Aqui há uma profunda lição hegeliana: o que fica acentuado no palco trágico da vida é que o abismo existente, aquilo que nos separa e nos distancia do Outro, aquela ilusão que temos a respeito de uma pessoa que supostamente se encaixa naquilo que acreditamos, aquilo que me separa de você e do mundo, quando observado… (Inaudível no áudio), quando descubro que nada do que acredito ser, é aquilo que eu acredito ser, essa descoberta, para muitos dolorosa, se constitui como verdade. É a negação daquilo que acreditamos ser, o que constitui o que somos – como deixa evidente as lições de Fanon. E para nos projetarmos nessa negação é preciso negar aquilo que nos nega, ou seja, tornar indiferente as diferenças que me separam do outro, apreendendo-as na sua efetividade…
Por Douglas Rodrigues Barros
Transcrito por Sofia Lima
No dia 03 de outubro de 2019, o autor do livro “Lugar de negro, lugar de branco?” esteve presente ao ato em defesa da educação em Belo Horizonte e ao findar, através do convite de alguns camaradas, visitou a sede do Partido Comunista para falar sobre os temas desenvolvidos em seu livro para a juventude comunista. Para nossa surpresa, porém, desistiu de falar sobre o livro, abordando um tema que dizia respeito a todos os presentes. Por sorte gravei o áudio completo de sua fala e transcrevi. Transcrição que vem à luz agora com o aval do autor.
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Boa noite a todos, todas e todxs
Em primeiro lugar, eu quero desde já deixar meus agradecimentos a todo mundo que tornou minha vinda pra cá possível, mas quero adiantar também que não irei falar sobre o livro, o que era, na verdade, o motivo de minha visita. Tendo em vista o ato que acabou agora e o fato de grande parte da juventude comunista de BH estar aqui hoje, acho que será bem mais interessante falar sobre algo que já há algum tempo venho matutando: o que significa ser militante hoje?…
Para falar então sobre isso, vou dividir minha fala em duas partes: 1 – fazer um resgate crítico sobre o “Colapso da modernização” – termo alcunhado por um pensador alemão danado e engenhoso chamado Robert Kurz; 2 – e assim caio na digressão mais filosófica a respeito do que significa a noção de sujeito e como ela está irremediavelmente ligada à questão de militância.
Antes de começar, porém, quero dizer de saída: sofremos uma fragorosa derrota, nunca na história desse país os trabalhadores sofreram tantos ataques e o desmonte das mais pequenas conquistas sociais fora tão eficiente.
Nunca o horizonte foi tão ameaçador como agora e o ódio ao que representamos se tornou tão permeável no tecido social. Apesar de já conhecermos os diversos riscos, nunca a esquerda havia se tornado o bode expiatório direto de uma gestão que propõe a morte. Nunca a esquerda tinha saído desmoralizada como hoje.
Por tudo isso, podemos dizer: os tempos estão difíceis.
Para entendê-lo, acredito que há uma exigência de repensarmos os descaminhos pelos quais o capital entrou. Pensar juntamente com o velho Marx. Pensar tentando sempre nos apropriar de sua obra máxima: O Capital.
Preciso dizer então que há alguns descaminhos incontornáveis e que se a crise é o impulso a mais para a reprodução e circulação do capital, seu negativo constitutivo – para pensar com Grespan – também é preciso dizer; há limites para a dinâmica da própria crise.
Pensando seriamente faz 40 anos que o capital está em crise. Então sua crise já é na verdade forma de governo. No interior dessa crise permanente, há pequenas, médias e grandes crises, e a cada crise cria-se uma espécie de rotina de perdas sociais irreversíveis. E por que digo que faz 40 anos? Justamente porque faz 40 anos que o capital não oferece mais horizontes de expectativas senão decrescentes, para pensar com Paulo Arantes. É evidente que há um processo desigual e combinado nessa dinâmica em que a transmissão das ondas de choque e tremores no epicentro do capital se faz sentir com atraso nas áreas periféricas.
Uma das lindas e escandalosas lições do modo de produção capitalista é a noção de modernização e progresso. Por mais que almas cândidas rejeitem a teleologia, é fato que com o advento do trabalho fabril há um processo cumulativo e teleológico que se regula inclusive com a dominação do tempo pela máquina mortífera do capital.
Quer dizer o trabalho fabril se regula por meio de uma finalidade: a realização do valor. Esse impõe um processo quantitativo que subtrai o processo qualitativo e nesse caminho uma espécie de teleologia violenta que abstrai todas as formas em nome daquilo que o velho Marx chamou de Sujeito automático. A ordem do tempo do capital é de produção e reprodução de si mesmo através de uma manutenção de seu próprio tempo. O capital precisa se expandir, sua finalidade é o acréscimo de si mesmo. Nesse processo há um aumento quantitativo na produtividade que efetiva o salto qualitativo pela inovação tecnológica.
Enfim…
Desculpem-me o grau de abstração que virá… Não me importa agora usar as categorias de base d’O capital, tais como: valor-de-uso, valor, valor-de-troca. Me importa mais tentar demonstrar como valor e trabalho abstrato são chaves para pensar o processo de degeneração econômica atual.
Eu digo o seguinte: se há uma universalidade no capital seu nome é valor. Uma universalidade que é ao mesmo tempo uma singularidade, pois parte da necessária correlação com o trabalho abstrato – vejam bem: estou dando status de humanidade para uma forma de dominação amorfa. Mas faço isso porque o trabalho abstrato se perpetua pela dominação espaço temporal dos indivíduos reduzidos a órgãos do trabalho. E é através da dominação do tempo quantitativamente que se faz com que o trabalho abstrato se realize como trabalho social. Isso é lindo não é?
Não quero me fazer de difícil entendimento, mas o que está posto nisso que digo é uma noção de progresso que se baseia em três noções básicas: desenvolvimento e crescimento, necessário aumento da produtividade e a redução da ciência ao avanço tecnológico voltado ao incremento da taxa de lucro.
Por trás dessas noções se ergue o brasão vitorioso da ideia de modernidade, sua sombra constitutiva chamada colonialismo, acompanhada pelo sonho de crescimento e subsequente desenvolvimento econômico que poderia refrear as tensões sociais, como dizem os jornais, ou como nós dizemos: a luta de classes.
É justamente nesse sentido que houve um sonho de modernização baseado na ideia de que o desenvolvimento do capital forneceria as bases para uma sociedade mais equânime, cujas tensões e desigualdades radicais seriam dirimidas com o passar do tempo. Somos brasileiros, sabemos como esse sonho organizou nosso inconsciente nas artes, na música, na construção de cidades, no desenvolvimentismo e na sua farsa: o neodesenvolvimentismo… Fora uma certa aceitação da posição subalterna e da colonização do imaginário.
Acontece que são bases materiais que sustentam esse sonho. E ela se chama simplesmente: manutenção da taxa de lucro. Ora, é através da manutenção da taxa de lucro que os investimentos – capital acumulado – se revertem em mais investimentos, compra de papeis de tesouro nacional, etc… dinamizando não só a economia como fortalecendo o, sempre salvador do capital, o Estado.
Acontece, como é sabido, que os próprios Estados se endividaram radicalmente com a crise do subprime em 2008. Os bancos estatais mundo afora criaram dinheiro de crédito numa escala sem precedentes na história da economia na tentativa de salvar empresas gigantescas da bancarrota.
Ainda me recordo bem que só nos EUA em dois anos, foram fornecidos mais de quatro bilhões de dólares para aquecer a economia. Desculpem se trago esses dados aqui na cachola, mas, é para dizer que, ao contrário do que foi garantido, não se conseguiu voltar a absorver a liquidez desse montante por meio do refinanciamento. Se a gente olhar direito, vamos perceber que a vida se encareceu em todo o mundo porque o processo inflacionário parece irreversível.
Há uma desaceleração violenta do valor do dinheiro e o dólar periga perder seu posto de controle. Além disso, os Estados centrais estão cada vez mais na tendência de uma japonização de suas economias. Deixe-me explicar; com estímulos monetários ineficientes, você tem muito dinheiro no mercado que força uma desvalorização radical empurrando a taxa de lucro para baixo e a divida dos Estados para cima. Esses últimos são obrigados a pagar só pela rolagem e permanecem endividados.
Por trás dos efeitos da crise, e da sua aparência tácita, existe o motivo concreto de impossibilidade de uma nova era de ouro do capital que é a própria crise da reprodução do valor. Há uma limitação estrutural para o avanço da taxa de lucro. Aquilo que Marx chamava de queda tendencial da taxa de lucro se realiza a todo vapor hoje.
Mas, por que estou dando toda esta volta? Para dizer que ao contrário de 2008 quando a crise pegou todo mundo de calças curtas, agora, todo mundo já se prepara para uma onda de desaceleração profunda das economias centrais e isto implica um estreitamento político e radicalização que vai desde o protecionismo – como é caso claro nos EUA – até a radicalização do neoliberalismo e sua política de morte efetivada pela austeridade que nada mais é que a condenação dos mais pobres à miséria absoluta.
Só que a gente sabe bem que o neoliberalismo é impopular, então sua pauta só pode ser levada a cabo através de ingerências, golpes e governos autoritários. É nesse ponto que eu queria chegar com vocês. O ponto que chamo de Roberto Schwarz: Que horas são?
É evidente, por tudo isso que eu disse, que o Brasil sendo um elo da corrente do capitalismo global seria palco de transformações políticas extremas. É visível a tendência ao protecionismo nas economias centrais com imposição de receitas de neoliberalismo fundamentalista nas áreas periféricas. O resultado disso é uma espécie de neocolonialismo. Aqui precisamos ter certo cuidado: o internacionalismo pressupõe o nacionalismo, o contrário não é verdadeiro. Se há uma escalada colonialista, desde que o capital atingiu seu ponto de declínio em 2008, as fórmulas encontradas de guerras locais e ingerências também encontram seus limites. Mais importante do que usar uma fórmula abstrata de imperialismo é (inaudível) observar a luta de classes que efetiva essa dinâmica.
Só que como sabemos, como sabemos que o neoliberalismo é uma receita de morte aos mais pobres, para que ele ocorra é preciso limpar o caminho: então você desmoraliza radicalmente qualquer oposição ao projeto. Daí que Bolsonaro e sua trupe de palhaços não são um produto só caseiro, foram forjados também por essa tendência mundial de vulgarização radical da própria democracia liberal.
A democracia liberal, ou seja, a gestão e conciliação de conflitos, atingiu seu esgotamento. Já que ela não serve mais ao capital que se jogue fora. Como? Ativando a política, pois, como sabemos, democracia liberal é a própria antipolítica por excelência.
Daí que esse negócio de ser oposição ao projeto global de um capitalismo de espoliação se tornou um grande perigo. E no Brasil, como as coisas ficam bem claras, a morte de Marielle foi um sinal dado.
Então já temos uma resposta: o que significa ser militante anticapitalista hoje? Significa correr riscos, às vezes riscos de vida, se for morador dos rincões do Brasil… sabemos o que se fazem com socialistas…
Agora a questão é: por que diante desse perigo, desse cenário horrendo, com uma propaganda diuturna dizendo que somos criminosos, ainda insistimos?
Talvez a resposta seja porque numa época de capitalismo tardio, de completa desestruturação social, de uma vida guiada pela lei do consumo excessivo, pelo individualismo exacerbado, apostar no impossível é a única possibilidade de tocar o real.
Daqui saio da Critica da economia política e passo agora para a crítica filosófica da noção de sujeito com Badiou e Fanon me auxiliando:
Vejam só Marx chama o capital de Sujeito automático e deixa evidenciado que no interior das relações de produção e reprodução social sob égide do capitalismo é o próprio capital o sujeito. Aqui há um elemento muito interessante sobre a noção de que o mundo é do invertido, para citar Estamira:
O capital tem relações humanas e a humanidade passa a ter relações coisificadas. Esse passo foi fundamental para muitos críticos relativamente atuais quererem abandonar a própria noção de sujeito… Acontece, no entanto, que a própria forma pela qual o capital se regula provoca um excedente. Embora, se tente reduzir a humanidade a seu apêndice, as pessoas nunca serão apenas um apêndice do processo.
Naturalmente, estou dizendo tudo isso porque a única possibilidade então de se tornar um Sujeito, desde que o capital emergiu como força social, é negar o sistema que rouba a própria subjetividade ao sujeito. Daí a importância da militância anticapitalista.
É a única forma de se ter de fato uma vida substancial. Uma vida ética!
Como dizia Kierkegaard: “uma vida ética não deve deixar-se corromper pela conversa oca dos que afirmam que de nada adianta exigir o impossível”. Uma vida ética não se liga a contratos, a limites pressupostos por uma lógica predatória… Nesse sentido, o único que pode ter uma vida de fato ética hoje é o militante anticapitalista. E de sua postura que advém a reflexão sobre si e seu papel no mundo.
Nesse sentido, acredito que fica visível que a noção de sujeito não apenas invoca a falta de algo que não se tem como também toda intenção de eliminar essa falta. Aqui a psicanálise pode nos orientar: de fato, a própria condição de sujeito é uma condição infernal, pois encontramos a falta e a alienação ali onde buscávamos a completude e a identidade. Essa posição, portanto, é uma posição angustiante, mas devo dizer: é a angústia que nos torna humanos… sujeitos de nossas escolhas…
É claro que, por exemplo, na psicanalise, sobretudo a freud-lacaniana, essa estrutura é a do indivíduo independente das construções discursivas socialmente disponíveis como as ideologias. É claro que há um grau de universalismo da falta que pode ser ilusoriamente compensada pelo consumo. Isto é, com a ideia de que ter um carro, uma casa, ou aquele vestido nos fará plenos.
No entanto, evidentemente esse não é o perfil do individuo ético que devém como sujeito. Em suma, esse não é o perfil do militante anticapitalista. Para o sujeito, o militante, a vida social se impõe como um campo discursivo de representações que, especialmente sob a égide do capital, está articulado sobre a base da exploração, da exclusão, da violência, em suma, da negação da própria vida verdadeira… e nessa posição apreende o Outro como uma falta.
Dedica amor a essa falta, ao passo que o individuo médio a odeia.
Então, façam aí um exame: por que nós somos militantes anticapitalistas? Certamente porque lutamos por uma vida substancial, livre da dominação do homem pelo homem, pela multiplicidade de horizontes comuns, por uma vida em que impomos o sentido e que o Outro, o próximo, a diferença, seja objeto de amor. Enfim, é nesse processo que enfrentamos o inferno da liberdade.
Um ideal profundamente ético, uma vida profundamente substancial dedicada à instituição concreta do que se tem como impossível! Uma vida que vale a pena ser vivida mesmo sob as mais difíceis circunstâncias. Aqui há uma profunda lição hegeliana: o que fica acentuado no palco trágico da vida é que o abismo existente, aquilo que nos separa e nos distancia do Outro, aquela ilusão que temos a respeito de uma pessoa que supostamente se encaixa naquilo que acreditamos, aquilo que me separa de você e do mundo, quando observado… (Inaudível no áudio), quando descubro que nada do que acredito ser, é aquilo que eu acredito ser, essa descoberta, para muitos dolorosa, se constitui como verdade. a nossa verdade. É a negação daquilo que acreditamos ser, o que constitui o que somos – como deixa evidente as lições de Fanon. E para nos projetarmos nessa negação é preciso negar aquilo que nos nega, ou seja, tornar indiferente as diferenças que me separam do outro, apreendendo-as na sua efetividade. Essa é uma cara lição da filosofia…
O que não se entende, o que aqueles, que vivem com prazer no interior da desprazerosa lógica da exploração e dominação, não entendem, é a postura ética desses indivíduos. Isso os assusta. É a descoberta, o conhecimento sobre as diferenças que possibilitam a abertura naquilo que aparecia como uma sucessão fechada porque revela a limitação da própria comunidade em que se está inserido. Ora, são os questionamentos desses limites impostos que permitem aos caminhos serem franqueados pela liberdade. Quem não se move não sente as correntes que o oprimem, e para essa frase de Rosa Luxemburgo acrescento: mas se assusta com aqueles que se movem.
Nós nos movemos porque estamos vivos!
Muito obrigado a todos… fico por aqui!
1 comentário em “O que significa ser militante?”
Republicou isso em Mario Santiago.