Tropicália: O lixo e a lógica

Por Gabriel Varandas Lazzari

Tropicália ou Panis et Circencis1 (1968)2 é um dos discos mais conhecidos da música brasileira e foi fruto do “momento tropicalista”3, conjuntura artística que aconteceu no final dos anos 1960. Por conta de suas próprias características, o tropicalismo muito raramente é descrito como um movimento artístico propriamente dito: ele não define suas próprias fronteiras, não possui manifesto claro, não se admite como movimento. No entanto, é considerado por muitos como uma das mais notáveis expressões da arte nacional desde o modernismo dos anos 20, com o qual dialoga intensamente, sem, contudo, ser apenas uma releitura deste4. Um dos pontos fundamentais que diferem essas duas estéticas é motivado abertamente pelo contexto histórico-cultural que engloba o tropicalismo. No embate entre estéticas da virada dos anos 50 para os anos 60, entre as de aproximação popular, como as propostas pelo Centro Popular de Cultura da UNE, e as voltadas para um experimentalismo das linguagens, como os concretistas fizeram,5 surge, um pouco alheio a ambas, um pouco motivado por ambas, o movimento tropicalista, caracterizado por Roberto Schwarz como “uma variante brasileira e complexa do Pop”6.


Porém voltemos a 64.

Roberto Schwarz7

Mas voltamos aos anos 60.

Tom Zé8

Muito mais do que a simples “variante” que Schwarz propõe, o tropicalismo se inaugura como estética nova, de sobreposição de temas opostos, de justaposição de contrários irresolúveis, advindos da modernidade, de modernização arcaica e arcaização moderna, expondo nesse processo, muitas vezes grotescamente, seus próprios métodos de produção poética e de intersecção com a cultura vigente. Afinal, ainda que não totalmente dentro da redução de Schwarz, os tropicalistas tinham certamente um grande apelo dentro do mercado midiático e fonográfico, que era usado por eles para, no entanto, desconstruir toda forma de legitimidade desse mesmo mercado. Segundo Heloísa Buarque de Hollanda,

[s]eria, pois, numa dupla direção que se encaminharia o exercício (no interior do mercado, dos meios de comunicação) de uma consciência crítica do consumo e do espetáculo. De um lado, há, de fato, uma ocupação tática intencional de todos os canais possíveis de difusão em massa; acompanhada, simultaneamente, por outro lado, de um continuado tensionamento interno desses meios, e de formas diversas de exposição consciente, de dramatização mesma dessa ocupação.9

Assim, é referência constante, nas obras do momento, uma grande participação da indústria cultural e midiática no conteúdo poético, como o desejo em “cantar na televisão” do eu-lírico de Alegria, alegria [CV]10 ou a presença da “revista moralista” (em Parque Industrial [TZ]) que reafirma, contudo, o tradicional conteúdo de moralizar o comportamento feminino – colocado em figura sobre a figura midiática da “vedete” televisiva. Há, ainda, como elemento forte do tropicalismo, uma retomada do passado tradicional brasileiro (provável resquício da estética cepecista, da qual Torquato Neto, tropicalista, teve influências), como a referência aos “chapadões” e ao “luar do sertão”, em Tropicália [CV]. É precisamente nesse contexto, mais voltado para o embate entre tradição e modernidade, que está postado Tom Zé, um dos mais frutíferos compositores do tropicalismo, com grande participação no “disco-manifesto Tropicália [ou Panis et Circencis]”11, sendo Parque Industrial de sua autoria.

No ano de 2012, e, portanto, 45 anos depois do lançamento do principal álbum de música tropicalista, Tom Zé lançou um novo disco, chamado Tropicália lixo  lógico12, no qual retoma e revisita várias das questões apresentadas durante todo o “momento tropicalista”, inagurando uma “versão radical da Tropicália” que é “o choque entre uma mente pré-aristotélica e a terceira revolução industrial”13. No álbum, o compositor ressignifica, explica e expõe novas facetas do que ele mesmo e seu grupo colocaram no final dos anos 60. Uma análise apurada das retomadas pode revelar uma série de significados subjacentes à comparação das duas obras – comparação esta necessária, haja vista o título e as referências, explícitas ou implícitas, que enriquecem o debate em cima da pertinência contemporânea do tropicalismo, ainda tão presente atualmente.

Adiante, tenciono fazer uma análise que possa, de um lado, perceber e mapear como aparecem as muitas referências no álbum de 2012 ao “momento tropicalista”, e, de outro, entender qual conteúdo o compositor coloca sobre o tropicalismo, visando a uma explicação – um tanto racional, um tanto lúdica – dos motivos que levaram ao surgimento daquela confluência artística, que “se trata por Tropicália”.

O Lixo

O poderoso insumo do lixo lógico, esse sim, fez a Tropicália.

Tom Zé14

A produção tropicalista, fruto do “lixo” (como colocado por Tom Zé e que depois será analisado), é referência fundamental na construção poética do álbum. Ainda que de todas as músicas se possa depreender sentidos que vão ao encontro daqueles expostos e propostos pelo tropicalismo, há algumas que encerram em si uma matéria relativa ao contexto tropicalista, e não somente uma aproximação de conteúdos com aqueles trabalhados originalmente pelos compositores e artistas da época. Talvez o tema mais retomado no álbum seja a falta de ordem coesa entre as coisas, característica fundamental do tropicalismo. Assim, como indica Heloísa Buarque de Hollanda, “[o] fragmento, o mundo despedaçado e a descontinuidade marcam definitivamente a produção cultural e a experiência de vida […] dos integrantes do movimento tropicalista”15, e é esse descontrole das formas, marcado por uma “biografia da Tropicália […] que tem muito de autobiografia”16, que oferece contatos, referências e releituras da obra tropicalista. Notáveis são, portanto, algumas das músicas do álbum, a saber: Apocalipsom A (o fim no palco do começo), Tropicalea jacta est, Tropicália lixo lógico e Apocalipsom B (o começo no palco do fim), sendo essas as que mais têm relação com as obras do momento dos anos 60.

O título de Apocalipsom A (o fim no palco do começo) já representa alguns recursos tipicamente tropicalistas: a justaposição mal-colocada e cacofônica de apocalipse e som, indicando o fim do som, e o julgamento final sobre a Tropicália. O “subtítulo” remete, de início, a uma peça teatral, algo confirmada pela estrutura narrativa que inicia a letra, como uma rubrica teatral que indica a presença das personagens em cena – tudo isso reforçado, indiretamente, pela alusão a Bertolt Brecht, influência para montagens do Teatro Oficina. O arranjo musical, por sua vez, aliando elementos mais tradicionais, como tambores, aos mais modernos, com guitarras e baixo elétrico, cria o mesmo efeito de estranhamento por misturas de gênero que há no Tropicália de 68.

Unindo, então, “em casamento/ a fé e o conhecimento”, Tom Zé expõe como os opostos mais distintos (“Diabo e Deus”) convocam um panteão divino (que conta com a figura de Maria Bethânia, artista tropicalista) para “ter num só filhote/ o duplicado tesouro”: a “menina” que “cresceu depressa demais”, a “Tropicália”; o movimento dos anos 60 visto jovialmente como uma menina que não segue ordens e não encaixa-se no padrão esperado por ela, sendo até mesmo sexualmente ofensiva (“Se você faz represália/ela passa a mão na genitália,/esfrega na sua cara”), numa possível referência às práticas do Teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa de interação da plateia com os atores durante suas peças – recheadas, muitas vezes, de conteúdo explicitamente sexual.

As oposições justapostas são muitas nessa canção. O “casamento [entre] a fé e o conhecimento” remete-nos ao processo de invasão do conhecimento científico, fruto do processo de industrialização ocorrido no Brasil durante o projeto nacional- desenvolvimentista; soa, a quem tiver em mente Geléia Geral [GG/TN], como “o avanço industrial/vem trazer nossa redenção”. Ainda como referência a Gil (agora com Capinam), estão em paralelo as introduções latinas dessa canção e de Miserere Nobis, que subvertem uma ordem clássica (e, portanto, antiga e tradicional) na música em prol do seguimento moderno e brasileiro da canção, conectados pela herança cultural e linguística que nós, como brasileiros e latino-americanos, compartilhamos; a colocação, lado a lado, de Apolo e Macunaíma, deus romano e anti-herói brasileiro, é mais uma faceta dessa subversão da ordem clássica, que também opõe as figuras femininas divinas de “Diana, Vênus, Urânia” às artistas brasileiras “Chiquinha Gonzaga [e Maria] Bethânia”. Ao final da música, com a expressão – conclusiva e racional, porque remete a uma terminologia da filosofia – “quod erat demonstrandum”, também em latim, é fechada a música com um aspecto de raciocínio lógico, quebrado em seguida, contudo, pela cotidianeidade de “[receber] na sala [… a] Tropicália”, com uma aproximação familiar que contraria completamente a formalidade da locução romana prévia e ainda alude à própria Panis et circencis [CV/GG] (do álbum de 1968).

O processo é semelhante ao observado por Celso Favaretto quando diz que “[s]imultaneamente, consiste também em fazer que duas significações básicas – o arcaico e o moderno – funcionem como interpretações das designações particulares”17. Se, no caso observado por Favaretto (a canção Alegria, alegria [CV]), há uma correlação entre, por exemplo, a oposição “os aviões” (a modernidade) e “os chapadões” (o espaço rural e, portanto, arcaico), na canção de Tom Zé, por sua vez, estão justapostas designações particulares, como “tinha ladrão de cavalo/pai de santo e afetado/padre, puta e delegado”, que servem como interpretações de significados que remetem a grandes temas: o ladrão, a religião obscura e mágica, o homossexual (dentro do tipo humano do desviante do padrão), a religião institucionalizada, a prostituta (outro tipo desviante) e a força policial – todos, em alguma medida, opostos uns aos outros, aumentando a tensão interna do texto, em conformidade com um padrão tropicalista de construção poética.

Em Tropicalea jacta est, terceira canção do álbum, as referências são mais diretas aos próprios artistas e às letras de canções tropicalistas. Invocando mais uma vez a referência clássica, Tom Zé traz a figura de Baco e Penteu (com uma referência diretamente aludida, em nota de rodapé: “No canto III de Ovídio em ‘Metamorfoses’ Alceste [sic] conta ao rei Penteu um episódio sobre Baco”18) colocando o episódio  como uma espécie de contexto pré-tropicalista, provavelmente a virada dos anos 50 para os anos 60, com a presença dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari e José Celso Martinez Corrêa. O final da primeira estrofe, por sua vez, parece retomar o título: por oposição a Júlio César, imperador romano, Tom Zé não usa o famoso “vim, vi, venci”19, mas afirma (três vezes): “vi, vi, vi” – e o que ele viu será apresentado na próxima estrofe; da mesma forma, a máxima “alea jacta est”20 (“os dados estão lançados”), também atribuída a Júlio César, é subvertida em um trocadilho que alia o final de “Tropicália” a “alea”, fazendo com que o título remeta a algo que foi feito e não se pode voltar atrás, que é o próprio tropicalismo, na expressão “Tropicalea jacta est”.

De longe a referência mais complexa do álbum (e, portanto, mais difícil de se estabelecer com segurança seu significado, ainda mais se tratando de uma obra do Tom Zé e de uma obra que remete à Tropicália) é a referência inicial de Tropicalea jacta est ao episódio épico sobre Baco, presente nas Metamorfoses de Ovídio, segundo o próprio Tom Zé. A passagem de Ovídio mostra Acetes, marinheiro, contando ao rei Penteu o que aconteceu quando ele e alguns piratas encontraram Baco, sob a forma de um rapaz embriagado, numa praia. É contado que o deus foi sequestrado pelos piratas e levado para um navio, sendo admoestado por eles, até o momento em que se revela um deus ao impedir o avanço do barco no meio de seu trajeto usando seus poderes para conjurar videiras mágicas que seguram o barco e atacam os piratas que haviam caçoado dele.

Assim, mesmo sendo essa épica e intrincada referência de difícil interpretação, é possível supor alguns significados para essa metáfora. Há a possibilidade, dada a sequência da canção, que o barco, de uma forma geral nessa letra, venha a significar a cultura nacional brasileira. Assim, apesar do contexto em que já existiam como artistas os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, o poeta Décio Pignatari e o diretor José Celso Martinez, de alguma forma foi bloqueado o desenvolvimento da arte brasileira – podendo aí Baco (e a violência com que ele toma controle do barco) ser uma referência à perseguição à classe artística feita pela ditadura, ou até mesmo um bloqueio próprio da linguagem poético-artística que havia na época – principalmente se prestarmos atenção às oposições que povoavam as diferentes concepções de arte da época. Além disso, a figura báquica por si só já é uma referência ao mundo das artes teatrais, por ser esse o deus romano patrono dessas artes – referência que se fecharia circularmente com a referência ao diretor Zé Celso.

Mais recheada de referências ao tropicalismo, essa canção conta com a bela montagem de alusões: os “dois que antes da cela – da ditadura/ [que] deram a vela / da nossa aventura” são claramente Gilberto Gil e Caetano Veloso, apresentados como os principais guias entre os artistas envolvidos com o projeto tropicalista, sendo os responsáveis pelo “barco da Tropicália”, numa alusão ao episódio marítimo sobre Baco.

Tom Zé explora também a temática da industrialização do Brasil21, aliado ao projeto nacional-desenvolvimentista dos anos 50, da mesma forma que está presente em Parque Industrial (do álbum de 1968): expondo “as contradições levantadas pelo processo de modernização industrial”22, motivadas pela “intensificação do processo de industrialização nos anos 50”23. Portanto, assim como, na canção, o “barqueiro meu navegador” – continuando com a referência ao episódio ovídico envolvendo Baco – “conjectura logo nosso primeiro computador”, está expressa a urgência de entrar no processo da “Segunda / Revolução Industrial” “capacitados para a nova folia:/ tecnologia”, ou seja, de fazer a ponte entre uma tradição cultural de retomada agrária e rural, presentes em movimentos culturais como os organizados pelos CPCs24, e a lógica da modernidade que já estava presente no Brasil desde a década anterior, através, principalmente, da “[e]xposição dos mecanismos de produção e consumo da indústria do entretenimento”25 – exatamente o campo de ação da arte tropicalista.

Na mesma canção temo, ainda, referências diretas a outras obras do período tropicalista na quarta, na quinta e na sexta estrofes:

Domingo no parque sem documento com Juliana-vegando contra o vento […]

Torquato Neto / do Piauí Pinta no verso / o céu daqui Aquela manhã que se inicia

Desfolha a bandeira e renuncia […]

Bandeiras no mastro / novo repasto Mas cada gentio / trazia no cio

A fome das feras / naquele jejum

Nessas estrofes vemos alusões claras a Domingo no Parque [GG] (e à personagem dessa canção, Juliana); a Alegria, Alegria [CV] (estando o eu-lírico26 “sem documento” “[…]na-vegando contra o vento”, como o da canção referida, que está “caminhando contra o vento/sem lenço, sem documento”); a Geléia Geral [GG/TN], com uma referência direta a seu autor, Torquato Neto, e outras à letra: se na canção de 68, é dito que “o poeta desfolha a bandeira”, na de Tom Zé, coloca-se sobre Torquato a ação: ele é o poeta tropicalista presente na canção original, segundo a interpretação da canção de Tom Zé; e a Panis et Circencis [OM], com “os tigres e leões nos quintais” representados por “feras” e “os panos sobre os mastros no ar”, pelas “bandeiras no mastro”.

As referências menos diretas estão espalhadas pela canção, mas é com menos certeza que se pode afirmar uma correlação precisa, dada a complexidade de algumas das metáforas. As “quimeras / de coca com rum” podem significar, entre outras coisas,  o contexto cultural, algo idealista demais, da esquerda nacional, visto que Coca-Cola com rum é a bebida conhecida como Cuba libre. Isso pode se explicar se entendermos que, no contexto do tropicalismo, “[havia] relativa hegemonia cultural da esquerda no país”27, mas, “[f]racassada em suas pretensões revolucionárias e impedida de chegar às classes populares [por causa da perseguição da ditadura], a produção cultural engajada passa a realizar-se num circuito nitidamente integrado ao sistema”28 e a arte acabou por perder seu aspecto original de ação na situação política do país, virando, assim, simples “quimera”. Novamente remetendo a Geléia Geral, o explicativo “disco do Sinatra” é a releitura do “LP de Sinatra” de outrora, reapresentando o fato de que toda a produção cultural tropicalista se fazia através de uma “ocupação tática de todos os canais possíveis de difusão de massa”29 produzindo uma “exposição consciente, dramatização mesma dessa ocupação”30. Nesse “disco”, apresenta-se a continuidade existente entre os Novos Baianos, grupo contemporâneo, e “outros baianos”, aqueles que contribuíram para o tropicalismo.

Seguindo a ordem das músicas, a canção-título do álbum concentra suas referências no começo e no final. Começa com a própria introdução de Coração Materno (de Vicente Celestino, gravada por Caetano Veloso para o álbum) e se inicia com referência à história de Chapeuzinho Vermelho – presente no álbum de 68 na canção Enquanto seu Lobo não Vem [CV]. A de Tom Zé, no entanto, não trata de forma alguma da “dominação pela violência política”31 abordada na outra; de suas questões centrais, tratarei posteriormente. A outra referência principal à Tropicália é um conjunto de trocadilhos ao final da música (“Caegitano entorta rocha / capinante agiu”), em que mistura os nomes de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Capinam, Os Mutantes e Gláuber Rocha.

Fechando com uma retomada da primeira canção, Tom Zé oferece-nos Apocalipsom B (o começo no palco do fim), cuja inversão, já no título, conecta as duas pontas do álbum numa circularidade que aponta para a união entre opostos temporalmente: os músicos tropicalistas miscigenados em trocadilhos com nomes dos músicos que fizeram parte do álbum de 2012:

Caemicida malluri

Ta gil

Pelicapinarante was […]

É hora da Segunda Vinda

As fusões de Caetano e Emicida, Mallu Magalhães e Rita Lee, Pélico, Capinam e Os Mutantes e a abreviação de Washington, músicos que fizeram parte de uma das duas Tropicálias, seja a de 1968, seja a de 2012, revela, em termos de cunho profético, uma “Segunda Vinda” do tropicalismo: a releitura de Tom Zé.

Portanto, muito diferentemente do que se poderia esperar a um olhar desatento e enviesado pelo título, pouco há de lixo no álbum de 2012. As referências, ricamente adornadas com trocadilhos, reiterações sonoras, retomadas diretas ou indiretas de elementos das obras ou do contexto tropicalista no geral, aumentam e duplicam toda o conjunto de sentidos explorados durante o “momento tropicalista”32, do qual fez parte, e já havia contribuído imensamente, o próprio Tom Zé.

A lógica

E assim funcionava a creche

Tom Zé33

O desdobramento interpretativo do álbum Tropicália lixo lógico pode desenvolver-se de várias formas, mas garantidamente não estará completa uma interpretação dele se não se dispuser a analisar o complexo arranjo que Tom Zé utiliza para justificar e explicar o aparecimento do tropicalismo. Assim, ainda que não diga respeito propriamente ao momento tropicalista dos anos 60, o álbum de 2012 é parte do campo de ação e reflexão das obras tropicalistas e estudar o diálogo que este álbum faz com aquele momento é tão fundamental para o estudo da recepção do tropicalismo quanto entender como os próprios artistas percebem e justificam sua própria produção poética da época.

As peças para a montagem do quebra-cabeça multirreferencial que ele arquiteta estão dadas nas músicas do álbum inteiro, mas fundamentalmente em três das quatro que já foram analisadas e em mais uma canção, que estabelece precedentes, na própria cultura brasileira, para a existência do tropicalismo como movimento dentro de um contexto maior da arte nacional. No entanto, mesmo havendo plenitude em explicações que situem os tropicalistas num jogo artístico, quase dialético, entre o “engajamento cepecista”34 e o “engajamento experimentalista”35 dos concretistas, colocados todos em referência ao clima de repressão artística e intelectual próprio da ditadura militar36, Tom Zé prefere uma explicação que envolve, como pode ser observado nas canções que a seguir serão destrinchadas, outra dialética: o confronto entre o pensamento aristotélico e a mentalidade moçárabe.

Começando pela primeira canção do álbum, Apocalipsom A (o fim no palco do começo), vemos o “casamento / [da] fé e [do] conhecimento”, o “saber de Aristóteles” misturado “com a cultura do mouro”. Aparentemente, são as forças motrizes do processo cujo “filhote” é o resultado do diálogo entre essas duas forças: o tropicalismo. Em princípio, essa alusão seria precipitada, mas o raciocínio se completa e se aprofunda nas seguintes canções.

Seguindo o percurso pelo álbum, em Tropicalea jacta est tem-se a referência direta à influência árabe na gênese do pensamento tropicalista. Usando da retomada do “LP de Sinatra” (de Geléia Geral [GG/TN]), colocado como “disco” (e elevado à categoria de entidade que contém saberes da origem do tropicalismo), Tom Zé indica que “a viagem começa no século VIII, quando o zero invadiu nossos avós”. Nessa formulação poética (ainda que dita como prosa na música, sem entoação melódica), indica a dominação ibérica dos árabes (que, ao contrário dos romanos, prévios dominadores da península ibérica, possuíam um sistema numérico que contemplava o zero ― e daí a referência) ocorrida justamente no século VIII.

Em Tropicália lixo lógico, vemos a releitura de Enquanto seu Lobo não Vem: o Lobo agora é “Seu Aristotes”37, o filósofo cujo pensamento, em oposição àquele modo de pensar que havia dominado “nossos avós”, “não era melhor, tampouco pior” que a “moçárabe estrutura de pensar” que “na creche dos analfatóteles regia”. A explicação se adensa e se aprofunda exatamente nessa estrofe da música, a terceira: a mentalidade portuguesa influenciada pelo pensamento árabe era hegemônica na cultura mais basal dos tropicalistas. No entanto, “na escola [… eles] conhece[ram] Aristotes”, isso é, tiveram contato com a mentalidade clássica, racional e de origem greco-romana, que possui, em oposição à “moçárabe […] solução”, um “grande pacote de pensar” e “equações”. Esse choque produziu, na visão de Tom Zé, uma duplicidade de soluções por parte dos tropicalistas que passaram, por um lado, a “resolver com [suas] armas a questão”, mas, por outro, “não recusa[ram] suas equações”; o “resultado quase igual” das duas, contudo, não foi homogêneo e “a diferença que restou” deu origem ao “lixo lógico” ― a própria essência das obras tropicalistas.

Essa essência, recalcada no “hipotalo” (hipotálamo) dos artistas, deu origem à Tropicália quando deixou seu “terreno” original no cérebro38 e partiu para o córtex cerebral, onde, acrescido da força das funções inteligíveis dessa parte do cérebro, tomou forças para constituir-se como algo além de um resquício recalcado numa estrutura primária da mente. É importante, no entanto, pontuar que essa opinião não é hegemônica em si: Caetano Veloso aponta que é uma primazia dos tropicalistas de contextos rurais, um fenômeno das “formas mentais sertanejas”39, compartilhado por  Gil e Tom Zé, mas que escapa às vivências dele próprio, de Maria Bethânia e de Gal Costa, que viviam em um contexto urbano; explica, apesar disso, que são de Tom Zé  “as obras mais ambiciosas no sentido de caracteriz[ar o movimento tropicalista]”40 e que, portanto, é fundamental a leitura que ele faz do processo, dado que suas explicações fornecem material para explicar o “âmago” dessa estética. Tom Zé produz ainda, de forma notável, uma nomenclatura para aqueles que, vindos de dentro da sociedade de mentalidade moçárabe, não tinham ainda tido contato com as ideias clássicas-analíticas de Aristóteles: seriam os “analfatóteles”, misto de “analfabeto” com “Aristóteles”, grupo no qual situa os tropicalistas.

Finalmente, a canção que se detém com mais propriedade e tempo sobre a temática das origens do tropicalismo, com foco nos antecedentes que “prepararam o campo” para a Tropicália, é Marcha-enredo da creche tropical. Não é à toa que Tom Zé coloca esses antecessores dos tropicalistas como “preceptores-babás”: as figuras colocadas como anteriores ao tropicalismo não só foram os anteriores numa continuidade temporal como ofereceram subsídio e recursos poético-artísticos para o que aconteceu em termos de produção no final dos anos 60. Assim, compartilhando o mesmo contexto explorado acima ― a invasão muçulmana à península ibérica ―, indica que “a tristeza daquela invasão” ao menos “valeu para nossa educação [dos tropicalistas] paradoxal prazer e rendeu a creche tropical”, ou seja, a invasão do pensamento moçárabe já mencionado deu origem a uma “agridoce” permanência dos artistas da Tropicália dentro de uma cultura que já estava em movimento segundo suas próprias regras, dando-lhes uma experiência de “primeira infância”, exploradora em relação ao que veio antes. O contexto ao qual se refere Tom Zé quando menciona a “creche tropical” diz respeito, principalmente, a obras que procuraram retratar o privilégio da linguagem oral na construção social e cultural do contexto em que ele próprio estava inserido: o Nordeste, o sertão.

Nesse sentido é que se pode encarar a referência à “testemunha, […] um tal de Euclides de Cunha”, autor de Os Sertões, obra de cunho jornalístico-poético em que o jornalista mencionado descreve sua observação da Guerra de Canudos, conflito entre o governo republicano brasileiro e uma comunidade messiânica autogerida no sertão nordestino. A importância para a “creche” de Tom Zé é intensa: dentro de uma linguagem privilegiada, escrita e científica, Euclides da Cunha registrou uma comunidade claramente desprivilegiada e que pouco contato tinha com a cultura republicana (e pretensamente “civilizada”) que a dizimou; o autor, apesar disso, mistura uma erudição da linguagem, própria de sua formação na alta classe fluminense, com termos regionalistas e neologismos próprios, deixando transparecer uma incursão da linguagem oral sertaneja em sua escrita formal.

Da mesma forma, a referência a Guimarães Rosa, que produziu Grande Sertão: Veredas, obra contada toda em primeira pessoa por um sertanejo em sua linguagem própria. A linguagem sertaneja, então, é colocada no auge de seu privilégio na linguagem, dentro de uma obra que mistura (assim como seria típico no tropicalismo) elementos do passado a elementos do presente, mantendo em si um clima de “medieval batalha”, como coloca Tom Zé.

Dessa forma, sendo tais as referências ricas aos “preceptores-babás” do tropicalismo, Tom Zé ainda expõe sua visão sobre o processo, no sertão, de ação e de educação através da linguagem. De acordo com ele, “naquele mundão [o sertão] o falar da gente assegura na mansa doçura outra cosmovisão: pensar é pão”, isto é, a manutenção da linguagem oral como base da organização social e cultural do sertão é o que consegue manter as relações entre os ideais locais e seu próprio sustento, assim como protagonizado pela população de Canudos. Igualmente, nos informa, no fechamento da canção, sobre os métodos de entendimento do mundo por parte do sertanejo, aliados mais à tradição oral (e, portanto, lúdico-musical) do que à tradição escrita, clássica e analítica (proveniente de Aristóteles). Essa faceta da “didática” sertaneja nos é apresentada na própria música, que incorpora o joguinho de palavras que se ensina às crianças: “É um dia, é um dado, é um dedo/ Chapéu de dedo é dedal”. O final da canção, então, explica tudo com clareza quando afirma que “assim funcionava a creche: cada círculo, cada aula, iam se sucedendo, com aqueles jograis que casualmente circulavam entre nós.”, sendo esse a principal fonte de conhecimento sertanejo, o “tutano na cabeça dos moleques”.

Fora das canções, mas dentro do álbum, encontramos, finalmente, uma síntese das ideias apresentadas por Tom Zé como sendo as fundamentais para o entendimento do seu conceito de “lixo lógico”. As páginas 2 e 3 do encarte do álbum (imagem abaixo) são um infográfico esquemático, anunciando, antes mesmo das letras das canções (na sequência do encarte), uma relação entre os diversos elementos expostos nas canções e que compõem, segundo o autor, o conjunto das referências e antecedentes da Tropicália, bem como seus “gatilhos disparadores”, que teriam catalisado toda o contexto em que se situava a arte nos anos 60 e produziram a faísca que deu origem ao “momento tropicalista”.

Nesse encarte vemos a aura que recobria o “berçário dos analfatóteles” ser invadida por elementos que a conectam com antigas referências culturais e musicais da Idade Média e de Portugal do século XVI. Assim, são essas referências que pertencem à produção tropicalista por conta de sua influência sertaneja: o “cantador nordestino”, a “‘chegança’ (dança dramática)”, o “desafio do improviso” e o “cancioneiro popular urbano” ― frutos de uma tradição europeia medieval. Na marcação, então, dos balões, à esquerda e à direita do “berçário”, estão os traços mais primevos e mais avançados desse processo, traços que culminarão no tropicalismo. O jogo, portanto, do “lixo lógico” (resultado do embate “moçárabe x aristóteles”) na “creche” composta por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rogério Duarte, Gal Costa, Glauber Rocha, Torquato Neto, Capinam e ele próprio, Tom Zé, tem sua realização dada em estética artística quando há a ação, nos “anos 60”, do “gatilho disparador”: Hélio Oiticica, Zé Celso, Oswald de Andrade41, Agripino, o Rock internacional, Rita Lee e os Mutantes.

creche tropical

Assim, pode-se ver que é rico e muito bem articulado o universo de proposições que faz Tom Zé acerca da produção tropicalista e, mais ainda, das motivações que levaram os artistas a produzir tal estética. Cotejando, então, esse universo com as características mais centrais do tropicalismo, vemos que essa explicação mesma é parte da estética do momento: a justaposição de opostos clássicos e moçárabes, a explicação do novo pelo velho e do velho pelo novo, a exaltação da cultura oral na produção escrita, entre outros elementos do álbum, insere-se na grande produção tropicalista, como se Tom Zé conseguisse fundir dois momentos distintos na história, separados por quase 50 anos, em uma só “criatura […] que sai do Spiritus Mundi”42 e, “recebida na sala, se trata por Tropicália”43.


Notas:

[1] Nota sobre o uso de grafias diferentes durante o ensaio: os títulos de álbuns, canções, livros e demais obras serão escritos, no corpo do texto, utilizando a marcação em itálico, para não poluir a leitura com um excesso de aspas; as aspas, por sua vez, serão utilizadas em citações diretas e para termos metafóricos cunhados por mim, sendo que nesses não haverá nota de rodapé indicando a referência, ao contrário daqueles, acompanhados de sua respectiva nota e referência.

[2] VELOSO et al., 1968.

[3] SÜSSEKIND, 2007: 31.

[4]                                   , 2007: 37.

[5] SCHWARZ, 1978: 71.

[6] HOLLANDA, 1992a: 15-52.

[7]  SCHWARZ, 1978: 72.

[8] Verso de Tropicalea jacta est.

[9] HOLLANDA, 1992a: 42-43.

[10] Nota sobre o uso de siglas durante o ensaio: para evitar a repetição dos nomes, serão feitas siglas entre colchetes após as obras para indicar seu(s) autor(es), sendo elas [CV] para Caetano Veloso, [GG] para Gilberto Gil, [TZ] para Tom Zé, [TN] para Torquato Neto e [OM] para o grupo Os Mutantes; dentro dos parênteses poderão estar separadas por barra mais de uma sigla, quando houver mais de um autor.

[11] SÜSSEKIND, 2007: 31.

[12] ZÉ, 2012.

[13] VELOSO, 2008.

[14] Encarte de ZÉ, 2012: 16.

[15] HOLLANDA, 1992b: 56.

[16] VELOSO, 2008.

[17] FAVARETTO, 1979: 60.

[18] Encarte de ZÉ, 2012: 5.

[19] PÖPPELMANN, 2010: 131.

[20] PÖPPELMANN, 2010: 12.

[21] E não somente nessa canção, mas também em O Motobói e Maria Clara.

[22] HOLLANDA, 1992a: 15.

[23]                                   , 1992a: 16.

[24]                                   , 1992a: 17-37.

[25] SÜSSEKIND, 2007: 40.

[26] Eu-lírico esse que é apresentado num conjunto, postado em uma primeira pessoa do plural, que se pode extrair de “saímos”, corroborando um certo aspecto coral da obra do Tom Zé.

[27] SCHWARZ, 1978: 62.

[28] HOLLANDA, 1992a: 30.

[29] SÜSSEKIND, 2007: 42.

[30]                                   , 2007: 43.

[31] FAVARETTO, 1979: 86.

[32] SÜSSEKIND, 2007: 31.

[33] Marcha-enredo da creche tropical [TZ]. In: ZÉ, 2012.

[34] HOLLANDA, 1992a: 17.

[35]                                , 1992a: 37.

[36] SCHWARZ, 1978.

[37] É notável a transformação, em muitos momentos das canções, de proparoxítonas em paroxítonas, especialmente em palavras que não são de uso popular. Parece ser um recurso de Tom Zé para aproximar alguns de seus termos ao registro oral do português brasileiro, que reduz muitas vezes proparoxítonas a paroxítonas.

[38] O hipotálamo, no cérebro humano, é o responsável por controlar algumas funções mais basais do nosso funcionamento, como temperatura e alguns hormônios. O córtex, por oposição, é o responsável pelas funções superiores do intelecto.

[39] VELOSO: 2008.

[40]                             , 2008.

[41] Oswald de Andrade é referência presente fortemente no tropicalismo, principalmente em função de  uma retomada de seu conceito de antropofagia.

[42] Apocalipsom B (o começo no palco do fim).

[43] Apocalipsom A (o fim do palco no começo).


Referências:

FAVARETTO,  Celso.  “A  cena tropicalista”. In:                      . Tropicália: alegoria, alegria. São Paulo: Ateliê, 1979.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. “A participação engajada no calor dos anos 60”. In:

                    . Impressões de viagem (CPC, vanguarda e desbunde: 1960-70). Rio de Janeiro: Rocco, 1992, pp. 15-52.

                    . “O susto tropicalista na virada da década”. In:                     . Op.cit., 1992, pp. 53-87.

PÖPPELMANN, Christa. Dicionário da língua morta: a origem de máximas e expressões latinas. Tradução e adaptação Ciro Mioranza. São Paulo: Editora Escala, 2010.

SCHWARZ,  Roberto.  “Cultura  e  política,  1964-1969”.  In:                      . O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1978.

SÜSSEKIND, Flora. “Coro, contrários, massa: a experiência tropicalista e o Brasil de fins dos anos 60’. In: BASSUALDO, Carlos (org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira (1967-1972). São Paulo: Cosac Naify, 2007, pp. 31-56.

VELOSO, Caetano. “Lixo lógico”. O Globo, Rio de Janeiro, 5 ago. 2008. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/lixo-logico-5692980>. Acesso em: 15 mai. 2014.

VELOSO, Caetano; COSTA, Gal; LEÃO, Nara; GIL, Gilberto; BAPTISTA, Arnaldo; LEE, Rita; DIAS, Sérgio; ZÉ, Tom. Tropicália ou Panis et Circencis. São Paulo: Estúdio RGE, 1968. 1 disco sonoro (38’38”).

ZÉ, Tom. Tropicália lixo lógico. São Paulo: Passarinho Experiências Culturais, 2012. 1

disco compacto (47’54”): digital, estéreo. AMZPAC000025.


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