Por Paul Cockshott, via Paul Cockshott’s Blog, traduzido por Augusto Ribeiro
Qualquer um que tenha tido contato com o Manifesto Comunista se lembrará que uma de suas demandas é a nacionalização da terra e a destinação da renda da terra para custear programas públicos. O objetivo foi mais bem detalhado nas Demandas do Partido Comunista na Alemanha, no mesmo ano1.
Essas metas comunistas foram repetidas alguns anos depois pela Convenção Cartista na Inglaterra em 18512. Os objetivos dos Cartistas Ingleses eram muito semelhantes àqueles propostos pelos comunistas alemães.
Alguns socialistas alegam que, ainda que Marx apoiasse a nacionalização nos anos 1840, ele deixou de fazê-lo pelos idos da década de 1870. Mas é possível encontrar escritos seus em 1872 ainda mais veementemente favoráveis à nacionalização da terra.
“A propriedade do solo é a fonte original de toda a riqueza e tornou-se o grande problema de cuja solução depende o futuro da classe operária.
(…)
A nacionalização da terra produzirá uma mudança completa nas relações entre trabalho e capital e, finalmente, porá de lado a forma capitalista de produção, tanto industrial como rural. Então, distinções de classe e privilégios desaparecerão juntamente com a base econômica sobre a qual repousam. Viver do trabalho de outrem tornar-se-á uma coisa do passado. Não haverá mais qualquer governo ou poder do Estado distinto da própria sociedade! A agricultura, a mineração, a manufatura, numa palavra, todos os ramos da produção, serão gradualmente organizados da maneira mais adequada. A centralização nacional dos meios de produção tornar-se-á a base nacional de uma sociedade composta por associações de produtores livres e iguais, prosseguindo os negócios sociais segundo um plano comum e racional. Tal é o objetivo humanitário para o qual tende o grande movimento econômico do século XIX.” (A Nacionalização da Terra, Marx, 1872)
O objetivo geral de nacionalização da terra tinha amplo apoio no movimento trabalhista do século XIX. O congresso anual de 1886 do TUC (Trades Union Congress, federação sindical do Reino Unido) adotou-o e o ILP (Independent Labour Party, partido inglês) tomou-o como sua meta definitiva. Kier Hardie e o incipiente Labour Party também o tinham como objetivo.
Mas enquanto a ideia de nacionalização da terra é amplamente aceita pelos socialistas, a questão de a renda da terra ser direcionada para fins públicos não é tão bem compreendida. Por que haveria renda se a terra estiver nacionalizada?
Não seria melhor permitir o uso gratuito da terra?
Ajuda se abordarmos a questão em termos de três graus possíveis de desenvolvimento do socialismo:
1) Terras estatais enquanto ainda houver fazendas privadas.
2) Um sistema de fazendas cooperativas com propriedade estatal do solo.
3) Uma agricultura totalmente socialista e uma economia totalmente planejada.
1 – Atividade Agrícola Privada e Terra Estatal
A primeira situação foi prevista nas demandas alemãs de 1848. É isso também o que se tem hoje, pós-Deng, na China. Por que o Estado deveria arrendar nesse caso?
Bem, atividade agrícola privada pressupõe produção de mercadorias, e nesse caso produtores em bom solo venderão muito mais por seu esforço do que os produtores com solo pobre. Se não houver arrendamento, então haverá diferenciação de rendimentos. Haverá fazendeiros ricos e pobres. De fato, haverá renda da terra, mas ela será apropriada pelo usufrutuário.
“A teoria de Marx estabelece duas formas de renda fundiária: renda diferencial e renda absoluta. A primeira surge da natureza limitada da terra, sua ocupação por economias capitalistas, independentemente da existência da propriedade privada da terra ou do tipo de propriedade fundiária. Entre as fazendas individuais há diferenças inevitáveis derivadas de variados níveis de fertilidade do solo, sua localização em relação a mercados e a produtividade de capitais adicionalmente nela investidos. Sucintamente, essas diferenças podem ser resumidas (não esquecendo que elas surgem de causas diversas) como diferenças entre solos melhores e piores. Prosseguindo, o preço da produção agrícola é determinado pelas condições de produção não no solo de qualidade média, mas no pior solo, pois a produção do melhor solo isoladamente é insuficiente para suprir a demanda. A diferença do preço individual da produção e do maior preço da produção é a renda diferencial. (Lembramos o leitor de que por preço de produção Marx compreende o capital investido na produção somado ao lucro médio sobre esse capital.)
A renda diferencial inevitavelmente surgiria na agricultura capitalista mesmo que a propriedade privada da terra fosse completamente abolida. Sob a propriedade privada da terra, essa renda é recolhida pelo proprietário, pois a competição entre capitais obriga o produtor arrendatário a se contentar com o lucro médio sobre o capital. Quando a propriedade privada da terra for abolida, essa renda irá para o Estado. Essa renda não poderá ser abolida enquanto houver modo de produção capitalista.” (Lenin, 1907, O Programa Agrário da Social Democracia na Primeira Revolução Russa)
Se a terra for nacionalizada e não for arrendada, então a propriedade estatal da terra entra torna-se questionável. No que consistiria a propriedade estatal se os produtores não pagarem pela terra?
Qual a diferença disso para simplesmente distribuir a propriedade da terra para aqueles que a cultivam?
A questão central então seria se os usufrutuários da terra Estatal teriam o direito de vender sua concessão ou passá-la a seus descendentes. Se isso fosse permitido, a propriedade estatal seria reduzida ao que se chama no Reino Unido de propriedades FreeHold. Apesar de toda a propriedade fundiária no Reino Unido ser teoricamente atribuída à Coroa, essa não exerce efetivamente direito algum sobre ela, e o freeholder pode vende-la ou subarrendá-la.
Podemos ver na China um movimento nesse sentido com o estabelecimento dos Direitos de Uso da Terra, sob os quais o Estado designa a uma pessoa ou empresa o direito de uso da terra por determinado período em anos – 50 é um número comum. Em contraposição a isso, durante o período da NEP na URSS, o código fundiário estatal de 1922 impôs o arrendamento da terra utilizada por camponeses individuais3.
Então, na ausência do arrendamento estatal o perigo é que um sistema de propriedade estatal nominal rapidamente degenere para um sistema fundiário privado muito similar àquele da Grande Revolução na França. Sobre isso escreveu Marx:
“Na França, é verdade, o solo está acessível a todos os que o podem comprar, mas justamente essa facilidade trouxe consigo uma divisão em pequenos lotes cultivados por homens com meios muito pequenos e trabalhando a terra principalmente através de esforços deles próprios e das suas famílias. Essa forma de propriedade fundiária e o cultivo fragmentado que ela impõe, excluindo todas as aplicações de melhoramentos agrícolas modernos, converte o próprio lavrador no mais decidido inimigo do progresso social e, acima de tudo, da nacionalização da terra. Acorrentado ao solo sobre o qual tem de despender todas as suas energias vitais a fim de obter um retorno relativamente pequeno, tendo de entregar a maior parte de sua produção ao Estado, sob a forma de impostos, à corja judicial sob a forma de custas judiciais e ao usurário sob a forma de juros, completamente ignorante acerca dos movimentos sociais fora do seu campo restrito de atividade; não obstante, agarra-se com apego fanático ao seu pedaço de terra e à sua condição de proprietário meramente nominal. Desse modo, o camponês francês foi atirado para o mais fatal antagonismo com a classe operária industrial.” (Nacionalização da Terra, Marx, 1872)
2 – Agricultura Cooperativa e Terra Estatal
Na URSS dos anos 1930 a agricultura individual deu lugar a fazendas cooperativas. Diferentemente do que impunha a Lei de Terras de 1922, a prática de cobrar aluguel tinha sido abandonada. Mas as cooperativas ainda operavam como vendedoras de mercadorias. Poder-se-ia alegar que, uma vez que uma porção da colheita deveria ser vendida ao conselho de mercado do estado a um preço abaixo de seu valor, houvesse, de fato, algo como uma cobrança de aluguel.
Mas se isso fosse um aluguel, ele estaria mais relacionado com a renda fundiária absoluta do que com a diferencial, como discutido por Lenin, uma vez que a porção da produção a ser vendida para o Estado era fixa. Fosse essa uma renda diferencial, então as fazendas mais produtivas seriam obrigadas a vender uma porção maior de sua produção. Novamente, na ausência de renda diferencial, a propriedade estatal da terra era honrada mais como brecha do que como observância. Essa situação tinha sido explicitamente polemizada por Marx em 1872:
“No Congresso Internacional de Bruxelas, em 1868, um dos nossos amigos [César de Paepe, em seu relatório sobre propriedade fundiária: encontro do Congresso de Bruxelas da Associação Internacional dos Trabalhadores de 11 de setembro de 1868] disse: “A pequena propriedade privada da terra está condenada pelo veredito da ciência, a grande propriedade da terra, pelo da justiça. Não resta, então, senão uma alternativa. O solo deve se tornar propriedade de associações rurais ou propriedade de toda a nação. O futuro decidirá esta questão.” Eu digo, pelo contrário: o movimento social conduzirá a esta decisão de que a terra não pode ser possuída senão pela própria nação. Abandonar o solo nas mãos de trabalhadores rurais associados seria fazer a sociedade render-se a uma classe exclusiva de produtores.”
3 – Fazendas Estatais e Terra Estatal
Suponha, por outro lado, um sistema de domínio público da terra e agricultura planejada em fazendas nacionais. Os trabalhadores nessas fazendas seriam pagos da mesma maneira do que aqueles nas cidades – inicialmente em dinheiro e posteriormente em comprovantes de trabalho. Na ausência de dinheiro, existiria renda?
Não no sentido de fazendas nacionais pagando aluguel, não. Não faria sentido o pagamento de aluguel à nação pela própria nação. Mas de forma indireta, sim. Suponha que o setor público de varejo venda comida nas lojas por um preço (em dinheiro ou comprovantes de trabalho) equivalente ao trabalho marginal necessário para cultivar a produção. Então, efetivamente, uma vez que o trabalho médio necessário é mais baixo do que o custo de trabalho marginal, então há renda sendo obtida. Menos está sendo pago em comprovantes de trabalho para trabalhadores rurais do que está sendo cobrado pelo produto agrícola.
A diferença poderá então ser usada, como propõe o Manifesto Comunista, para custear serviços públicos gratuitos: saúde, educação etc.
Portanto, de uma forma oculta a renda fundiária diferencial estaria financiando serviços públicos em uma economia totalmente socialista.
Notas:
1)
- Todas as obrigações feudais, dívidas, corveias, dízimos etc., que têm até então pesado sobre a população rural, serão abolidas sem compensação.
- Principados e outras propriedades feudais, assim como minas, poços e assim por diante tornar-se-ão propriedade estatal. As propriedades serão cultivadas em larga escala e com os mais avançados aparatos científicos em benefício de toda sociedade.
- Hipotecas em terras camponesas serão declaradas propriedades estatais. Juros sobre tais hipotecas serão pagos pelo camponês ao Estado.
- Em localidades onde o arrendamento é desenvolvido, a renda da terra ou o “quit-rent” deverá ser pago ao Estado como um imposto.
As medidas especificadas nos itens 6, 7, 8 e 9 devem ser adotadas a fim de reduzir os fardos comunais, entre outros, até então impostos aos camponeses e pequenos arrendatários sem restringir os meios disponíveis para cobrir gastos estatais e sem colocar em risco a produção. O proprietário no sentido estrito, que não é nem camponês nem arrendatário, não toma parte na produção. Consumo de sua parte é, portanto, nada além de abuso.”
2)
“1.A TERRA
Esta Convenção acredita que a terra é a herança inalienável de toda humanidade, e que, portanto, seu atual monopólio é repugnante diante das leis de Deus e da natureza. A nacionalização da terra é a única verdadeira base da prosperidade nacional.
Com vistas a alcançar esse ultimato resolve-se que as seguintes medidas sejam sucessivamente incitadas ao público:
1) O estabelecimento de um Conselho Agrícola.
2) A restituição de terras pobres, comunais, da igreja e da Coroa ao povo.
Tais terras serão divididas em proporções adequadas. Todas as pessoas nelas estabelecidas sendo arrendatárias do Estado, pagando um aluguel proporcional por suas possessões.
3) Compensação por melhoramentos a arrendatários saintes.
Arrendatários não estarão atados a quaisquer pactos antigos ou rotação de culturas.
A revogação das leis de jogo.
Todos os aluguéis serão permutados em milho.
- O Estado estará habilitado a comprar terras, com o propósito de estabelecer lá a população, como arrendatários, individualmente ou em associação, pagando um aluguel ao Estado. O financiamento para esse fim a surgir do aluguel pagável pelas terras comunais, da igreja, pobres e da Coroa supracitadas, e tantas outras fontes quanto forem posteriormente determinadas.
- As terras compradas pelo governo não poderão ser vendidas novamente, mas serão ser mantidas como propriedade nacional permanentemente, a serem cedidas a arrendatários em tais quantidades, e sob tais condições a fim de garantir liberdade ao arrendatário e segurança ao Estado.
- A Suíte terá prioridade na compra, a preços justos vigentes.
- Provendo pela final e completa nacionalização da terra, o Estado deverá assumir posse do solo tão rapidamente quanto os interesses existentes puderem ser extintos por processos de lei, por morte, por rendição ou por quaisquer meios condizentes com a Justiça e um tratamento generoso de todas as classes.”
3) John N. Hazard, Soviet Property Law , 30 Cornell L. Rev. 466 (1945) Disponível em: http://scholarship.law.cornell.edu/clr/vol30/iss4/5