Por Peter W. Rose, traduzido por Felipe Campos de Azevedo
Nesta introdução ao livro “Class in Archaic Greece” [Classes na Grécia Arcaica] (2012, p. 15-19), Peter Rose (crítico literário marxista especializado na literatura grega) apresenta algumas questões sobre o estudo materialista dialético das sociedades pré-capitalista.
Marx e as sociedades pré-capitalistas
Se deixarmos de lado a produção da indústria da Guerra Fria dedicada a proclamar que Marx estava errado sobre tudo [1], muitos leitores de Marx tem julgado sua análise do capitalismo convincente, mas argumentam que a aplicação de ideias marxistas para sociedades pré-capitalistas implicam uma imposição indevida das concepções contemporâneas sobre sociedades que se conceberam e operaram em bases radicalmente diferentes. O próprio Marx respondeu para uma versão inicial desta crítica. Em uma nota de rodapé longa ao Capital Vol. I, Marx escreve: “Aproveito esta oportunidade para refutar brevemente uma objeção feita por uma publicação germano-americana ao meu trabalho Zur Kritik der Politischen Okonomie, 1859″. Ele continua citando sua agora famosa e notória declaração sobre” a estrutura econômica da sociedade ” que consiste na:
“fundação real, sobre a qual surge uma superestrutura jurídica e política e que correspondem a formas definidas de consciência social … Na opinião da publicação germano-americana, que é muito verdadeira para os nossos tempos, em que interesses materiais são preponderantes, mas não para a Idade Média, dominada pelo Catolicismo, nem para Atenas e Roma, dominadas pela política. Em primeiro lugar, nos parece estranho que alguém deva supor que essas frases desgastadas sobre a Idade Média e o mundo antigo eram desconhecidas para qualquer outra pessoa. Uma coisa é clara: a Idade Média não poderia viver do catolicismo, nem poderia o mundo antigo da política. Pelo contrário, é a maneira pela qual eles ganharam subsistência que explica porque em um caso a política, no outro caso, o catolicismo figurou como a parte principal. Para o resto, não é necessário mais que um pequeno conhecimento, por exemplo, da história da República Romana, para estar ciente de que seu segredo é a história da propriedade rural. E depois há Don Quixote, que por muito tempo atrás pagou o preço por erroneamente imaginar que o cavaleiro errante era compatível com todas as formas econômicas de sociedade.” (Marx 1976: 175-6)
Esta tentativa de refutação, com seu pesado sarcasmo e brevidade enigmática, enquanto levanta um problema válido inerente ao hábito hegeliano de tentar entender as eras anteriores exclusivamente em termos de suas próprias auto concepções dominantes e em completa negligência de seu modo de produção e organização social geral, não aborda diretamente a questão da relevância de Marx para as sociedades pré-capitalistas. É certamente verdade que analisar o capitalismo foi o principal foco do trabalho da vida de Marx, e o objetivo explícito do primeiro volume do Capital – um dos relativamente poucos trabalhos que ele realmente publicou em vida: “é o objetivo final deste trabalho revelar a lei econômica do movimento da sociedade moderna” (1976:92). Mas o subtítulo desse trabalho é “Uma crítica da economia política”, com o que ele se refere tanto aos investigadores sérios do funcionamento do capitalismo, quanto aos apologistas vulgares do capitalismo [2]. Um dos alvos mais consistentes de sua crítica é a tentativa de economistas capitalistas (“burgueses”) de apresentar o capitalismo ahistoricamente como “natural” – como “eterno”. Assim ele está constantemente insistindo que “o modo de produção burguês é um tipo particular de produção social de caráter histórico e transitório “(1976: 174 n. 34, minha ênfase):
“essas fórmulas [propostas pelos economistas burgueses], que trazem a marca inconfundível de pertencer a uma formação social em que o processo de produção tem domínio sobre o homem, ao invés do contrário, aparece para a consciência dos economistas políticos burgueses ser uma necessidade tão auto-evidente e imposta pela natureza como o trabalho produtivo em si. Assim, as formas pré-burguesas da organização social da produção são tratadas pela economia política da mesma maneira que os pais da igreja tratavam as religiões pré-cristãs.” (1976: 174-5)
Ele está constantemente citando exemplos de sociedades pré-capitalistas, às quais ele dedicou uma parte substancial de suas notas preparatórias para escrever o Capital (Marx 1965: 67-120, 1973: 471-514). Em uma nota para a passagem a cima ele cita sua própria crítica anterior, precisamente o a-historicismo dos economistas burgueses:
“Os economistas têm uma maneira singular de proceder. Para eles só existem dois tipos de instituições, artificiais e naturais. As instituições do feudalismo são instituições artificiais, as da burguesia são instituições naturais. Nisso eles se assemelham aos teólogos, que também estabelecem dois tipos de religião. Toda religião que não é deles é uma invenção dos homens, enquanto a sua própria é uma emanação de Deus … Assim existia a história, mas não há mais nenhuma.” (1976: 175 n. 35 citando MECW 6.174, minha ênfase) [3]
Marx, cujo conhecimento dos clássicos da Grécia e de Roma e da história medieval era absolutamente extraordinário (Prawer 1976, Lekas 1988: 55-56, McCarthy 1990) apimenta o texto do Capital e seus Grundrisse com contrastes entre os aspectos fundamentais do capitalismo e os das sociedades anteriores. Contrastando, por exemplo, a mistificação do trabalho embebida nas commodities capitalistas, ele aponta para a Europa medieval: “A corvée pode ser medida pelo tempo tão bem quanto o trabalho que produz mercadorias, mas todo servo sabe que o que ele gasta a serviço de seu senhor é uma quantidade específica de sua própria força de trabalho pessoal “(1976: 170). Nos Grundrisse, por exemplo, ele se esforça para tornar histórica a categoria de dinheiro:
“Esta categoria muito simples, então, faz uma aparência histórica em sua intensidade total somente nas condições mais desenvolvidas da sociedade. De maneira nenhuma ela prossegue seu caminho através de todas as relações econômicas. Por exemplo, no Império Romano, no seu ponto mais alto de desenvolvimento, a fundação permaneceu com impostos e pagamentos em espécie.” (1973: 103)
O peso brutal de sua crítica à economia política “burguesa” é que ela, não ele (Marx), impõe ao passado suas próprias categorias historicamente contingentes de análise, e que o seu próprio objetivo é precisamente apreciar as especificidades históricas do modo de produção capitalista, em contraste com uma vasta gama de formações sociais pré-capitalistas.
Determinismo econômico?
No entanto, por mais que Marx procure historiar [tornar histórico] seus relatos de diferentes modos de produção, seu foco nesse aspecto das sociedades provocou a rejeição de sua abordagem como um “determinismo econômico”. [4] Para muito além daqueles que estão sempre prontos para dispensar Marx com base em avaliações de segunda mão, feitas durante a Guerra Fria, esta questão ainda é muito debatida no marxismo. Lendo o famoso ensaio sobre “Contradição e Sobredeterminação [ultradeterminação]” (em Althusser, 1969) e a longa discussão inspirada por Althusser sobre a edição de Wolff e Resnick (1987: 38-108 e passim) – a mais completa das quais estou ciente – estou impressionado com o que me parece a impossibilidade de qualquer resolução direta de tal questão. Parece-me que há uma forte tensão nas próprias palavras de Marx durante sua vida entre uma insistência polêmica na prioridade da esfera econômica e sua apreciação com nuances do impacto de elementos políticos, culturais e ideológicos sobre o funcionamento do que só pode ser isolado analiticamente como elementos “econômicos”. A versão mais antiga da Ideologia Alemã de 1845-47 diz o seguinte:
“As premissas a partir das quais começamos não são arbitrárias, nem dogmas, mas premissas reais a partir das quais a abstração só pode ser feita na imaginação. Esses são os indivíduos reais, sua atividade e as condições de sua vida, tanto aqueles que eles encontram já existindo, quanto aqueles produzidos por sua atividade. (MECW 5: 31) “
Ele prossegue especificando: “produzir os meios de subsistência”. Mas mesmo aqui há espaço para enfatizar o que inclui o alcance potencial dessas “condições de suas vidas”, assim como uma forte ênfase na interação dialética das condições hereditárias e a transformação potencial da atividade humana. O Marx já maduro do Capital I (1867) – o único Marx “real” para Althusser – ainda fala da “lei econômica do movimento da sociedade moderna” (1976: 92, minha ênfase), apesar de se esforçar em seu segundo prefácio para insistir que “leis” econômicas são fundamentalmente diferentes para diferentes épocas históricas (1976: 100-102) e, sendo historicamente contingentes, são fundamentalmente diferente das leis da natureza. A Crítica do programa de Gotha (1875) e o famoso fragmento postumamente publicado do Livro III do Capital sobre o “Reino da Necessidade e o Reino da Liberdade” são principalmente focados em questões econômicas. [5]
Ao mesmo tempo, por todo apelo óbvio de Marx por metáforas das ciências duras (“leis do movimento”, etc.) e sua polêmica intensa sobre o papel negligenciado da produção material, da classe e das relações de produção, suas análises de situações históricas concretas – por exemplo, Lutas de classes na França (1848-1849), o 18 Brumário de Luís Napoleão (1851-1852), A Guerra Civil na França (1870-71) – exibem um sentido altamente nuançado da interação mútua de toda uma série de “determinações”. De fato, no início dos Grundrisse, ao discutir o método da economia política, ele contrapõe a seus falsos procedimentos “uma rica totalidade de muitas determinações e relações “(1973: 100).
Notas:
[1] Um aluno meu uma vez citou seu professor de economia anunciando: “Da próxima vez, passaremos quinze minutos em Marx. É mais do que vale a pena”. Essa atitude desdenhosa em relação a um corpo de pensamento tão rico e influente é a consequência de muitos anos de esforços diligentes da Guerra Fria para demonstrar sua absoluta irrelevância. Mesmo um autor que se dedicou muito tempo a Marx assume um tom paternalista característico da Guerra Fria: “De fato, em geral, parece que, estritamente falando, Marx quase nunca estava “certo”. Seus fatos são defeituosos pelos padrões da erudição moderna, suas generalizações imprudentes” (Elster 1986: 3). Ele continua, ao admitir, “podemos descobrir que uma teoria pode ser atacada nos seus erros de detalhes, em suas falhas conceituais básicas, mas ainda permanece imensamente fértil em sua concepção global “(ibid.).
[2] “Deixe-me salientar de uma vez por todas que por economia política clássica quero dizer todos os economistas que, desde a época de W. Petty, investigaram o verdadeiro quadro interno [Zusammenhang] das relações burguesas de produção, em oposição aos economistas vulgares que só se debatem em torno do quadro aparente dessas relações, incessantemente ruminando sobre os materiais a muito tempo, desde a economia política científica, e buscando lá explicações plausíveis dos fenômenos mais cruéis para os propósitos domésticos da burguesia “(1976: 174-5 n. 34). As mais divertidas e – infelizmente – as partes mais tediosas dos Grundrisse estão focadas em críticas detalhadas de Darimon, Proudhon, Bastiat, Malthus, Ricardo, os fisiocratas, Carey, Rossi, Gallatin, Wade, Wakefield, bem como Adam Smith, et al.
[3] Este último comentário antecipa estranhamente O fim da história e o último homem, de Francis Fukuyama (1992).
[4] Giddens em 1971 escreveu: “Isso [o uso que Marx faz do termo “materialismo”] definitivamente não envolve a aplicação de um materialismo filosófico determinista à interpretação do desenvolvimento da sociedade. A consciência humana é condicionada na interação dialética entre sujeito e objeto, em que o homem forma ativamente o mundo em que ele vive ao mesmo tempo em que o molda “(21). Ainda em 1981 ele escreveu: “Se por” materialismo histórico “nos referimos à concepção de que a história das sociedades humanas pode ser entendida em termos do aumento progressivo das forças de produção, então ele é baseado em falsas premissas, e chegou a hora de finalmente abandoná-lo. Se o materialismo histórico significa que “a história de toda a sociedade até então existente é a história das lutas de classes”, é tão patentemente errônea que é difícil entender por que tantos se sentiram obrigados a levá-la a sério “(1-2). Ele, no entanto, estabelece as bases para a sua “terceira via” com este sopro para os marxistas: “Se o projeto de Marx for considerado como o avanço, através da conjunção de análise social e atividade política, de formas de sociedades humanas nas quais a massa de seres humanos pode alcançar liberdades e modos de auto-realização em maior medida do que qualquer tempo eles possam ter desfrutado antes, quem pode discordar disto? Certamente eu não “(24-5). Divorciar a análise social marxista e o seu ativismo de um foco em modos de produção e a luta de classes é um bom truque.
[5] Estes textos tardios, não publicados antes do colapso do projeto MECW, talvez sejam mais facilmente encontrados na antologia de Tucker (Marx-Engels 1978: 525-41, 439-42).
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