Por Bruno Santana
A cultura popular é um fantasma que assombra a teoria estetizante, historicista e desenvolvimentista da intelectualidade das artes, repercutindo em ruídos e olhares tortos as experiências que articulam a produção de uma contra-hegemonia na indústria cultural com um projeto popular de desenvolvimento nacional.
O circuito tradicional das artes se coloca de duas formas diante destas experiências: pela perspectiva vanguardista que repudia a materialidade cultural pela qual se desenvolve a arte, fora das formulações estéticas fundadas no idealismo; ou reproduzindo o apagamento sistemático do estudo histórico-cultural do mundo colonizado, reforçando o misticismo e o exotismo que orbita a produção artística fora do circuito euro-estadunidense.
Os anos 60 representam um marco na produção de teorias diversas sobre a indústria cultural. Dentre as que abrangem a discussão da forma e o conteúdo artístico crítico ao modelo desenvolvimentista do qual o modernismo ocidental foi instrumento, estão as correntes historicistas, regionalistas e a pós-estruturalista.
O pós-estruturalismo surge do torpor da crítica radical à produção moderna então vigente, e o sigilo da guerra iminente na década de 1960, que punha nos corações e mentes dos acadêmicos mais entendidos, o completo desinteresse e niilismo político e artístico. O encanto com a Sociedade do Espetáculo de Guy Debord e o resgate de Nietzsche, formam os arquétipos de análise e produção formal que irão representar, na estética por ela mesma a chave de seleção para uma nova indústria cultural.
Indústria esta que seria imagem e semelhança da reorganização da sociedade capitalista a nível mundial e pouco afeita com a disputa dos aparatos que movem materialmente esta produção, isto é, sem elevar estas formas ao crivo da crítica à economia política. Todo este pastiche que transformou uma parte da produção artística num conjunto caricato de propaganda e alcance midiático, se deve à formação desta vertente formalista que está longe de teorizar sobre a Arte como instrumento de transformação radical e construção de uma nova produção artística voltada à cultura popular.
O historicismo surge a partir do desencanto com a cidade e a forma moderna de produção cultural, e se volta ao sonho de reconciliar os afetos e a teoria artística como era antes da Revolução Industrial. Reconstruir o passado histórico de conexão do artesão com a natureza e seu modo de viver estava no centro das investigações deste grupo de teóricos, incapazes de formular sobre o movimento real e suas circunstâncias práticas
O regionalismo pode ser entendido a partir de sua vertente desenvolvimentista ou crítica. Experimentado de forma prática na arquitetura moderna brasileira, argentina e mexicana, por exemplo através das obras de Lúcio Costa, Niemeyer e Barragán (México), o regionalismo incorpora o debate sobre o desenvolvimento nacional e a perspectiva de formação de um Estado Moderno de inspiração industrial nos países subdesenvolvidos. Soma-se isso à produção arquitetônica moderna próxima às análises dos Partidos Comunistas e Trabalhistas da época que articulam em sua estratégia àquela da fase nacional-desenvolvimentista das revoluções sociais, onde a arquitetura e o modernismo no geral, irão se posicionar como intenções formais e estéticas deste projeto.
Este Regionalismo rompe com a posição teórica de incorporar as estratégias do desenvolvimento capitalista nos trópicos na obra de alguns arquitetos como Lina Bo Bardi e Vilanova Artigas, se opondo àquelas que não colocam em pauta o caráter histórico do Estado como instrumento invariavelmente antipopular e instrumentalizado pelo desenvolvimento capitalista em sua totalidade.
Na perspectiva do regionalismo crítico a teoria de Kenneth Frampton e Manfredo Tafuri sobre este tema, toma fôlego novamente em uma leitura atualizada que encontra maior proeminência hoje na Nova Arquitetura Andina da Bolívia. Por lá está a busca pelo significado histórico e cultural dos povos colonizados.
A arquitetura ganha um elemento em que sua produção rompe com o desenvolvimentismo formal que remonta à certas práticas do brutalismo inglês e seu purismo formal nos anos 50. A forma estática da industrialização por ela mesma que veste de progressismo o pacto estético do Brutalismo, é completamente superada pela arquitetura de Freddy Mamani. Arquitetura de um construtor-engenheiro fora da Academia ilustrada das escolas de arquitetura, que assiste com espanto e desprezo- típico do ocidente- o emprego em sua obra de cores típicas dos povos nativos bolivianos e as formas complexas do imaginário Aimara.
A nova arquitetura andina que nasce como resultado das transformações recentes na constituição do Estado Plurinacional Boliviano, retraduz o programa andino dos grandes salões pré-coloniais, palco de celebrações, festividades e eventos políticos do período, recebendo uma reconfiguração que atualiza historicamente este programa; num movimento que encontra semelhança processual aos aspectos da arquitetura Juche e Chinesa. Coloca-se em pauta portanto, uma formulação independente, soberana e contra-hegemônica sobre a produção cultural dos povos colonizados.
O mimetismo industrial é deixado de lado, e abre espaço para formulações teóricas sobre o resgate histórico, forma e produção cultural que são pontos essenciais para construir na memória social de um povo o sentido de Soberania, que não deve ter medo de dizer seu nome, nem de recusar-se a prestar reverência aos ventos que vêm do norte soprados pelas bocas da Academia burguesa.
Referências
Documentário sobre a obra de Freddy Mamani: https://www.youtube.com/watch?v=_KjPQPQTgZo
A Nova Arquitetura Andina: https://www.archdaily.com.br/br/779807/freddy-mamani-e-o-surgimiento-de-uma-nova-arquitetura-andina-na-bolivia
Arquitectura Andina de Bolivia- Elisabetta Andreoli e Ligia d’Andrea
“Não é Arquitetura Exótica, mas uma arquitetura Andina que transmite identidade”: https://www.archdaily.com.br/br/776467/freddy-mamani-nao-e-arquitetura-exotica-mas-uma-arquitetura-andina-que-transmite-identidade