Por Thales Fonseca (Doutorando em Psicologia pela UFSJ)
Trata-se de tentar traçar um breve percurso que vai desde a instauração da chamada Nova República, com a promulgação da constituição de 1988, passando por momentos de relativa harmonia social a partir de meados da década de 1990 e na primeira década dos anos 2000, chegando, enfim, às manifestações de profunda insatisfação popular em 2013, que parecem ter se configurado como um preâmbulo do que hoje se apresenta como uma profunda crise de nosso sistema democrático. Porém, mais do que um mero apanhado histórico, busca-se, a partir da percepção do que sobredetermina o atual cenário em ruínas, pensar suas implicações e possibilidades para uma esquerda que se pretenda radical e – por que não? – revolucionária.
I
Para Florestan Fernandes[i], as constituições, características de nossa modernidade, sempre trouxeram consigo um projeto político que, em síntese, traduz as estratégias sociais e ideológicas das classes dominantes no que se refere à organização da sociedade civil e do Estado. No caso do Brasil, obviamente, isso não seria diferente. Com uma experiência constitucional semelhante a de nossos vizinhos latinoamericanos, a raiz de nossa tradição constitucional é marcada pela preservação das estruturas coloniais, pela impregnação de modernismo importado e por um formalismo jurídico avançado.
Dessas peculiaridades, a última é de especial importância, pois remete a uma característica crucial do constitucionalismo: o de ser um projeto de captura, pacificação e tutela da política pelo direito[ii]. Nesse sentido, as constituições não deixam de ser o índice da mitigação do poder popular, subjugado às normas e instituições. Ora, uma das questões as quais eu gostaria de tentar abordar (ou pelo menos questionar) neste ensaio, são os motivos de nossa esquerda se prestar, pelo menos desde a instauração da chamada Nova República, justamente à defesa de uma ordem constitucional sempre-já corrompida e cerceadora do poder popular; o que, acredito eu, decorre em um déficit significativo de radicalismo.
Tendo em vista o período histórico no qual me circunscrevo, não foi à toa que comecei este texto com uma referência a Florestan Fernandes que, além de um sociólogo importante de nossa tradição intelectual de esquerda, participou ativamente (e não só como intérprete ou analista político) da promulgação de nossa atual constituição, como deputado na Assembleia Nacional Constituinte.
Nesse sentido, gostaria de trazer algumas de suas análises do processo constituinte[iii] que, penso eu, serão de grande valia para entendermos o atual temor de nossa esquerda pela ruptura institucional, quando, historicamente, sempre foi sua vocação apostar nela. Quero chamar atenção, ainda, para o caráter ambíguo das análises de Florestan, como uma espécie de condição inexorável a quem pretende interpretar algo estando “no olho do furacão” – o que parece ser, em muito menor grau, o meu caso, que não tomei um distanciamento cronológico importante para uma reflexão mais consistente (por isso, peço de antemão desculpas ao leitor, caso considere que minha análise é precipitada).
Sobre a referida ambiguidade, vemos opiniões divergentes de Florestan Fernandes sobre o que a constituição de 1988 poderia significar: opiniões que iam desde a esperança na ruptura com a ordem institucional que sustentava a ditadura militar, permitindo o desvelamento definitivo das contradições sociais e o acirramento da luta de classes[iv]; até a percepção de uma constituinte conservadora que buscaria manter o pendor conciliatório do regime militar e sua “transição lenta e gradual” que, inversamente, buscava zerar os conflitos e afastar os riscos da luta de classes para chegar a uma constituição liberal, estéril e “pasteurizada”[v]. Isto é, um relato dúbio em que a esperança de que a constituinte fosse uma ruptura com a conciliação promovida pelo militarismo logo seria contradita pela percepção de um parlamento como “nação invertida”, marcado pelo “mau uso” da representação[vi]. Assim, Florestan Fernandes identificava como a soberania popular, que dava origem ao parlamento, era a sua primeira e principal vítima[vii] – vítima da representação que, como já dizia Jacques Rancière[viii], é de pleno direito oligárquica.
Destaca-se, no conjunto da obra, a clara percepção do deputado e sociólogo de que a constituinte poderia facilmente se converter no “toque final” do projeto militar de abrandar a contra-violência nascente no seio da sociedade civil – contraponto à violência exercida pelo Estado na sustentação da ordem ilegal – através, primeiramente, da oposição consentida (o MDB, cuja mudança periódica de sigla não altera sua miséria ideológica) e, posteriormente, da democratização de “cima pra baixo” que, inevitavelmente, desembocaria num “biombo do Estado democrático” que oculta as contradições sociais.[ix]
Temendo tal desenlace, Florestan Fernandes buscou disputar espaço político para que a constituição em gestação se tornasse ruptura, “revolução a fazer”, e não mais um retrato da conciliação política que marcou o “fim” da ditadura militar[x]. Ainda que percebendo que o produto final fora uma “constituição burguesa conservadora”, o sociólogo acreditava que ela serviria, mesmo que reproduzindo o passado, para a reconstrução da sociedade civil e para soterramento definitivo da ordem ilegal. Porém, ele asseverava: a constituição não poderia ser um fim em si mesma, mas um meio, cujo destino final, de uma maneira ou de outra, deveria ser a lata de lixo da história.[xi]
Para ele, a constituição de 1988 deveria ser, no melhor dos casos, um elo ao aparecimento de uma constituição mais democrática, popular e radical. Porém, ainda assim, ela representava uma vitória, desde que as reformas estruturais reprimidas fossem soltas. Ele nos diz: “O nó de conciliação foi desatado e a luta de classes não permanecerá mais contida pela camisa de força do despotismo da ordem e daqueles que o monopolizavam”. (p. 289).[xii]
Mal imaginava ele que o “nó da conciliação” seria magistralmente refeito, uma década e meia depois, por ninguém menos que Lula, figura maior de seu próprio partido, o Partido dos Trabalhadores (PT). Assim, o antagonismo da luta de classes seria mais uma vez velado e a esquerda, acostumada a ocupar o poder, se acomodaria na inexistência de reformas de fato estruturais. Ora, aqui, no traço inapagável da conciliação lulista, vejo uma primeira hipótese do que teria levado à deprimente situação de uma esquerda que desaprendeu a ser radical por manter-se à sombra da pouca ambição (ou seria conveniência?) petista.
Uma segunda hipótese encontro, ainda, em Florestan, que logo percebeu a existência de um projeto governamental de desconstituição da própria constituição, como uma forma de manejo do poder por aqueles que já o detém[xiii]. Isso, que o sociólogo perspicazmente já percebia no ano de promulgação da constituição, tornou-se mais que evidente hoje, em que o número de emendas já ultrapassam o número de cem. Fato é que, se era função da esquerda, naquele momento, se opor ao programa governamental de desconstituição, pois se tratava claramente de um manejo da recente ordem institucional democrática (ainda que fragilmente democrática) ao bel prazer das oligarquias; certamente não é sua função ser hoje defensora de uma ordem institucional que, após 30 anos, já se mostrou incapaz de ser ponte para uma sociedade mais democrática, popular e radical, sustentáculo de reformas estruturais.
Infelizmente, a esquerda parece ter se esquecido de sua vocação para a ruptura. E a prova disso vem de nossa história recente, mais especificamente, do início desta década. Pois, se já desde a origem da Nova República há um movimento de desconstituição em marcha que em nada se confunde com uma ruptura (já que, como mostramos, se trata de um manejo conveniente), a partir de 2013, porém, assistimos ao surgimento de uma onda anti-institucional fervilhando de maneira ostensiva na população. Curiosamente, as pequenas exceções no interior de nosso espectro de esquerda que ainda acreditam na luta popular não foram capazes de mobilizar tal insurgência que, em sua insatisfação não direcionada, foi cooptada pela extrema-direita. Foi quando chegamos ao cenário atual, de uma espécie de pré-ruína do biombo que sustenta nosso Estado democrático.
II
De fato, o ano 2013 parece ser um divisor de águas. Não é de todo injustificado, ainda que evidentemente reacionário, quando alguns setores da esquerda apontam que as manifestações daquele ano prepararam o terreno para a fraude parlamentar que desembocou na deposição da presidenta Dilma em 2016. O que esses setores não percebem é que a crise política que deu origem àquela revolta popular já era anunciada desde a própria origem da Nova República e do que acabou se tornando sua base institucional, a constituição de 1988. Nesse sentido, a chamada “primavera brasileira” é indício (e, talvez, o momento de explosão) da crise, e não sua causa.
Comentário lateral: é digno de nota o repúdio às manifestações por parte de setores da esquerda, o que parece demonstrar bem o seu distanciamento da vontade popular e das formas de organização coletiva espontânea e contingente que historicamente caracterizou as insurreições.
Voltando para a afirmação de 2013 como um marco histórico, é interessante dar uma breve visada sobre as eleições que compuseram até agora a Nova República, com exceção à de 1985, que elegeu Tancredo Neves, visto ter sido indireta e efeito da já comentada “transição lenta e gradual”. Curiosamente, com exceção de Collor em 1989, os presidentes eleitos na sequência – FHC, Lula e Dilma (primeiro mandato) – assim o foram por maioria absoluta… até às eleições de 2014. Seja na dimensão econômica, com o “plano real”, ou na dimensão social, com programas como “bolsa família” e as políticas de democratização do consumo, os governos do PSDB (mais à direita) e do PT (mais à esquerda) conseguiram manter certa ilusão de harmonia social – o que definitivamente não foi alcançado por Collor, ainda que vislumbrado por seu vice, Itamar Franco, que assumiu após o seu impeachtment. Com efeito, o antagonismo e a polarização da sociedade brasileira voltariam a não se deixar mais velar após 2013, tal como ocorria ao final da ditadura e início da Nova República. O que se mostra, enfim, nas eleições acirradas de Dilma (segundo mandato) e Bolsonaro, vencidas por maioria relativa.[xiv] Ademais, o fato de haver mais pessoas que não se sentem representadas pelo Presidente da República – em tese o representante-mor da nação – do que o contrário parece ser mais um sintoma do colapso da própria democracia representativa. Sobre isso, cabe ainda um adendo que se deve à peculiar “balburdia” (palavra na moda) que caracteriza a política brasileira: entre os dois governos que, como vimos, não representam/representaram a maioria absoluta dos eleitores brasileiros, há ainda o ilegítimo Michel Temer que, ao sair da presidência com a incrível taxa de menos de 5% de aprovação popular, corrobora com a afirmação de que vivemos uma profunda crise de representação.
Alain Badiou[xv], em conferência que recentemente tornou-se livro, afirmou que a democracia é o semblante, por excelência, que encobre o real do atual capitalismo imperial mundializado. Com semblante, ele quis dizer, para dar uma explicação bastante rasteira, uma espécie de máscara que nos “protege” da divisão que caracteriza o próprio acesso ao real. Utilizando um termo que já usei aqui, podemos falar do semblante como um biombo que oculta às contradições e os antagonismos sociais – o que psicanaliticamente poderíamos chamar de real, ou mesmo de mal-estar da civilização[xvi] – criando a ilusão de que a sociedade se configura como uma unidade harmônica quando, já desde Marx, sabemos que a sua história é marcada desde sempre por uma divisão fundamental: a boa e velha luta de classes. Tendo isso em mente, acredito que a crise de representação que atualmente nos acomete é, em alguma medida, uma crise do semblante, como se a vontade popular, marcada como é pelo antagonismo, não aceitasse mais o julgo de um semblante unificador. E como nos lembra Badiou, é na ruína do semblante que o real se manifesta. O ano de 2013, nesse sentido, parece ter sido uma explosão do real.
É assim que chegamos, então, a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 que, ao meu ver, expõe um paradoxo insolúvel da democracia, paradoxo imanente a sua própria definição. Tal paradoxo diz respeito ao fato de que para ser genuinamente democrático é preciso excluir o que é antidemocrático, ato de exclusão que, por sua vez, impede a democracia genuína de ser. Eu explico esse imbróglio.
E para tanto, vale partir da seguinte interrogação: será a presença de uma figura como Bolsonaro numa eleição presidencial, expressão da democracia? Alguns diriam que sim: “a democracia tem seus custos”, “o verdadeiro jogo democrático implica em liberdade radical de expressão”, “a democracia acolhe toda diversidade de pleitos e pautas” etc. Ora, eu também diria que sim, mas por outros motivos. Bolsonaro é expressão de que a democracia enquanto semblante foi longe demais – vejam bem, estou falando do semblante de democracia e não de toda e qualquer noção de democracia.
Compartilho do pesar de Badiou ao formular o referido diagnóstico da democracia como semblante do real do capitalismo. Por isso mesmo, concordo com o filósofo quando ele diz: “[…] a palavra ‘democracia’ é uma palavra admirável, e será preciso redefini-la, de um jeito ou de outro. Mas a democracia de que estou falando é a que funciona em nossas sociedades de maneira institucional, estatal, regular, normatizada.” (p. 25)[xvii].
Nesse sentido, a democracia que digo ter ido longe demais é a democracia que, como mostramos, é defendida “com unhas e dentes” pela nossa esquerda; democracia que, aliás, já nasceu natimorta. E ela de fato foi tão longe que parece ter chegado a um ponto de saturação em que deixa de cumprir o principal objetivo de um semblante, que é o de mascarar suas contradições: ela agora as deixa à mostra, e da maneira mais cínica possível. Daí Bolsonaro ser expressão dessa democracia. Expressão de seu colapso, do colapso do semblante. Bolsonaro é o sujeito que pode falar o que quiser, porque está ciente que o “estado democrático de direito” é um mero biombo. Por isso ele é fundamentalmente cínico – cinismo de um poder que aprendeu a rir de si mesmo[xviii].
A contradição que Bolsonaro expõe, portanto, é a de não ser possível impedir que um discurso proto-fascista[xix] e antidemocrático como o dele participe de uma eleição dita democrática. E, pior, ele ainda provou que esse discurso não só pode participar, como vencer.
Assim sendo, não é a sua eleição que põe fim a nossa democracia. Ela já estava falida, ainda que de pé. O colapso de nosso sistema democrático está para além até mesmo da fraude que levou Temer ao poder em 2016, que parece ter sido só a última gota d’água no oceano em que nos afogamos. Nesse cenário, acredito que a única saída é assumir de vez que o afogamento é mortal, assumir e deixar que a estrutura ideológica que sustentava nossa suposta democracia termine de ruir. E se necessário, que aceleremos essa ruína. Parece que só assim poderemos assentar as bases de uma política efetivamente democrática e renovada. Pois, como diriam Marx e Engels[xx], não temos nada a perder a não ser nossas correntes. Temos um mundo a ganhar.
III
Assim como se diz que Donald Trump é efeito do esgotamento do establishment neoliberal progressista[xxi], ou que o neofascismo de Marine Le Pen é efeito da perversão velada do neoliberalismo[xxii], pode-se dizer que Bolsonaro é sintoma do colapso da lógica de conciliação que caracterizou a Nova República desde a sua constituição – ainda que tenhamos em mente que esse tipo de comparação é sempre um tanto perigosa.
O fato é que não há na atual situação política de nosso país uma grande surpresa se olharmos com atenção para a circularidade de nossa história, marcada pela bipolaridade entre república oligárquica e populismo como resposta[xxiii]. Ora, antes que a resposta à insatisfação frente ao aparato institucional republicano se organize em torno de uma figura populista, há sempre um momento fragmentado de profundo antagonismo social constituído por demandas populares insatisfeitas, como explica de maneira precisa Ernesto Laclau[xxiv]. Nesse sentido, o populismo – a despeito do caráter pejorativo do uso corrente do termo – possui uma operacionalidade que é interior a própria racionalidade política, como uma forma de dar consistência à vontade popular difusa através de determinado discurso hegemônico.
Porém, como percebe Safatle[xxv], para além desse momento inicial de integração, há um segundo momento, que diz respeito a certa paralisia populista. É esse momento, não tematizado por Laclau, que está ligado ao sintoma – não só brasileiro, mas latinoamericano – em que a estratégia populista se converte em uma espécie de “modelo de gestão da paralisia social”.
Ainda que ao risco de alguma imprecisão teórica, acredito que seja possível pensar em tal “gestão da paralisia” sob a rubrica de um pacto conciliatório – que como vimos, é tão caro a política brasileira –, de modo que a saída populista diante da insatisfação popular com as instituições parece não ser capaz de produzir uma efetiva e radical transformação social, mas tão somente novas conciliações, que logo se mostram insatisfatórias.
Vemos ressurgir assim o embate, apresentado no início deste ensaio, entre a vontade popular e as normas e instituições. Desse modo, parece ser lícito dizer que ao mesmo tempo em que o chamado bolsonarismo decorre da crise do pacto conciliatório que constituiu a Nova República, ele é expressão de um novo pacto como solução não definitiva, como uma espécie de novo populismo[xxvi]. Afinal, assistimos a um processo em que a insatisfação popular e a crítica das instituições expressas de maneira não direcionada em 2013, ao não serem acolhidas pelo existente populismo de esquerda que se acostumou com o lugar de “situação” e fechou os ouvidos para as demandas populares, foram hegemonizadas pelo discurso bolsonarista.
Porém, justamente pelo fato de a crise atual ir mais além da mera crise de um populismo específico (o que chamamos de populismo de esquerda), mas denotar o próprio colapso de nossa estrutura democrática de representação, o surgimento de outra saída populista (ainda que de outro tipo) já tem dado mostras de ser insuficiente para vislumbrar qualquer possibilidade de dar consistência para a nossa institucionalidade em ruínas – o atual governo já possui a menor taxa de aprovação popular em um primeiro ano de mandato dos últimos tempos.
Aqui, vale retomar rapidamente o tema da “primavera brasileira”. Nas recriminações advindas de parte da esquerda, supostamente esclarecida, sobre as manifestações, era comum ouvir que se tratava de um movimento difuso, sem pautas, “sonâmbulo” (fazendo referência à frase que circulava na época: “o gigante acordou!”) etc. E de fato, as demandas populares eram realmente difusas, tal como na descrição laclauliana do momento antagônico que antecede à resposta populista. Eu mesmo, que na época era praticamente um calouro de psicologia e participei do movimento (que foi relativamente sutil onde eu morava, visto que minha Universidade não se localizava em um grande centro urbano), tive a oportunidade de ver cartazes que iam dos tradicionais pedidos por saúde e educação de qualidade, passando pela insatisfação com o preço das tarifas de ônibus (que, aliás, foi o grande estopim das manifestações), para chegar, enfim, a um hilário “mais openbar”. Mas o fato que eu quero destacar é que a postura de parte da esquerda de apontar para a inconsistência do movimento foi, ao meu ver, o grande “tiro no pé” dos últimos anos. E Bolsonaro soube aproveitar isso muito bem, ainda que talvez não o tenha feito de “caso pensado”.
Ora, não é a toa que ele se elegeu com um programa que se resumia a um sonoro: “Tem que mudar isso daí!”. Bolsonaro leu perfeitamente a insatisfação popular que era puramente negativa e, por isso mesmo, aparentemente difusa e inconsistente. Mobilizar esse discurso fragmentado era o que a esquerda deveria ter feito, e não simplesmente afirmar o óbvio. Óbvio que de tão óbvio, era dito pelos próprios manifestantes sonâmbulos, que entoavam: “Não são 0,25 centavos!” (do aumento da tarifa), assim como não era saúde, educação e muito menos openbar. O que os manifestantes de fato queriam era algo totalmente novo, que eles nem sequer conseguiam dizer de maneira positiva. Situação semelhante a que parece ter ocorrido na França, com os Gilet Jaunes: “A ‘contradição’ entre as demandas dos coletes amarelos e o Estado é ‘secundária’: suas demandas estão enraizadas no sistema vigente. A verdadeira ‘contradição’ é entre todo o nosso sistema sócio-político e (a visão de) uma nova sociedade na qual as demandas formuladas pelos manifestantes não mais emergem.”[xxvii].
Porém, nem tudo está perdido. Isso porque, apesar de Bolsonaro ter conseguido mobilizar tal insatisfação a ponto de se eleger, sua mobilização é frágil, reativa, não propõe muita coisa. No melhor dos casos, oferece uma mudança vaga, uma alternativa ao PT. Por isso ele paulatinamente perde apoio popular. O lugar da proposição de uma nova realidade, de uma utopia com poder de mobilização (mas que nem por isso prometa um mundo harmônico e sem divisões) ainda está em aberto. Resta saber se a esquerda aproveitará a nova chance quando ela surgir. E eu acredito que ela surgirá. (Aqui talvez seja importante ser didático: não estou sugerindo esperar sentado tal “surgimento”, mas produzi-lo!).
Sobre isso, eu gostaria de dizer, antes de terminar, que se Bolsonaro se configura como uma solução populista não definitiva, de uma gestão conciliatória da paralisia social; um possível retorno do PT sob a figura caudilhista de Lula também. E um retorno desse tipo parece guardar algumas semelhanças, ainda que tênues, com a eleição de Macron na França e do que seria o caso se Hillary Clinton tivesse vencido as eleições nos Estados Unidos.
É claro que não se pode ser injusto e fechar os olhos para os devidos distanciamentos que se expressam, por exemplo, no fato de não termos aderido de maneira plena ao programa neoliberal nos governos do PT (cenário brasileiro que está em vias de mudar). É nesse sentido que a semelhança de nossa situação política com a dos Estados Unidos e da França é tênue, de modo que mesmo a afirmação zizekiana de que Trump era um mal menor[xxviii] não é completamente aplicável ao nosso caso – coisa, aliás, confessada pelo próprio Zizek[xxix].
De todo modo, uma saída através do Partido dos Trabalhadores não deixaria de ser uma saída conservadora quando o assunto é uma esquerda que, como pretendi mostrar, não deve temer a ruína. Obviamente, não estou falando de um conservadorismo comparável ao de Bolsonaro. As pautas petistas são, inclusive, “progressistas” em sua maioria. Porém conservadora no sentido mais elementar do termo: uma saída que busca “conservar” uma estrutura institucional falida. Daí que a ruína de nosso sistema democrático liberal e o colapso de uma dita “Nova” República que nunca transpôs seu aspecto de biombo talvez seja a nossa melhor chance. Tal ruína parece expor isso que Rancière[xxx] diz ser o próprio fundamento da democracia: uma espécie de princípio de ingovernabilidade. É preciso assumir tal caráter ingovernável se quisermos vislumbrar algo de uma democracia radical. Aqui, não se trata de tentar pintar um quadro bonito a partir de uma realidade em destruição, mas de afirmar que a ruína pode abrir espaço para a construção de uma realidade renovada. Nesse sentido, sou sensível ao apelo de Zizek[xxxi] à máxima maoísta que diz: “Tudo sob o céu está mergulhado no caos; a situação é excelente”.
Quem sabe assim não nos seja possível deixar para trás o cenário em que, parafraseando Gabriel García Márquez[xxxii] no célebre Cem anos de solidão: a única diferença entre esquerdistas e direitistas é que uns vão à missa das cinco e os outros vão à missa das oito. Afinal, já nos dizia Nietzsche[xxxiii], não se deve frequentar igrejas caso se queira respirar ar puro.
[i] Fernandes, F. (1987, 29 de abril). A constituição como projeto político. In: F. Fernandes, Florestan Fernandes na constituinte: leituras para a reforma política (pp.72-81). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo/Expressão Popular, 2014.
[ii] Moreira, L. (2013, 01 de fevereiro). Judicialização da política no Brasil. Le Monde, 67, s.p. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/judicializacao-da-politica-no-brasil/>. Para uma discussão mais abrangente sobre essa problemática jurídica (que não será o nosso foco aqui), ver: Nascimento, L. E. G. do (2018, 27 de julho). Constituição é o nome de quê? Disponível em: <https://18.118.106.12/2018/07/27/constituicao-e-o-nome-de-que/> e Drigo, L. G. (2019, 23 de julho). A luta pelo discurso constitucional no Brasil de hoje. Disponível em: <https://18.118.106.12/2019/07/23/a-luta-pelo-discurso-constitucional-no-brasil-de-hoje/>.
[iii] F. Fernandes (2014). Florestan Fernandes na constituinte: leituras para a reforma política. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo/Expressão Popular.
[iv] Fernandes, F. (1987, 11 de fevereiro). O significado histórico da constituinte. In: Ibid., pp. 50-52.
[v] Fernandes, F. (1987, 08 de janeiro). Pacto social e desmobilização. In: Ibid., pp. 46-49.
[vi] Fernandes, F. (1987, 10 de março). A prática da representação constitucional. In: Ibid., pp. 55-58.
[vii] Fernandes, F. (1987, 12 de abril). A fragmentação do processo constituinte. In: Ibid., pp. 68-71.
[viii] Rancière, J. (2014). Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo.
[ix] Fernandes, F. (1987, 29 de abril). Ibid.
[x] Fernandes, F. (1988, 19 de agosto). Crise e conciliação. In: Ibid., pp. 273-276.
[xi] Fernandes, F. (1988, 12 de setembro). O produto final. In: Ibid., pp. 277-280.
[xii] Fernandes, F. (1988, 04 de outubro). A Constituição de 1988: conciliação ou ruptura? In: Ibid., pp. 288-290.
[xiii] Fernandes, F. (1988, 17 de outubro). Desconstitucionalização como projeto governamental. In: Ibid., pp. 294-296.
[xiv] É necessário dizer que ao afirmar que uma eleição foi por maioria absoluta ou relativa, não considerei somente os chamados “votos válidos”, mas também os votos brancos e nulos, já que eles representam justamente aqueles que não se sentem representados por nenhuma das opções. Não considerei as abstenções por não ser possível inferir ao certo o que leva um sujeito a nem mesmo votar, cuja motivação poder ir desde uma descrença ainda mais radical com o processo de escolha de uma representação política, até uma simples preguiça de sair de casa e entrar em uma fila. Sobre os dados (em estado bruto) aqui utilizados, ver:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_elei%C3%A7%C3%B5es_presidenciais_no_Brasil>.
[xv] Badiou, A. (2017). Em busca do real perdido. Belo Horizonte: Autêntica Editora.
[xvi] Freud, S. (1930). Mal-estar da civilização. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2011.
[xvii] Badiou, A. (2017). Ibid.
[xviii] Safatle, V. (2008). Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo.
[xix] Dizer que Bolsonaro veicula um discurso proto-fascista é diferente de dizer que seu governo é necessariamente fascista, o que eu acredito ainda não ser o caso.
[xx] Marx, K. & Engels, F. (1848). Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 2011.
[xxi] Sobre isso, ver: Zizek, S. (2016, 08 de novembro). Hillary, Trump e o mal menor. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2016/11/08/zizek-hillary-trump-e-o-mal-menor/> e Fraser, N. (2017, 12 de janeiro). A eleição de Donald Trump e o fim do neoliberalismo progressista. Disponível em: <https://operamundi.uol.com.br/opiniao/46163/a-eleicao-de-donald-trump-e-o-fim-do-neoliberalismo-progressista>.
[xxii] Sobre isso, ver: Pavón-Cuellar, D. (2018, 28 de junho). Notas para uma crítica da política milleriana. Disponível em: <https://18.118.106.12/2018/06/28/notas-para-uma-critica-da-politica-milleriana/>.
[xxiii] Safatle, V. (2018). Entrevista. Crise & Crítica, 2(2), 184-207. Disponível em: <http://criseecritica.org/wp-content/uploads/2019/06/8-Entrevista-Vladimir-Safatle.pdf>.
[xxiv] Laclau, E. (2012). La razón populista. México: Fondo de Cultura Económica.
[xxv] Safatle, V. (2018). Ibid.
[xxvi] Sobre as peculiaridades desse populismo, ver: Campos, P. (2018). Esgotamento do projeto iluminista e des-recalcamento da fé: uma proposta interpretativa das bases do populismo atual. Crise & Crítica, 2(2), 96-110. Disponível em: <http://criseecritica.org/wp-content/uploads/2019/06/5-Philippe-Campos_-Esgotamento-do-Projeto-Iluminista-e-Des-recalcamento-da-fe.pdf>.
[xxvii] Zizek, S. (2019, 19 de janeiro). Como Mao teria avaliado os Coletes Amarelos. Disponível em: <https://18.118.106.12/2019/01/19/como-mao-teria-avaliado-os-coletes-amarelos/>.
[xxviii] Zizek, S. (2016, 08 de novembro). Ibid.
[xxix] Zizek, S. (2018, 04 de dezembro). A eleição de Bolsonaro e a nova direita populista. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2018/12/04/zizek-a-eleicao-de-bolsonaro-e-a-nova-direita-populista/>.
[xxx] Rancière, J. (2014). Ibid.
[xxxi] Zizek, S. (2016, 08 de novembro). Ibid.
[xxxii] García Márquez, G. (2016). Cem anos de solidão (96ª ed.). Rio de Janeiro: Record.
[xxxiii] Nietzsche, F. (1886). Além do bem e do mal. Porto Alegre: L&PM, 2014.
4 comentários em “A esquerda deve temer a ruína? Notas sobre a crise da democracia no Brasil”
Quanta besteira, é um leigo querendo dar pitaco sobre política. E olha que é doutorando heim. A propósito, dá uma revisada mo vernáculo.
Belíssimo argumento, Cláudio! 🙂
E para dar “pitacos” em política é preciso ser formado em Ciências Políticas? E você, é formado em quê?