Apontamentos sobre a reprodução da classe no capitalismo dependente: da crítica feminista à superexploração do trabalho

Por Elisabeth Zorgetz Loureiro

Ao contrário de uma expansão em etapas relativamente definidas para uma ampla proletarização do mundo, em termos do trabalho assalariado, fabril ou formal – em que o desenvolvimento das forças produtivas invariavelmente se expandiria a todos os recantos do mundo em suas contradições e oportunidades para a classe trabalhadora –, o desenvolvimento capitalista indicou, desde o final do século XX, a desorganização desta classe como novo compasso do seu devir histórico, inclusive para as regiões centrais do conjunto. Portanto, uma narrativa da precariedade, imiseração e instabilidade cada vez maior se impõe acima de uma narrativa de progresso.

Longe de se inclinar às especulações e formulações do declínio do capitalismo, este debate se funda na necessidade, diante do panorama exposto, em instigar repetidamente a investigação e reflexão a respeito da reprodução da classe trabalhadora, principalmente em tempos de carências, conflitos, violências, inseguranças e vulnerabilidades, onde se faz ainda mais urgente compreender com quais mecanismos se reproduz a força de trabalho contida nos sujeitos trabalhadores, como eles se dinamizam e se preservam ideologicamente para garantir a manutenção reprodutiva total do capitalismo e sua estrutura extratora de vida, recursos naturais e lucros.

A emergência dos traços neoliberais a partir da década de 1970, juntamente com as ondas de movimentos feministas que questionavam mais energicamente o papel da mulher na sociedade capitalista veio acompanhada, na América Latina, pela “flexibilidade laboral e precariedade, economias voltadas à exportação, drásticas reduções e segmentação do mercado interno, fortes polarizações sociais, aumento da exploração e da superexploração e níveis elevados de pobreza e indigência” (OSORIO, 2012, p. 85). Muitos desses traços, particulares aos países dependentes, também elevou ao debate o problema da divisão sexual do trabalho num plano mais crítico e historicizado, para o qual o fenômeno da superexploração pode significar um aporte fundamental para compreender a que níveis de desgaste, violências, determinações sociais e laborais as mulheres estão expostas em estruturas dependentes. Para Luce (2018), no Brasil existe uma imbricação entre a superexploração e o patriarcado que merece um tratamento adicional de interpretação. A partir desta perspicaz sugestão, este trabalho é considerado e desenvolvido.

1. Reprodução da força de trabalho desde Marx

Ainda que caiba menos à Marx que aos pensadores de sua obra, a reprodução pode ter passado por um obscurecimento, mistificação ou apenas não ter sido vista precisamente desde então porque é alvo de uma profusão de significados (VOGEL, 2013), nem sempre relacionados de acordo com o método, ou mesmo dimensionados em sua própria existência junto aos demais significados. Apesar dos esforços de muitos autores, a partir de orientações diversas, a tarefa de refletir e encontrar alguma consonância sobre o que compreende a reprodução, mesmo numa unidade menor da categoria, como a reprodução da força de trabalho, ainda se demonstra aberta à possibilidades e novas tentativas de ponderações a partir da proposta de o Capital.

Estabelecemos, desde pronto, que a reprodução da força de trabalho é a categoria central deste trabalho, articulada, necessariamente, com a reprodução da classe trabalhadora e da totalidade do modo de produção e sociedade. Essa centralidade elencada aqui não diz respeito a qualquer importância primordial que queremos conferir a esse momento da reprodução, em detrimento dos demais, mas é tomada para auxiliar no próprio caminho que a reflexão pode percorrer, partindo de categorias menores para outras mais articuladas, que só podem ser postas ao movimento do concreto a partir da dialética. É imprescindível ter em conta que “o processo de abstração, põe de lado aspectos para que se possa compreender a parte estudada mais adequadamente; no entanto, esses aspectos não são abolidos (…)” (IASI, 2011, p. 136).

Marx (2013) adianta, ao início do capítulo Reprodução Simples (livro I, O Capital), que se a produção tem forma capitalista, com a reprodução se dá o mesmo. Neste momento ele delineia sua explicação a respeito de como a forma-salário é uma parte do produto que ele mesmo reproduz, continuamente, e se constitui, antes desse retorno em salário, como capital variável. Assim, ele revela como essa transação, através da forma-dinheiro e da mercadoria, encobre ou disfarça a apropriação do produto realizado pelo trabalho humano e sua exploração na extração de mais-valia. Essa consideração de Marx parece muito simples, a princípio, mas é importante para compreender a trajetória do seu pensamento sobre a contribuição do produto, ou do valor de uso contido nele, para a reprodução da força de trabalho. Em seguida, Marx pontua:

O capital variável é, pois, apenas uma forma histórica particular de manifestação do fundo dos meios de subsistência ou fundo de trabalho de que o trabalhador necessita para sua autoconservação e reprodução, e que ele mesmo tem sempre de produzir e reproduzir em todos os sistemas de produção social. (MARX, 2013, p. 782)

Essas mercadorias, ou produtos, feitos pelas mãos dos trabalhadores, se transformam em “valor que suga a força criadora de valor” (MARX, 2013, p. 786), em decorrência do estado de alienação em que o trabalhador já entra no espaço de produção. Enquanto o trabalhador produz a riqueza objetiva na forma de mercadorias e o capital que nelas aparece, Marx atribui ao capitalista a produção contínua da força da trabalho enquanto fonte subjetiva de riqueza,

(…) separada de seus próprios meios de objetivação e efetivação, abstrata, existente na mera corporeidade do trabalhador; numa palavra, produz o trabalhador como assalariado. Essa constante reprodução ou perpetuação do trabalhador é a sine qua non da produção capitalista. (MARX, 2013, pp. 786-787)

Marx (2013) também separa o consumo do trabalhador a partir de uma dupla natureza. A primeira face dela, o seu consumo produtivo, diz respeito ao consumo dos meios de produção para sua transformação em objetos ou produtos de valor. Nesse sentido, o próprio trabalhador é consumido no processo de consumo da sua força de trabalho. A segunda, o consumo individual, consiste no consumo dos meios de subsistência garantidos pela forma-salário, ao comprar a força de trabalho. Contudo, os dois consumos, ao diferirem inteiramente, a partir da premissa que o trabalhador pertence ao capitalista no primeiro e a si mesmo no segundo, executando “funções vitais à margem do processo de produção” e tendo como resultado a “vida do próprio trabalhador” (2013, p. 787), fornecem elementos para a crítica do que se compreende por reprodução da força de trabalho em Marx. Esse tipo de confusão se reforça ainda mais diante desta passagem, a respeito de como se dá o consumo dos bens obtidos pelo dinheiro enquanto salário:

Nesse caso, ele se abastece de meios de subsistência para manter sua força de trabalho em funcionamento, do mesmo modo como se abastece de carvão e água a máquina a vapor e de óleo a roda. Seus meios de consumo são, então, simples meios de um meio de produção, e seu consumo individual é consumo imediatamente produtivo. (MARX, 2013, p. 787)

A partir dessa afirmação, poderia se inferir que Marx tenta apresentar o processo de consumo de produtos destinados à subsistência, os bens-salário, como fundamental ao fazer-se do trabalhador, enquanto sustentação da força de trabalho e reprodução da mesma, ainda um pouco além da própria função que exerce a mercadoria enquanto objeto produzido pelo trabalhador e consumido por ele mesmo, por si só meio de reprodução sistêmica dentro de interações materiais. Esse ponto não busca oferecer ensejo à questão do trabalho produtivo ou improdutivo dentre as atividades de reprodução da força de trabalho [1], mas retornar às palavras utilizadas por Marx para prospectar alguma orientação no que diz respeito à manutenção da vida, formação e acúmulo de valor da mercadoria força de trabalho: se o consumo é produtivo, os procedimentos do consumo também o são ou se trata apenas de elucidar sobre o ciclo do capital através da mercadoria produzida e consumida por aquele que vende sua força de trabalho? [2]

Quando Marx (2013, p. 317) trata da compra da força de trabalho, considera-o “elemento histórico e moral”. Nestas passagens de O Capital se encontra o espaço estrutural que diz respeito à reprodução dessa “mercadoria peculiar” (2013, p. 322), que

Se não é vendida, ela não serve de nada para o trabalhador, que passa a ver como uma cruel necessidade natural o fato de que a produção de sua capacidade de trabalho requer uma quantidade determinada de meios de subsistência, quantidade que tem de ser sempre renovada para sua reprodução (MARX, 2013, p. 320).

Para Marx realmente parece clara a centralidade dos produtos à subsistência da vida, cujo “consumo serve para reproduzir os músculos, os nervos, os ossos, o cérebro dos trabalhadores existentes e para produzir novos trabalhadores” (2013, p. 788). A princípio, então, pode-se dizer que a dimensão material, o acesso ao produto, assume um papel primordial à reprodução da força de trabalho, enquanto condição de existência da classe. Ou ainda, o fundamento material da reprodução e como este é indispensável à reprodução dos trabalhadores, que pode ser renovada em termos de corporeidade vida ou em termos de reprodução biológica para que novos trabalhadores integrem as forças produtivas. Contudo, compreendendo que ler Marx não pode ser tomar as primeiras considerações e negligenciar as que a sucedem, a partir do próprio crescente, retorno e confrontamento que o método supõe, continuemos traçando a análise. A reprodução também é definida, logo depois, como trabalho social que produz o trabalhador.

Seu valor, como o de qualquer outra mercadoria, estava fixado antes de ela entrar em circulação, pois uma determinada quantidade de trabalho social foi gasta na produção da força de trabalho, porém seu valor de uso consiste apenas na exteriorização posterior dessa força. (MARX, 2013, p. 321)

Contudo, apesar de Marx expor com clareza que a renovação desta mercadoria, ou a renovação da vida do portador de força de trabalho também passa, imprescindivelmente, pelo “valor dos meios de subsistência fisicamente indispensáveis” (2013, p. 320) e isto define, num limite mínimo, o próprio valor contido no trabalhador, não se detém na forma ou meio pelo qual estes meios de subsistência são transformados [3] ao uso concreto dos trabalhadores ou outras expressões domésticas da reprodução. Isso se reafirma, por exemplo, quando ele explica o consumo individual como “a reconversão dos meios de subsistência, alienados pelo capital em troca da força de trabalho, em nova força de trabalho (…)” (MARX, 2013, p. 788). Como essa reconversão ocorre, embora se saiba que não magicamente, não é um procedimento mencionado, no texto, para Marx. Com isso, também não se busca apontar alguma negligência do autor sobre o tema, e assim defendemos por duas razões: a) Como ponderam as próprias autoras feministas da crítica à reprodução em Marx, o autor não vivenciou, no desenvolvimento do capitalismo de seu tempo, a formação da família nuclear para a qual o trabalho doméstico, em suas várias dimensões, desempenhado por mulheres, assumiu um papel cada vez mais determinado, desigual, ideológico e fundamental ao disciplinamento da classe trabalhadora; b) Também defendemos que Marx, debruçando-se de forma original sobre a crítica ao capitalismo, através do materialismo histórico dialético, forneceu as bases imprescindíveis para que outros pensadores se dedicassem à crítica da reprodução e do patriarcado sob o capitalismo, sem a exigência problematizadora de sua dedicação específica a esse desdobramento da categoria.

Pertinente ao terreno das incertezas, é tão certo quanto incerto que Marx se dedicasse ao estudo do desenvolvimento da família nuclear, do papel das mulheres trabalhadoras ou das minúcias da reprodução se sua existência se estendesse um pouco mais sua existência [4]. Recusamos a hipótese de desinteresse do autor sobre implicações do capitalismo sobre a história dos homens e mulheres, associada ou separadamente, senão não conheceríamos uma obra como Sobre o suicídio [5], por exemplo.

Federici (2008), no entanto, conclui que Marx não percebeu completamente a questão estratégica, tanto para o desenvolvimento capitalista quanto sobre a luta contra ele, “as relações pelas quais nossas vidas e a força de trabalho são reproduzidas, começando com a sexualidade, a procriação e, acima de tudo, o trabalho doméstico não remunerado das mulheres” (2008, p. 20). De fato, Marx parece se esquivar ou ignorar a questão quando propõe que “o capitalista pode abandonar confiadamente o preenchimento dessa condição ao impulso de autoconservação e procriação dos trabalhadores” (2013, p. 789). Ainda que a autoconservação e procriação sejam realizações que não existam somente no esforço racional e objetivo dos trabalhadores, essa passagem expõe um Marx fiel a uma abordagem puramente naturalista da perpetuação dos seres humanos como um todo, mas em condições particulares, da classe trabalhadora. Esse é ponto nevrálgico para a crítica de Federici, Dalla Costa e Fortunati sobre Marx e o marxismo ortodoxo que se desenvolveu a partir desta premissa. De certa forma, isso aparece com sugestões de aparência paradoxal em Marx, quando diz, por exemplo que “a reprodução da classe trabalhadora exige, ao mesmo tempo, a transmissão e a acumulação da destreza de uma geração a outra (2013, p. 790)”. Escapa a Marx, mesmo consciente da necessidade de acúmulo, cuidado e formação de novos trabalhadores, que essa transmissão não se dá de forma automática ou propriamente da apreensão social dos legados do seu momento histórico, mas através de infindáveis processos educativos, cuidados, encargos e acolhimentos? Esta ainda é uma questão latente para o feminismo marxista. Silvia Federici (2008) percebe o capitalismo como um sistema social de produção que não reconhece a produção e reprodução dos trabalhadores como uma fonte de acumulação de riqueza, mistificando-o como um recurso natural ou serviço pessoal, enquanto lucra com o trabalho envolvido em tantas esferas da vida. Marx não demonstra se orientar em direção contrária, posto que

(…) a reprodução da força de trabalho, que tem incessantemente de se incorporar ao capital como meio de valorização, que não pode desligar-se dele e cuja submissão ao capital só é velada pela mudança dos capitalistas individuais aos quais se vende, constitui, na realidade, um momento da reprodução do próprio capital. Acumulação do capital é, portanto, multiplicação do proletariado. (MARX, 2013, p. 837)

Portanto, se a multiplicação do proletariado é, ao mesmo tempo, acumulação do capital, cabe reconsiderar, no desenvolvimento histórico do capitalismo que permite redimensionar qual tipo de trabalho humano se envolve nas atividades de reprodução de força de trabalho, a relevância teórica que assume o trabalho não pago das mulheres nas cadeias de valor [6]. É diante dessa reflexão que o trabalho reprodutivo foi alvo de um esforço pela sua desnaturalização, em vistas de expor a exploração das mulheres sob o capitalismo.

Para desnaturalizar, ou seja, objetivar política e socialmente a categoria de reprodução, mulheres se engajaram a partir da década de 1970 em Campanhas pelo Salário Doméstico [7] na Itália, através da mediação dos salários como foco de atenção ao problema. Por um lado, como uma demanda, ou pelo reconhecimento provocado pela instituição dessa demanda, seu objetivo era expurgar da exploração de gênero sua carga afetiva, para combater a desvalorização estrutural do trabalho reprodutivo nas relações sociais. A demanda por salários foi pensada dentro de uma estrutura marxista tradicional, na suposição de que o poder do proletariado é mensurável em termos de tempo de trabalho socialmente necessário.

Atualmente, e cada vez mais, é importante notar que apesar da reprodução dos trabalhadores ser mediada pelo salário, isso não elimina as formas de reprodução doméstica que independem dele. Os salários, em geral, não são suficientes para oferecer aos trabalhadores os itens ou serviços necessários para garantir seus meios de reprodução, numa relação direta com o mercado. O Patriarcado do salário, de acordo com Dalla Costa (1995), seria exatamente a expressão dessa mediação do salário predominantemente masculino, enquanto o trabalho reprodutivo de mulheres e crianças é realizado. Através dessa mediação, não seria mais interessante extinguir as formas de reprodução proletária independentes do salário, mas que a sociedade fosse reorganizada com a formação da família nuclear moderna como uma célula de sobrevivência fundamental diante da crescente competitividade nos mercados de trabalho. O espaço doméstico familiar será a fortaleza do crescimento e controle da classe trabalhadora, à medida que:

O trabalho doméstico compreende uma enorme porção da produção socialmente necessária. Isto é, no processo de acumulação de capital, o quantum de mercadoria força de trabalho é imprescindível, uma vez que é através de exploração do dispêndio de energia socialmente necessária para a produção de mercadoria que se gera a mais-valia (NOGUEIRA, 2011, p. 168).

Além da participação física nas atividades de reprodução da força vital dos trabalhadores, também existem os afetos, emoções e preocupações que definem a competência da trabalhadora doméstica não remunerada ou mesmo remunerada e profissionalizada. Assim é definida a modalidade de uma transferência histórica e socialmente organizada sobre a esfera privada artificialmente apartada do campo do trabalho produtivo [8]. Diante do reconhecimento deste processo, Federici (2008) advertiu que

Enquanto o trabalho reprodutivo for desvalorizado, enquanto for considerado um assunto privado e a responsabilidade das mulheres, as mulheres sempre enfrentarão o capital e o Estado com menos poder que os homens e em condições de extrema vulnerabilidade social e econômica (FEDERICI, 2008, p. 8, tradução das autora)

Num complexo de relações de gênero, o papel que as mulheres desempenham no aumento da produtividade da força de trabalho foi historicamente importante e continua sendo funcional para o crescimento econômico. Portanto, o papel atribuído às mulheres é o fruto da condição de subordinação e dependência do que emprego assalariado do cônjuge significa, e, ao mesmo tempo, vetor de reprodução dessa condição.

Num sentido lógico, o capitalismo não necessita especificamente da desigualdade de gênero e poderia eliminá-la, mas historicamente a questão não é banal. Ou seja, a resposta deve ser buscada no nível da análise histórica concreta, rumo a um conhecimento em níveis de abstração mais densamente constituídos [9]. A fim de tornar mais clara e específica a definição dos objetivos e resultados esperados por este trabalho, apesar da aceitação do conceito tradicional de reprodução social como reprodução de uma sociedade ou um sistema social em sua totalidade, aqui será adotado o conceito desenvolvido pelos estudos do feminismo marxista, no qual a reprodução se refere à maneira pela qual o trabalho físico, emocional e mental necessário para a produzir e reproduzir trabalhadores é socialmente organizado [10]. A reprodução social, neste sentido, designa, então, processos e relações que são lógico e historicamente necessários. Assim,

A reprodução do capital assume formas diversas em diferentes momentos históricos, devendo se readequar às mudanças produzidas no sistema mundial e na divisão internacional do trabalho, reorganizando a produção sobre novos eixos de acumulação e/ou novos valores de uso. Isso permite historicizar a reprodução do capital e diferenciar os padrões que se estabelecem (OSORIO, 2012, p. 41)

Essa reflexão suscita a necessidade de se investigar o tema, entre as diferentes áreas do conhecimento, hoje compartimentalizado, uma vez que a reprodução social circunscreve os processos essenciais de gênero e raça no capitalismo, sua relação com a remuneração, e por conseguinte, como categoria de atividade necessária para a acumulação e valorização de capital. A associação do trabalho doméstico, escravo, servil com o gênero e a raça é historicamente constituída. Mas cabe perguntar como as relações raciais e de gênero podem ser posicionadas na lógica do modo de produção capitalista.  No caso do proletariado, seu lugar na sociedade é ser aquele que não possui nada além de sua própria força de trabalho, que deve vendê-la para sobreviver e estar constantemente sujeito à ameaça de serem expulsos da sociabilidade produtiva. No caso das mulheres, este conjunto de relações sociais estruturantes certamente envolve a maior parte do que é entendido por reprodução social, o que adiciona alguma peculiaridade ao sujeito universal do trabalhador.

Mariarosa Dalla Costa e Selma James (1972) esboçaram essa questão em “The Power of Women and the Subversion of the Community”, fazendo a distinção entre trabalho doméstico e produtivo, sendo o último diretamente produtivo e mediado por relações de produção específicas da sociedade capitalista. Este modo de produção e de sociedade, ao instituir a configuração ideológica de sua estrutura familiar, liberou o homem da participação nas atividades domésticas de modo que ele fosse plenamente disponível para a exploração direta, disponível o suficiente até um máximo que não deprecie completamente sua força de trabalho ou consuma totalmente seu fundo de vida [11], para que uma mulher possa reproduzi-lo em suas máximas capacidades.

Dalla Costa e James indicam que o trabalho assalariado é diretamente mediado pelas relações de classe, confiando em uma esfera de reprodução pelas mulheres, realizada pela instituição da família. Para elas, esta forma de exploração “ha sido aún más efectiva porque la falta de un salario la ocultaba. Es decir, el salario controlaba una cantidad de trabajo mayor que la que aparecía en el convenio de la fábrica” (1972, p. 5). Ficou em aberto, porém, a identificação deste trabalho feminino de reprodução sendo próprio da atuação do trabalho vivo na criação do valor de uso de uma mercadoria na forma capitalista, ou se seria apenas um resquício de formações tradicionais que perduraram na história. Leopoldina Fortunati (1995) busca resolver essa lacuna, explicando como dentro do processo de reprodução outra força de trabalho distinta é consumida, a da mulher enquanto trabalhadora doméstica. A dualidade das forças de trabalho sobre gênero, correspondendo aos trabalhadores provedores e mulheres donas-de-casa é colocada em perspectiva: os valores de uso de suas respectivas forças de trabalho ocorrem em tempo e espaços diferentes. Fortunati (1995) também elucida que na produção de mercadorias, o valor de troca da força de trabalho como capacidade produtiva é gerado e seu valor de uso é consumido, enquanto na reprodução, o valor de uso da força de trabalho é produzido e seu valor de troca é consumido.

A crítica feminista das autoras italianas localizou um problema não explorado dentro do pensamento marxista tradicional, ou mesmo um fetichismo conceitual da reprodução e da força de trabalho. Federici (2008; 2010) se dedicou à desnaturalização sobre a forma como a força de trabalho é reproduzida. Atenta à Marx, que revela a origem do lucro como uma forma histórica particular de exploração de classe, ela também investigou a forma histórica da exploração de gênero sob o capitalismo, mas sem reivindicá-lo como produtivo em termos de valor12. Em sua obra de “El Patriarcado del Salario” deixa claro que ao tratar a reprodução como parte da produção capitalista “(…) no estamos expresando un deseo de ser legitimadas como parte de las «fuerzas productivas»; en otras palabras, no es un recurso al moralismo. Solo desde un punto de vista capitalista ser productivo es una virtud moral” (2018, p. 32). Pelo contrário, como também apoiado por Fortunati (1995), ele deve permanecer externo ao processo de acumulação, como um fator socialmente necessário, mas não socialmente determinado. Ou seja, entre cada momento de compra e venda de força de trabalho – a reprodução do circuito da própria força de trabalho –, há uma esfera de criação de valor de uso, de criação e manutenção da força de trabalho. Da mesma forma que o ciclo do capital-mercadoria se desdobra em seus próprios momentos, existe um desdobramento análogo na esfera não diretamente produtiva da reprodução da força de trabalho para esta vertente crítica do feminismo.

2. Reprodução e superexploração, um diálogo possível e necessário

A trajetória de reforço ideológico entre o espaço doméstico e os espaços de trabalho produtivo no centro do capitalismo industrializado obscureceu as formas como cada domínio influi sobre o outro. Na história das mulheres, seja no continente americano e ou na Europa, embora a maioria das mulheres precisasse trabalhar de forma extenuante onde residiam ou fora desse espaço, a fim de manter sua família, o apelo à domesticidade e docilidade das mulheres prevaleceu em termos de ideologia reinante. Essas mulheres eram camponesas e trabalhadoras de subsistência, assalariadas industriais, donas de casa, empregadas domésticas ou escravas. Todas envolvidas em transformar valores de uso em bens de consumo aperfeiçoados de alguma forma. Eram parteiras, curandeiras, acompanhantes, religiosas, professoras, cuidavam das crianças, doentes e dos homens em suas necessidades. As tarefas do cuidado eram entremeadas no tecido da vida cotidiana, independente da inserção nos espaços tradicionalmente produtivos.

Na América, especialmente, a estruturação da desigualdade foi elaborada por meio de hierarquias de gênero, raça e classe, como mais um mecanismo de controle de enormes contingentes populacionais e de trabalhadores. O papel atribuído às mulheres se engendra, ao longos dos séculos e apesar de todas as atividades desempenhadas, produto da condição de subordinação e dependência do que emprego assalariado do cônjuge significa, e ao mesmo tempo, vetor de reprodução dessa condição. Embora esse mecanismo fosse uma característica estrutural do regime fordista, molda expansivamente a sociedade de trabalho pós-fordista, através da negação do trabalho reprodutivo que permite com maior facilidade o desengajamento estatal nos gastos públicos de reprodução, a transferência desses fundos indiretamente ou diretamente para corporações, instituições financeiras e a acumulação de capital, e o acréscimo da exploração na esfera salarial e não salarial.

Federici compreende este processo como uma crise reprodutiva sem precedentes, com alimentos escassos ou de alto custo ao consumo local da maior parte da população, que por consequência dos ajustes estruturais tem precisado enfrentar ao mesmo tempo “a la escalada de precios, la congelación salarial, la devaluación de las divisas, el desempleo masivo y los recortes en los servicios sociales” (2013, p. 234). Embora traços de uma crise de reprodução se apresentem em todo o mundo atualmente, será na América Latina, na África e nos países pobres de outros continentes que ela expressa efeitos mais agressivos. Os altos níveis de desemprego, informalidade e economias subterrâneas representam muitos traços para chegar à constatação da existência de grossas camadas de trabalhadores existindo como parte de um exército de reserva agigantado, que transbordam fronteiras nacionais.

Marx assinala, tendo aos olhos a primeira fase de crises e soerguimentos industriais do capitalismo do século XIX, como tais oscilações “conduzem ao recrutamento da superpopulação e, com isso, convertem-se num dos mais enérgicos agentes de sua reprodução (2013, p. 859). Com isso, demarca um fenômeno para além do simples instinto de autopreservação e procriação, mas sua própria teoria populacional, a dos níveis de trabalhadores dentro ou fora do assalariamento, que atua como regulador universal de salários, status de exploração, organização e força política da classe trabalhadora [13]. Sem perdermos de vista a crise de reprodução de Federici, é fundamental perguntar que outras categorias orientam ou podem orientar os modos de reprodução da classe em estruturas dependentes, combinadas entre si para um recrudescimento ainda mais contraditório da reprodução total do capitalismo [14], tais como o exército de reserva e a superexploração do trabalho.

Para os autores da Teoria Marxista da Dependência, como decorrência da equalização da taxa de lucro no mercado internacional, a transferência de mais-valia dos países capitalistas subdesenvolvidos para os industriais tem como base o acréscimo da exploração do trabalho. Esse acréscimo, no entanto, não deve ser confundido com a taxa de mais-valia, mas diz respeito à “agudização, exacerbação, exasperação da exploração capitalista” (LUCE, 2018, p. 152), símiles literários para Ruy Mauro Marini, pensador fundamental da dependência latinoamericana.

Compreender como se engendra a composição da reserva de trabalhadores em países dependentes é fundamental para a percepção do fenômeno da superexploração [15] que nem sempre se apresenta de forma explícita no mundo do trabalho. A existência do EIR pressiona o exército ativo às precarizações e violações de sua força de trabalho. Luce explica como

A força de trabalho, na superexploração, além de estar submetida às determinações específicas desta, sob as quais é agudizada sua tendência negativamente determinada, que atua de modo sistemático e estrutural sob as economias dependentes, provocando o desgaste de tal maneira em que a substancia viva do valor não é restaurada em condições normais (isto é, nas condições sociais dadas), ocorrendo o rebaixamento do seu valor (LUCE, 2018, p. 155)

Portanto, a superexploração pode condicionar a experiência do trabalho das mulheres com especificidades, além de constituir prerrogativa do capitalismo dependente, que conta com seu padrão de reprodução específico, categoria que “surge para dar conta das formas como o capital se reproduz em períodos históricos específicos e em espaços geoterritoriais determinados (OSORIO, 2012, p. 40). Combinada à extração de mais-valia, também se realiza a expropriação de parte do valor-trabalho necessário ao trabalhador para repor sua força dispendida (o trabalho é remunerado abaixo do seu valor e seu fundo de vida é consumido ao esgotamento prematuro). Para as mulheres trabalhadoras neste contexto, a superexploração alcança impactos diferenciados através da minoração dos salários em relação aos homens (já desvalorizados), tal como a reprodução doméstica com o trabalho não remunerado, em que se torna difícil mensurar precisamente ao longo das décadas. Embora o trabalho doméstico seja “um processo de trabalho que não gera mais-valor, não valoriza o valor produzindo mais-valia” (IASI, 2011, p. 139), consiste em um “serviço que produz parte do valor da força de trabalho, aquele referente à sua manutenção e reposição diária” (p. 140), ou seja, sua existência na reprodução social total para uma estrutura assentada na superexploração do trabalho assalariado, é uma categoria-chave para compreender a persistência do capitalismo dependente.

A desvalorização salarial num campo de trabalho predominantemente feminino e profissionalizado atesta o fenômeno da desigualdade laboral com uma natureza dúbia na sociedade: como sintoma das relações patriarcais, mas também como mecanismo da dinâmica produtiva capitalista. Um salário insuficiente ou inexistente, tal como o trabalho com sobredesgaste, pelo prolongamento da jornada laboral ou intensificação do trabalho, indicam processos de exploração redobrada, na medida em que se viola o valor da força de trabalho (OSORIO, 2012). Marini (1998) apontou uma preocupação especial a respeito da desigualdade salarial entre os membros da família, em que os salários das mulheres (e crianças, à época) em geral representavam uma proporção menor que o homem, ao que “nos lleva a considerar las condiciones de trabajo propias de esos miembros: la mujer y los menores de edad” (1978, p. 215)16. Da mesma forma, chama atenção sobre a formalmente considerada inatividade das mulheres donas de casa, afirmando que estas constituem “una parcela real del ejército industrial de reserva” (1978, p. 205).

Por outro lado, o acréscimo salarial com salários masculinos e femininos, pagos no trabalho fora da esfera doméstica, na mesma unidade familiar, permite entrar diretamente na questão no esgotamento do fundo de vida desses trabalhadores, e especialmente, trabalhadoras. Isso se explica a medida que mesmo sendo possível ter acesso à quantidade necessária ou maior de bens que assegurem a reprodução do trabalhador ou trabalhadora, estes “não podem dispor das horas e dias de descanso necessários para repor o desgaste físico e mental de longas e intensas jornadas” (OSORIO, 2012, p. 51). A acúmulo das jornadas de mulheres trabalhadoras se expressa, de forma ainda difícil de mensurar, entre trabalho remunerado, fora de casa, e não remunerado, dentro dela.

Embora homens e mulheres sejam superexplorados nestas estruturas, algumas diferenças são identificadas diante da capacidade de reposição da força de trabalho feminina. Cecenã (1983, p. 11) explica que aos custos incrementados nesta reposição, “se suman aquellos que provienen de la mercantilización de las tareas domésticas, de tal manera que el resultado global es um aumento del costo de reproducción da fuerza da trabajo (…)”, que ou são reduzidos em termos de bens-salários ou incrementariam em geral o valor da força de trabalho [17]. De fato, diante da deterioração do salário real, e o aumento ao longo do tempo do valor da sua força de trabalho, se faz “aún más dramática la brecha creciente entre dicho valor y el ingreso real que percibe” (MARINI, 1978, p. 214). Essa distorção tem impacto direto nas condições de reprodução da família, e, portanto, trazem custos diretos ao acréscimo da exploração das mulheres na esfera doméstica, seu peso em camadas específicas do exército de reserva, como também na necessidade de cumprir duplas ou triplas jornadas de trabalho.

Outro ponto muito importante assinalado por Ceceña é que o papel da mulher e mãe na sociedade capitalista, que reproduz a discriminação de gênero e os “códigos morales burgueses”, constitui uma verdadeira arma do capital para a extração de maiores massas de mais-valia, “mediante no sólo la explotación sino na sobrexplotación de la fuerza de trabajo femenina” (CECEÑA, 1983, p. 12). Nesse sentido, a parceria entre o patriarcado e o capitalismo pode ser entendida como uma relação de reforço mútuo: o primeiro ganha na subjugação das mulheres e na reprodução da dominação masculina, à medida que o último expande o controle e disciplinamento da força de trabalho. Essa parceria é apoiada pelo Estado, tendo em conta a necessidade de exercer controle, produzir consensos e consentimentos políticos, evitando a deflagração de conflitos sociais decorrentes de crises reprodutivas.

É importante pontuar que a reprodução doméstica através da família nuclear, uma vez historicamente determinada na formação das sociedades, não é funcionalmente indispensável à reprodução do capitalismo. Este poderia recorrer, e assim o faz em muitos momentos, a outros meios para reabastecer e manter controlada sua necessidade constante de força de trabalho, através da exploração da imigração ou do trabalho escravo, por exemplo. Contudo, enquanto exceções à norma do trabalho assalariado e/ou formal, e do seu modo de reprodução, diferem significativamente do trabalho invisível e ideológico que é o trabalho doméstico. Como relembra Iasi (p. 137, 2011), “por uma divisão de trabalho fundada numa divisão de gênero (…) um dos personagens desse processo ficou escondido no lar, distante das relações mercantis capitalistas”.

A contribuição da ideologia patriarcal para a reprodução da acumulação capitalista e da legitimação do Estado burguês desempenhou um papel central no exercício da coerção e comando sobre a população sem uma apresentação formal de poder. Essa hegemonia teve uma expansão significativa com a emergência neoliberal: a padronização do tempo de trabalho fordista foi amplamente substituída pela diversificação no tempo neoliberal, pautado na desregulamentação, dispersão, mobilidade e respostas flexíveis no mercado de trabalho (HARVEY, 1992). A complexidade em que moldam esses novos processos evidenciam como a busca pela compreensão dos mecanismos de reprodução exigem categorias e capacidades não fragmentárias de análise que ultrapassam o que as categorias tradicionais da sociologia do trabalho permitem vislumbrar.

3. A composição da classe como resposta fundamental

Marx nos apresenta o proletariado definido por sua separação dos meios de produção e por sua compulsão de se reproduzir reproduzindo, assim, o capital. A reprodução do proletariado, que confere o valor de sua força de trabalho, é alinhavada à reprodução do capital através do funcionamento normal [18] da lei do valor: se os salários se elevarem demais, o capital empregará menos trabalhadores, criando um exército de reserva que exerce pressão descendente sobre os salários, em geral.

Quando esses proletários, dentro e fora da esfera da condição de assalariamento, se organizam à iminência de ameaçar a reprodução do capital, a violência do Estado é desencadeada para conter as perturbações que possam ocorrer. As limitações imperativas à organização dos trabalhadores, ambas baseadas nas tendências históricas ao capitalismo, desde sua formação ou processo de acumulação primitiva, são a criação e acentuação de diferenças internas ao proletariado em termos de gênero e raça, conduzindo à competição mais voraz e alheada da tomada de consciência de classe e a composição da população excedente ao trabalho remunerado.

As camadas do exército de reserva, como já mencionado, pressionam os salários, isto é, a parte monetária da reprodução dos trabalhadores. O capital produz constantemente uma população ativa relativamente redundante, supérflua para a realização de seu impulso de valorização (MARX, 2011). Embora essa composição se dê nos países centrais principalmente através da expansão do maquinário e extração da mais-valia relativa, as populações excedentes dos países dependentes apresentam um crescimento expressivo, reforçado pelo crescimento demográfico e espoliação de terras ainda em pleno curso. Com a crescente imiseração do proletariado, a contradição crescente entre capital e trabalho se assevera, ou seja, os ciclos reprodutivos do capital e do trabalho se tornam cada vez mais dissociados em todas as partes do mundo, mas necessariamente na sua fração estruturalmente dependente. Como efeito do declínio histórico no emprego formal, se apresenta cada vez mais o assentamento do desemprego de forma consolidada em muitos países, o crescimento de economias ilegais, ou mesmo a opção, diante do desalento, de outras formas de reprodução.

Marini (1999) chama atenção ao que Marx aponta de fundamental sobre a reprodução, que é o crescimento do número de trabalhadores assalariados ao mesmo passo que o desenvolvimento da produção mercantil capitalista, ponderando que isso não implique que sua obra conceba uma sociedade composta “exclusivamente por capitalistas y obreros” (MARINI, 1999, p. 279). As reflexões de Marini a respeito da classe trabalhadora, categoria que deve centralizar o debate da reprodução total e doméstica a partir de sua perspectiva estratégica, são fundamentais a partir deste ponto. Se “para definir una clase social en un momento histórico dado no basta, pues, considerar la posición que objetivamente ocupan los hombres en la reproducción material de la sociedad” (MARINI, 1999, p. 282), as possibilidades para uma compreensão ampliada e dinâmica da classe diante da contribuição do trabalho social atribuído às mulheres estão dadas. Além disso, a reprodução dessa mercadoria especial chamada força de trabalho também equivale à reprodução da classe trabalhadora e da sociedade de classes, o que implica um vasto conjunto de dispositivos (ideológicos, institucionais, econômicos, políticos e assim por diante) que precisam ser analisados, historicizados e postos em movimento para compreender seu conteúdo. Por isso a reprodução social total, a partir da perspectiva de um mundo entre países capitalistas centrais ou dependentes, oferece uma importância fundamental sobre populações excedentes ao trabalho assalariado.

Sempre atento às minúcias da textualidade de Marx e empenhado no desenvolvimento das capacidades de abstração que a crítica do capitalismo periférico como parte indissociável da totalidade exigiam da teoria, Marini tem em conta que através da luta de classes, em determinadas condições, trabalhadores que por sua posição na reprodução econômica não estejam relacionados diretamente à classe operária ou mesmo que se consideram estranhos a ela “pueden coincidir con sus aspiraciones y asimilarse al movimiento obrero” (p. 282). Esse espectro é amplo, e na América Latina pode significar uma miríade de outras formas e sujeitos da reprodução como os grupos comunitários, as redes de cooperação de economias populares, profissionais liberais e intelectuais, povos indígenas etc. A “existência predestinada (…) sua posição na vida e seu desenvolvimento pessoal atribuído” (MARX, 2007) pela classe à qual pertencem oferece a liga que une verdadeiramente a classe, e que se forma, somente, em luta de classes.

Para a sociedade burguesa, as instituições e instrumentos que a acompanham, cabe “bloquear esa percepción, a disolver la unidad latente entre los trabajadores antes que ésta tome forma, a cerrarle el paso a la comprensión de los hechos reales que constituyen la esencia del orden capitalista y de su desarrollo.” (MARINI, 1999, p. 282). Isso pode enfrentar as posturas de negação e invisibilidade sobre determinados momentos e formas de reprodução, cujo objetivo é alcançar uma universalidade e uniformidade da classe, ignorando os traços oblíquos do antagonismo com o capital. Marini reforça, ainda, que “restringir la clase obrera a los trabajadores asalariados que producen la riqueza material, es decir, el valor de uso sobre el que reposa el concepto de valor, corresponde a perder de vista el proceso global de la reproducción capitalista” (1999, p. 279). Portanto, a tarefa necessária e lúcida da composição de classes, que busca concretamente a abolição do proletariado explorado, consiste em desenvolver outras estratégias que envolvem, para além do discurso, a expressão e inclusão de todos os trabalhadores necessários à produção e reprodução capitalista.

As reflexões que partem do terreno da reprodução doméstica são úteis para evitar o fracionamento moralista da classe, tal como desviar de definições economicistas de classe, já estabelecidas dentro da divisão do trabalho. Permite-nos repensar os aspectos estruturais e existenciais da formação de classes e compreender como a composição e a identificação auxiliam a responder o mesmo problema. A supressão da reprodução pela tradição econômica e política até os nossos tempos, pensada no momento em que se expressa em trabalho necessário fundamental à corporeidade viva da mercadoria que valoriza o valor, permite compreender melhor a própria reconstituição do capitalismo, e redefinição de suas fronteiras e esgarçamento do seus limites, principalmente na relação centro-periferia. Nesta, a classe superexplorada se defronta com a tarefa de assumir a dura materialidade da manutenção da vida onde as condições são ainda mais severas e o trabalho de gerar valor contido na força de trabalho depende cada vez mais de estratégias de sobrevivência para além da relação assalariada.

Nesse sentido, a dialética marxista é imprescindível para a estruturação desta crítica sobre a reprodução social, como pontuam as feministas em torno do “patriarcado do salário”. E por essa mesma razão defendemos que a reprodução doméstica não pode existir como uma lacuna resultante do desinteresse de Marx sobre o tema, uma vez que são os procedimentos metodológicos deste autor que inauguram a perspectiva de desnovelar a situação das mulheres diante da formação da classe e sob a sociedade capitalista, para a qual adquire uma função tão crucial. Isso significa que as categorias que Marx nos oferece, postas em movimento entre a estrutura e a história, servem para desenvolver os problemas legados por O Capital, mas também que novas categorias, observações e mecanismos podem ser elaborados, através de mediação de novos problemas, como é a extensão de uma crise reprodutiva nos países dependentes, principalmente. Aos trabalhadores, ao contrário de resguardar cada um na divisão social e sexual do trabalho por receio de violar a pureza de como as lutas reverberam na história, a teoria deve ser considerada como guia dos movimentos concretos da classe, é o esforço ativo para disseminar estratégias e combinações de enfrentamentos.


Notas:

[1] Sobre a questão, é patente que “(…) nenhum possuidor de dinheiro contrata o portador do trabalho doméstico e o uso para valorizar o capital iniciante aplicado, portanto, é um trabalho improdutivo” (IASI, 2011, p. 140).

[2] Isso é respondido, em alguma medida, logo depois: “Tal consumo é produção e reprodução do meio de produção mais indispensável ao capitalista: o próprio trabalhador.” (MARX, 2013, p. 788)

[3] Quando Marx (2014) pensa sobre os esquemas de reprodução, se debruça sobre a análise do capital social, em que a produção global da sociedade se decompõe em dois grandes departamentos, a) meios de produção e b) meios de consumo, e ambos devem conseguir repor o valor dos seus elementos de produção, mas só pode fazer isto tomando parte dos elementos do outro departamento, numa expressão material apropriada.

[4] O interesse de Marx sobre aspectos da reprodução para além do salário são percebidos através do resgate de textos não publicados. Por exemplo, “Lawrende Krader apresentou e organizou esses Cadernos etnológicos, publicados 89 anos após a morte de Marx e guardados no International Institute of Social History, em Amsterdã, Holanda. Nestes, Marx, entre 1880 e 1882, transcreve, anota e comenta trechos das obras de quatro antropólogos: Lewis Henry Morgan, John Budd Phear, Henry Summer Maine e John Lubbock. Além destes, Marx estudou, também, obras de Georg Maurer e Maxim Kovalevsky. A intenção de Marx era apresentar esses trabalhos, embora não se saiba qual seria sua forma final, pois estava em gestação. Suas longas anotações são um quebra-cabeça. (…) Marx destacou 130 trechos, com 25 comentários, que fornecem indicações preciosas sobre seus principais interesses no decorrer da leitura e releitura; 28 notas marginais tratam da organização política/governamental, da democracia primitiva, dos conselhos e o papel das mulheres, 27 trechos abordam a propriedade comunal, habitação e terra e outros 19 a posse comunal” (TIBLE, 2014, p. 217).

[5] “Com efeito, Sobre o suicídio de Marx é uma das mais poderosas peças de acusação à opressão contra as mulheres já publicadas (…)Não obstante seus limites evidentes, esta pequena e quase esquecida obra é uma preciosa contribuição a uma compreensão mais rica das injustiças sociais da moderna sociedade burguesa, do sofrimento que suas estruturas familiares patriarcais inflingem às mulheres e do amplo e universal objetivo emancipador do socialismo.” (LÖWY, 2006, p. 18)

[6] Sobre isso, Iasi comenta: “o fato de esse trabalho sofrer uma divisão social onde outro – na maioria das vezes, outra – é que realiza a tarefa da manutenção e reposição, e não aquele que vai ao mercado de trabalho” não altera o processo de agregar valor à mercadoria força de trabalho.” (2011, p. 132)

[7] Sobre as jornadas de lutas pelo salário, Federici explica, como razão e motivação, a “dependência del salario masculino define lo que he llamado «patriarcado del salario»; a través del salario se crea un nueva jerarquía, una nueva organización de la desigualdad: el varón tiene el poder del salario y se convierte en el supervisor del trabajo no pagado de la mujer. Y tiene también el poder de disciplinar. Esta organización del trabajo y del salario, que divide la familia en dos partes, una assalariada y otra no asalariada, crea una situación donde la violência está siempre latente.” (2018, p. 17)

[8] Negri e Hardt comentam que (…) entre las diversas figuras de la producción hoy activas, la figura de la fuerza de trabajo inmaterial (involucrada en la comunicación, cooperación, y la producción y reproducción de afectos) ocupa uma posición crecientemente central tanto en el esquema de la producción capitalista como en la composición del proletariado (NEGRI; HARDT, 2001, p. 34)

[9] Ou, colocando de outra forma, segundo Osório, “a maior abstração é fortemente histórica, na medida em que aponta a essência daquelas relações e processos” (2012, p. 38).

[10] Para Fortunati, “essa separação da força de trabalho em duas funções – capacidade de produção e capacidade de reprodução – tem outro aspecto. Tem uma conotação sexual – a divisão sexual do trabalho – revelada pelo fato de que a capacidade de produzir foi desenvolvida principalmente no trabalhador fabril, enquanto a capacidade de reprodução foi desenvolvida principalmente em trabalhadores do sexo feminino.” (1995, p. 13, tradução dos autores)

[11] Luce (2018, p. 178) explica que enquanto o pagamento da força de trabalho abaixo do seu valor atenta mais diretamente contra o fundo de consumo do trabalhador, o prolongamento da jornada além de limites normais e o aumento da intensidade do trabalho além de limites normais, atentam contra o fundo de vida. “(…) em todas elas, o capital ou se apropria do fundo de consumo do trabalhador, deslocando-o para o fundo de acumulação; ou arrebata anos futuros do trabalhador, apropriando-se de seu fundo de vida, o qual é também violado para alimentar a sanha da acumulação.”

[12] Nos aproximamos da abordagem de Mauro Iasi, sobre a qual “o valor gerado no trabalho doméstico se expressa no valor da força de trabalho, compara-se com as demais, sendo perfeitamente possível medi-lo para que cheguemos ao chamado tempo socialmente necessário” (2011, p. 139).

[13] “(…) Dramático para a população trabalhadora da América Latina é que essa hipótese foi cumprida amplamente: a existência de reservas de mão de obra indígena (como no México), ou os fluxos migratórios derivados do deslocamento de mão de obra europeia, provocado pelo progresso tecnológico (como na América do Sul), permitiram aumentar constantemente a massa trabalhadora, até o início do século 20.” (MARINI, 1973, p. 17)

[14] Afinal, Osório (2012, p. 63) também nos lembra como as crises servem para reestabelecer “novas condições para a rentabilidade do capital, para voltar a propiciar a renovação do seu ciclo de reprodução e de suas contradições econômicas e sociais em novos estágios.”

[15] A categoria da superexploração deve ser entendida, portanto, como (1) um conjunto de modalidades que implicam a remuneração da força de trabalho abaixo de seu valor e o esgotamento prematuro da força físico-psíquica do trabalhador; (2) e que configuram o fundamento do capitalismo dependente, junto com a transferência de valor e a cisão entre as fases do ciclo do capital (LUCE, 2012, p. 4)

[16] Complementa dizendo: “Es, pues, en función de la caída del salario mínimo y la explotación inmisericorde de la mujer y del menor como se explica que —pese a que se haya duplicado el número de miembros de la familia que trabajan— el ingreso familiar haya disminuido” (MARINI, 1978, p. 216).

[17] Marini também aponta, sobre o valor histórico moral da força de trabalho, necessidades como: “(…) el nivel mínimo de calificación (o educación) exigido para poder vender su fuerza de trabajo, del mismo modo como no puede prescindir de la radio, e incluso de la televisión, cuando estos medios de comunicación se generalizan, so pena de convertirse en un bruto por debajo de nivel cultural de la sociedad en que debe vivir y producir.” (MARINI, 1999, p. 214)

[18] Para pensarmos sobre os efeitos no modo negativamente determinado da dialética fora dessa “normalidade”, é importante ter em conta que não indicam uma anulação do funcionamento da lei do valor, mas sim o engendrar de tendências específicas. Luce (2018) explica, por exemplo, que “quando prestamos atenção no momento da determinação negativa do valor (negação do intercâmbio de equivalentes), vemos que ele ocorre com maior frequência e assume caráter estrutural e sistemático em certo conjunto de economias, que são as do capitalismo dependente.” (2018, p. 31).


Referências

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