia 27 de setembro de 2018.
Jacques Lacan parece ter sido politicamente conservador. Seguramente não era comunista e nem sequer socialista. Zombou repetidamente dos intelectuais marxistas e dos militantes de esquerda. Em sua juventude, apresentou-se como partidário da monarquia e participou de reuniões de uma organização de extrema direita, Action française. Anos depois, em plena maturidade, admitiu ter votado em De Gaulle, à direita.
Ainda que direitista e hostil ao marxismo, Lacan sempre demonstrou grande interesse e admiração quase fervorosa por Marx. Não deixou de lê-lo e evocá-lo com paixão. É verdade que o criticou algumas vezes, porém foram mais as vezes em que lhe reconheceu grandes méritos, acertos e descobertas. Além disso, se aprofundou em muitas de suas ideias e por vezes o utilizou em sua interpretação do pensamento freudiano.
Marx não cessa de se encontrar com Freud nos escritos e no ensino oral de Lacan. Os encontros são tão freqüentes quanto consistentes, profundos e significativos, e às vezes dão lugar a estreitas relações que organizam internamente a teoria lacaniana. No entanto, por mais que Lacan invoque Marx, é óbvio que não lhe garante o mesmo lugar que Freud. Não adota sua perspectiva. Não se considera seu seguidor.
Lacan segue a Freud. É a ele a quem se vincula. Vê a si mesmo como um freudiano e não como um marxista e muito menos como um freudomarxista. Sua opinião sobre o freudomarxismo, aliás, não é nada positiva. Ele o descreve, para usar seus próprios termos, como um emaranhado inextrincável, como um embrouille sans issue, um “imbróglio sem saída” ou “sem solução”.
O emaranhado no freudomarxismo é, primeiramente, o freudiano e o marxista. As referências a Marx e a Freud começam enredando-se ao se relacionar umas com as outras. Logo esses imbróglios freudomarxistas acabam emaranhando-se inextrincavelmente entre si, nas polêmicas e tentativas de síntese que se dão no freudomarxismo.
Lembremos, rapidamente, o imbróglio inextrincável no qual participaram os freudomarxistas Siegfried Bernfeld, Wilhelm Reich e Otto Fenichel entre 1926 e 1935. Bernfeld recorreu às pulsões abordadas pela psicanálise para explicar o funcionamento da economia estudada no marxismo, o que lhe custou o questionamento de Wilhelm Reich, que preferiu explicar o psíquico de Freud através do econômico de Marx, isto é, nos termos do próprio Reich, explicar o psíquico e sua repressão a partir do enraizamento ideológico no capitalismo com sua lógica de exploração. Como vemos, nesta polêmica bastante emaranhada, Reich propôs exatamente o contrário que Bernfeld. Porém, como que pressentindo que Bernfeld tinha um pouco de razão, Reich também retomou o esquema bernfeldiano, procurando sintetizá-lo dialeticamente com o seu ao afirmar, de maneira ainda mais emaranhada, que o psiquismo possui um “substrato econômico”, assim como a economia tem uma “estrutura psíquica” pulsional. Em outras palavras, segundo Reich, Freud se ocupou da estrutura do que foi estudado por Marx, enquanto que Marx estudou o substrato do que foi analisado por Freud.
O emaranhado se agravou ainda mais até se tornar, aí sim, completamente inextrincável, quando Fenichel entrou em cena, movido pelo desejo de reconciliar Bernfeld e Reich através de uma síntese dialética semelhante à reichiana de substrato/estrutura. O caso é que Fenichel considerou que Reich tem razão no que se refere ao mundo interior, enquanto que Bernfeld acerta quando se trata do mundo exterior. Com efeito, na sociedade o que foi estudado por Marx seria o fundamento determinante do que foi estudado por Freud, enquanto que no psiquismo sucederia o contrário: os fatores psíquicos dos quais se ocupa Freud seriam o fundamento determinante dos fatores econômicos aos quais se refere Marx. Em termos marxistas, a base interna, psíquica, seria a superestrutura externa, enquanto a base externa, econômica, seria a superestrutura interna.
É verdade que os esforços de síntese dialética de Reich e Fenichel parecem merecer a descrição de imbróglio inextrincável que encontramos em Lacan. No entanto, ainda que admitindo isso, é preciso observar que tal emaranhado acaba por desafiar a tradicional separação dualista interior/exterior e por expressar uma espécie de monismo, uma continuidade invertida entre o exterior e o interior, entre o campo de Marx e o de Freud, que o próprio Lacan buscará captar posteriormente, trinta ou quarenta anos depois, através da banda ou fita de Moebius, da garrafa de Klein e de outras figuras topológicas. Em tais figuras, como nos emaranhados freudomarxistas de Fenichel e Reich, o fora continua de maneira invertida no dentro. A dialética envolve uma forma topológica.
A topologia lacaniana permitiria, então, representar de maneira clara e distinta o que só pode aparecer inextrincavelmente emaranhado no discurso dialético de Reich e Fenichel, porém também do próprio Lacan, pelo menos quando ele tenta descrever com palavras as figuras topológicas. É como se o nosso discurso fosse intrinsecamente dualista e resistisse a manifestar uma realidade como a suposta pelo monismo. Desse modo, deveríamos levar a sério o imbróglio inextrincável do freudomarxismo, visto que ele não seria falso em si mesmo, mas revelaria a verdade de maneira inadequada, ou, talvez, nem sequer inadequada, mas tão somente intrincada, enigmática, pouco evidente, um tanto difícil de perceber. A verdade se desvelaria, então, no freudomarxismo, da única forma em que pode chegar a se desvelar para Lacan: velando-se ao se desvelar e sem se desvelar completamente.
De que verdade falamos? Já disse: a do monismo. A verdade em questão é a que nega a distinção dualista entre interior e exterior, entre o psíquico e o econômico, entre o objeto de Freud e o de Marx. Um e outro objeto seriam exatamente o mesmo. Haveria uma identidade entre um e outro. É o que Lacan quer dizer quando fala da “homologia” entre seu mais-de-gozar, que é o mesmo de Freud, e a mais-valia de Marx. Dizer que esses objetos são homólogos, para Lacan, é admitir que não são “análogos”, semelhantes ou comparáveis, mas idênticos, não havendo entre eles mais que uma pura e simples “identidade”.
Admitindo que os objetos de Marx e Freud sejam exatamente o mesmo, entendemos porque um freudomarxista fica emaranhado ao tratar de relacioná-los. Como não se emaranhar ao tratar de relacionar o mesmo com o mesmo? A psicanálise e o marxismo não podem se relacionar entre si, já que são o mesmo. Ou, como disse Lacan ao se referir explicitamente aos discursos de Marx e Freud: estes discursos não devem “se colocar em acordo”, já que “são perfeitamente compatíveis, encaixando-se um ao outro”. Já encaixam. Portanto, não há necessidade alguma de acordo. Melhor não fazê-lo, pois é melhor não relacionar o mesmo com o mesmo, já que isso só serve para se emaranhar.
Emaranhar-se, porém, não é totalmente estéril. Às vezes permite desvelar a causa do emaranhado, isto é, a identidade profunda entre o marxismo e a psicanálise. Esse desvelamento foi alcançado por caminhos diferentes naqueles que precederam Lacan na identificação da coincidência entre o marxismo e a psicanálise, como Luria e Trotsky na União Soviética, ou mesmo Reich e Fenichel na Áustria e na Alemanha. Todos eles, cada um ao seu modo, vislumbraram que as perspectivas de Marx e Freud eram mais que simplesmente semelhantes ou convergentes, coincidindo absolutamente em seus aspectos materialista, dialético e histórico.
Acertando o alvo, Luria chegou inclusive a encontrar a mesma orientação monista no legado marxista e freudiano. Uma e outra, seguindo a superfície da fita de Moebius, desvelaram o interior no exterior e o exterior no interior. Isso é precisamente o que permitiria, em Luria, descobrir uma na outra. É o mesmo que os surrealistas Breton, Crevel e Tzara descreveram com outras palavras ao se referir à continuidade e aos vasos comunicantes ou capilares entre o interior e o exterior, entre os sonhos e a realidade, entre o campo freudiano e o marxista.
Sabemos que o ensino monista do surrealismo foi decisivo para Lacan que, seguindo a tradição inaugurada por aqueles que lhe precederam no freudomarxismo e em outros marxismos freudianos, também procurou enumerar os pontos nos quais os legados de Marx e Freud coincidem até se tornarem idênticos, homólogos, indiscerníveis. O primeiro ponto foi a “paixão de revelar” e seu objeto, “a verdade”, pelo qual Marx e Freud seriam igualmente insuperáveis, já que o verdadeiro é “sempre novo”. O segundo ponto de coincidência entre o marxismo e a psicanálise tem a ver também com a verdade: é a consideração do verdadeiro como algo sintomático, irregular, surpreendente, perturbador. O terceiro é a concepção materialista do “sujeito cósmico”, material, ininteligível, opaco. O quarto ponto foi o reconhecimento da estrutura latente, psíquica ou econômica, organizadora e constitutiva do que é manifesto. O quinto e último é a forma como os legados marxista e freudiano são transmitidos poeticamente, de modo tão real como simbólico, tão sexual como social, através do texto e de sua letra, de militâncias e transferências, de partidos comunistas e associações psicanalíticas.
Se Marx e Freud podem convergir, talvez seja por que se ocupam exatamente do mesmo. Seria então a identidade mesma do objeto que os faria coincidir nos pontos detectados por Lacan. Esses pontos de coincidência poderiam confirmar, em diversas esferas concretas, os efeitos do monismo que Luria postulou de modo um tanto abstrato.
É como se o postulado de Luria, apesar de sua abstração, tivesse sido a formulação mais explícita do que subjaz à identidade e à homologia entre Marx e Freud. Trata-se também de uma formulação que não indica seu objeto sem explicar-se a si mesma: nao é que Marx e Freud simplesmente coincidam em seu monismo, mas que esse monismo explica a coincidência mesma de um com o outro. Digamos que ambos descobriram a causa mesma de sua coincidência. Isso é crucial, porém certamente torna difícil o que Luria propõe. Sabemos, decerto, que sua proposta genial não foi de fato compreendida em seu tempo.
Conhecemos a crítica da qual Luria tornou-se merecedor em Voloshinov e, inclusive, em seu amigo Vygotsky. É o mesmo questionamento que foi dirigido aos freudomarxistas. A reprovação principal, aliás, coincide com a de Lacan. O problema de Luria é que ele faria um emaranhado entre o marxismo e a psicanálise. Procederia, pois, como um típico expoente do freudomarxismo.
Pode-se perguntar se Lacan chegou a se precaver de tudo o que estava em jogo no emaranhado freudomarxista e marxista-freudiano do entre-guerras. Penso que a resposta deve ser afirmativa. Inclusive, talvez ninguém tenha avaliado tão bem quanto Lacan sobre o que estava em jogo.
O monismo dos surrealistas, o mesmo pelo qual se explica o imbróglio freudomarxista, será profunda e amplamente desenvolvido por Lacan. Atravessará toda a sua teoria. Será compatível primeiro com seu espinozismo, em seguida com seu hegelianismo, depois com seu estruturalismo e finalmente com seu topologismo, se me permitem aplicar o sufixo “ismo” a sua topologia.
O monismo dos surrealistas e dos freudomarxistas será, paradoxalmente, uma das causas pelas quais Lacan parece tão enredado, tão inextrincavelmente emaranhado quanto àqueles a que tanto deve. A mesma perspectiva monista dará lugar a penetrantes conceituações lacanianas, entre elas, a exterioridade do inconsciente, a inexistência da metalinguagem e a extimidade a qual se designa a intimidade radicalmente exterior. Esses conceitos descrevem de maneira precisa e penetrante aquilo que Luria, os freudomarxistas e os surrealistas vislumbravam.
Sabemos que Jean Audard, poeta e crítico próximo ao surrealismo, atraiu a atenção do jovem Lacan ao publicar um texto assombroso em que propunha uma fundamentação freudiana do marxismo, semelhante a que Bernfeld havia elaborado pouco tempo antes na outra margem do Reno. Para Audard, o marxismo só poderia ser autenticamente materialista se reconhecesse que o fundamento do desenvolvimento das forças produtivas, a base da base das explicações marxistas, não estava unicamente nas ideias científicas e suas aplicações tecnológicas, mas nas pulsões e em sua materialidade corporal. Esse materialismo perfeitamente monista foi duramente criticado por Georges Politzer, que viu no escrito de Audard um exemplo maior do emaranhado freudomarxista. No entanto, muitos anos antes de julgar como emaranhado o freudomarxismo, o jovem Lacan se deixou deslumbrar pelo texto de Audard e quis conhecer pessoalmente o seu autor.
Impossível ter uma ideia clara do que Lacan assimilou de Audard. Tampouco sabemos com exatidão o que ele deve aos surrealistas em geral. O monismo vem deles e de sua especial articulação entre Marx e Freud, porém vem também de Marx e Freud, de Spinoza, e de Hegel, abordado na chave marxista e heideggeriana por Kojève.
Fato é que há coincidências entre Lacan e os diversos marxismos freudianos. Isso explica também a paixão de Lacan por Marx, assim como a orientação monista de sua teoria e o estilo emaranhado que a caracteriza. No seu aspecto estilístico, o emaranhado lacaniano lembra irresistivelmente a Crevel e a outros marxistas freudianos. É uma maneira de não ceder à tentação do dualismo, que é também, decerto, a tentação da facilidade.