Por Thales Fonseca
“Aqui, para entender este ponto, é interessante retomar brevemente a ideia de que a existência de uma esquerda comunista no Brasil não passa (infelizmente) de uma fantasia paranoica e cínica. Isso implica em afirmar que o bolsonarismo é, entre outras coisas, a expressão máxima da ideologia cínica em terras brasileiras, em que aqueles que ocupam o poder assimilam a estratégia da crítica, de modo que possam rir de si mesmo e neutralizar o poder dessa crítica. Isso fica claro quando Bolsonaro coloca um humorista para responder aos questionamentos sobre o PIB poucos dias depois de ser excessivamente parodiado no carnaval, levando a crítica carnavalizada à falência.“
Não se deve frequentar igrejas caso se queira respirar ar puro [1]. Este pequeno aforismo nietzscheano é daqueles que são facilmente apropriados por jovens niilistas, leitores de literatura romântica do tipo Sofrimentos do jovem Werther e admiradores de certa estética pessimista. Ainda que eu seja um jovem amante de tudo isso, não o escolhi para começar este texto – e para concluir o meu último publicado aqui no Lavra Palavra [2] – por simples retórica sombria. Na verdade, acredito mais uma vez poder tirar dele uma leitura possível da esquerda brasileira; o que depende, e muito, de fugir de qualquer sombra de niilismo enquanto uma espécie de descrença absoluta em qualquer ação que vise uma mudança significativa.
Por isso afirmo, já de antemão, que a aposta na ruína da estrutura política brasileira atual, como uma espécie de abertura para o surgimento de algo da ordem do novo, em nada se confunde com uma “estética da destruição” cuja insígnia fundamental se encontra no conceito da arquitetura nazista de valor da ruína[3], que previa que monumentos fossem projetados de modo que, ao se desgastarem com o passar dos anos, ficassem esteticamente agradáveis e veiculassem a suposta grandeza do Terceiro Reich (uma flagrante inveja nostálgica de Hitler pelas civilizações grega e romana).
Afinal, a ruína estetizada dos nazistas é justamente o oposto da ruína na qual aposto, pois implica uma estrutura que, ainda que degradada, se mantém de pé. Portanto, quanto eu digo de maneira irônica – o que seria a ironia se não uma tentativa um tanto ácida de ver graça na própria desgraça? – que a nossa esquerda não respira ar puro, o leitor deve pensar na afirmação do antropólogo francês, Louis Dumont, de que o Estado moderno não passa de uma Igreja transformada [4]. Ora, quem vem tentando a qualquer custo manter de pé as ruínas de nosso Estado-Igreja é justamente a esquerda que aqui pretendo criticar [5].
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É evidente que a ascensão de uma extrema-direita conservadora e protofascista no Brasil – cujo representante-mor é o excelentíssimo representante-mor de nosso país – é tributária do desenvolvimento do delírio paranoico (diga-se de passagem, digno dos tempos de Guerra Fria) de uma extrema-esquerda socialista comunista bolivariana, encarnada, enfim, na figura do Partido dos Trabalhadores. Partido que, convenhamos, é pouquíssimo ambicioso para merecer o qualificativo de extremo.
Resultado: chegamos a um ponto em que a extrema-direita, apesar de louca, é real e já existe independente do delírio que estabeleceu as condições a priori para o seu surgimento. Assim, é possível ver hoje um desequilíbrio patente em nosso campo político, pois, diante de tal extrema-direita, nossa esquerda fragmentada e pouco radical não consegue apresentar uma oposição à altura [6]. Aqui, ressoa em nossa tragédia tupiniquim, o retrato da oposição francesa inerte diante da ascensão de Luis Bonaparte após as revoluções de 1848. Como descreveu Marx:
Se sua impotência no Parlamento já não deixava lugar a dúvida, tinham agora o direito de limitar suas atividades a rasgos de indignação moral e ruidosa oratória. Se o partido da ordem simulava ver encarnados nele os últimos representantes oficiais da Revolução e todos os horrores da anarquia, podiam mostrar-se na realidade ainda mais insípidos e modestos. (p. 353). [7]
Se entre a França dos anos 1850 e o Brasil de 2020 há uma contradição cronológica, isso não impede – trata-se de uma lição de Lacan – uma pertinência lógica. Afinal, há esquerda mais insípida e modesta do que a nossa, tão limitada a bravatas de indignação moral? Sobre isso (e abusando, ainda, de uma lógica circular do tempo), eu gostaria de dizer que o artigo de Eliane Brum [8] sobre a crise de identidade e consequente paralisia da esquerda, escrito logo em seguida da traumática eleição de Bolsonaro, ainda é dolorosamente atual. Afinal, como teve coragem de dizer Safatle [9], a esquerda brasileira está morta. E, para todos os efeitos, os mortos são imóveis, não se mexem. No mais das vezes, são arrastados.
Assim, acredito que o grande problema é que, se por um lado, não conseguimos constituir uma esquerda de fato extrema e que possua imaginação política o bastante para vislumbrar um horizonte diferente do nosso; por outro, entramos docilmente no jogo ideológico cínico deles, fantasiando que há um paraíso petista perdido a ser reencontrado, quiçá em 2022. Sobre isso, nunca é tarde para lembrar a lição zizekiana de que a fantasia é o correlato psicológico por excelência da ideologia [10].
Aqui, vale remeter rapidamente ao diagnóstico do Safatle [11] de que a política brasileira é bipolar: de tempos em tempos ela se alternaria entre república oligárquica e populismo como resposta. Pois eu diria que, pelo menos nos últimos 18 anos, parece que a gente vem assistido a uma espécie de formação de compromisso, como um bom psicotrópico contra a nossa bipolaridade histórica: uma relação parcialmente estável entre oligarquia e populismo [12]. Casamento arranjado em 2002 com a “Carta ao povo brasileiro” e que, em 2018, ganha uma nova feição. Isso porque, ano retrasado, depois de uma conturbada briga de casal iniciada em 2016, decidiu-se mudar o pendor ideológico de tal casamento infame.
Ora, diante da briga de casal atual (pelo jeito, ainda mais conturbada), não seria absurdo afirmar que em 2022 há a chance de retornarmos ao pendor ideológico anterior. E a política brasileira continua em seu movimento pendular que, pra citar outra metáfora do Safatle, parece só servir para manter o mesmo centro. Assim, vivenciamos a situação em que o discurso populista pode até mudar, mas as oligarquias são sempre as mesmas.
[…] a verdadeira mola do poder não é a imposição de uma norma de conduta, mas a organização das possibilidades de escolha. Trata-se de operar uma redução da escolha que transforma o movimento no circuito limitado de um pêndulo que vai necessariamente de um polo a outro. E, como todo pêndulo, o mover-se é apenas uma forma de conservar o mesmo centro. Ir de um polo a outro é apenas uma maneira mais complicada de não andar. (p. 202). [13]
Dito isso, eu gostaria de mostrar a importância de se distinguir uma extrema-esquerda real (inexistente no cenário brasileiro atual) e uma esquerda que ocupa o polo oposto ao da extrema-direta, mas somente de maneira superficial, como quem entra no jogo ideológico cínico e pendular deles. Isto é, há uma diferença entre uma extrema-esquerda que impõe pautas irredutíveis e inegociáveis; e a oposição puramente reativa que tem caracterizado a nossa esquerda, cuja expressão máxima foi o #EleNão (movimento que, apesar de legítimo, infelizmente foi inócuo).
Ora, a segunda opção é inteiramente presa ao estado da situação e a sua realidade simbólica, recaindo na armadilha de ocupar um polo oposto tão ideológico quanto o polo criticado. É o que nos mostra Zizek [14] ao afirmar que “quando um processo é denunciado como ideológico por excelência, pode-se ter certeza de que seu inverso é não menos ideológico” (p. 9). Assim, uma extrema-esquerda que se preze – esquerda que não deve temer a ruína [15] – deve, antes de mais nada, não temer propor seus próprios termos [16]. Nesse sentido, eu gostaria de advogar que ter a coragem de ser fiel a um horizonte utópico e propor uma visão própria de futuro emancipatório é a condição de possibilidade para romper com o estado da situação, isto é, com a estrutura sociossimbólica vigente. Aqui, vale a pena remeter mais uma vez a Zizek:
[…] a primeira reação dos oprimidos ante a sua opressão é imaginar um mundo privado do Outro que exerce opressão sobre eles – as mulheres imaginam um mundo sem homens, os afro-americanos um mundo sem brancos, os trabalhadores um mundo sem capitalistas… O equívoco dessa atitude não é o fato de ser ‘excessivamente radical’, de desejar aniquilar o Outro, ao invés de simplesmente transformá-lo, mas, ao contrário, de não ser radical o suficiente: ela fracassa ao não examinar a forma como a identidade de sua própria posição (de trabalhador, mulher, afro-americano…) está ‘mediada’ pelo Outro (não há trabalhador sem capitalista organizando o processo de produção etc.), de modo que, para nos vermos livres desse Outro opressor, temos de transformar substancialmente o conteúdo de nossa própria posição. (p. 91). [17]
Ora, transformar substancialmente o conteúdo de nossa própria posição de modo que não tomemos como referência a figura do opressor é, justamente, o que ainda não fizemos. Daí (sobre)vivermos em constante estado de resistência… Daí defendermos desesperadamente qualquer sopro de democracia… Desde que “Ele Não”! Em termos hegelianos, podemos dizer que falta à esquerda brasileira a realização de uma segunda tarefa fundamental denominada “negação da negação”. Assim, para além do “Não” que nega o “Ele”, seria preciso negar o próprio horizonte simbólico que estabelece as condições em que “Ele” é relevante o bastante a ponto de merecer ser negado.
Aqui, para entender este ponto, é interessante retomar brevemente a ideia de que a existência de uma esquerda comunista no Brasil não passa (infelizmente) de uma fantasia paranoica e cínica. Isso implica em afirmar que o bolsonarismo é, entre outras coisas, a expressão máxima da ideologia cínica em terras brasileiras, em que aqueles que ocupam o poder assimilam a estratégia da crítica, de modo que possam rir de si mesmo e neutralizar o poder dessa crítica. Isso fica claro quando Bolsonaro coloca um humorista para responder aos questionamentos sobre o PIB poucos dias depois de ser excessivamente parodiado no carnaval, levando a crítica carnavalizada à falência.
Pois o ponto que eu gostaria de destacar é que, apesar do bolsonarismo se sustentar na postura de uma falsa consciência esclarecida do tipo “eu sei que não tenho o mínimo preparo para ocupar a presidência, mas mesmo assim eu ocupo e ainda faço piada com o meu próprio despreparo”, ele ignora o pano de fundo fantasmático que estrutura sua posição no interior do edifício simbólico. Ou seja:
[…] o distanciamento cínico e a plena confiança na fantasia são estritamente codependentes: hoje, o sujeito típico é aquele que, enquanto demonstra uma desconfiança cínica de qualquer ideologia pública, envolve-se sem nenhum limite em fantasias paranoicas sobre conspirações, ameaças e formas excessivas do gozo do Outro. (p. 295). [18]
E não é justamente a isso que assistimos quando qualquer possibilidade de oposição logo recebe a alcunha de “comunista”? O interessante é que tal vulgarização no que se refere ao comunismo é de longa data, basta lembrar do que Marx e Engels chamavam de espectro do comunismo: “Qual partido de oposição não foi acusado de comunista por seus adversários no poder? Qual partido de oposição, por sua vez, não lançou contra os elementos mais avançados da oposição e contra os seus adversários reacionários a pecha infamante de comunismo?” (p. 38) [19].
A diferença é que Marx e Engels afirmaram-se comunistas, fazendo do próprio comunismo mais do que um mero “espectro”. Já a esquerda brasileira atual, no melhor dos casos, encarna docilmente o “fantasma ideológico” que lhe é imposto, sem de fato elaborar minimamente uma posição emancipatória radical que seja mais do que simplesmente reativa. Uma esquerda que, enfim, teme dizer seu nome [20].
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Ano retrasado, eu pensava que o Lula tinha perdido “A chance” de promover uma união da esquerda, ao aceitar ir preso. Eu ingenuamente achava que, exilando-se, Lula poderia denunciar internacionalmente essa balbúrdia que há quem chame de democracia e, de quebra, possibilitar uma união da esquerda por aqui, que começaria a ter que prescindir de sua influência totêmica.
Lula é astuto! A comoção no dia de sua prisão era só o começo de sua campanha, que ganhou corpo durante sua prisão e agora marcha impetuosa em direção a 2022. De caso pensado ou por uma orgânica genialidade política, ele sabia que a sua prisão seria alimento para recuperação de um Lula anterior ao desgaste pela mídia, pela possível (e provável) conivência com a corrupção endêmica de nossa institucionalidade e por seus próprios atos excessivamente conciliatórios e remediativos.
Assim como sua prisão na ditadura deu força ao movimento grevista da década de 80, a prisão de hoje parece alimentar o “Lula lá”. Além do mais, talvez fosse preciso um “mito” para que o Lula se tornasse “ideia” (pra citar o seu discurso antes da prisão, quando o Bolsonaro ainda era uma piadinha mítica).
A grande questão é saber se o “ser humano Lula” seria capaz de ser fiel a “ideia Lula”. Para tanto, seria interessante, por exemplo, que ele efetivasse a afirmação de que agora está muito mais à esquerda (feita logo que saiu da prisão). Seria ótimo o retorno de um Lula operário, grevista, para além do uso (marqueteiro, diga-se de passsagem) da foto de quando foi preso no DOPS veiculada junto ao “Lula Livre”. Seria muito bom, ainda, que a aproximação com o PSOL se desse em direção ao extremo, e não convergindo para um velho centro-suposto-democrático.
Ao que me parece, essa seria uma boa forma de criar uma coalizão de esquerda de fato democrática e radical, assumindo que a essência da democracia é o governo de “qualquer um”, governo daqueles que não possuem nenhum atributo específico (ou privilégio supostamente natural) para governar [21]. Neste ponto, Lula de fato poderia ser uma ideia: a ideia, afinal, de que um operário nordestino de origem pobre pode se tornar presidente. E essa ideia, sim, é fundamentalmente democrática – e, como tal, independente do Lula de carne e osso.
Não sem motivos, Lula parece ter incorporado para esquerda brasileira, a partir da década de 1980, a figura do sujeito político por excelência: isso que no léxico marxista chamamos de proletário. Pena ele não ter sido fiel a essa incorporação quando, buscando tornar-se presidente, apelou para a conciliação de classe em detrimento da luta.
Pois bem, aqui, a prudência me obriga a sugerir que esperemos os próximos capítulos, pois, como a América Latina tem bem mostrado, até 2022 nada é garantido. Mas, pelo “andar da caravana”, essa ideia bonita de Lula que eu tentei desenhar só existe mesmo num platônico mundo das ideias.
Nesse sentido, tenho pensado que é nossa tarefa pensar em como ser “extremos” sem nos enredar em fantasias paranoicas e personalistas. Isto é, como criar uma alternativa radical que equilibre essa luta política e hegemônica, porém sem tomar a mesma via populista e por demais presa a uma figura de representação forte. Um palpite: para começar, é preciso recusar qualquer sombra de fascínio caudilhesco, de centralidade totêmica e assumir a morte da já conhecida (e carcomida) política lulista, que não mais responde aos impasses do Brasil [22]. Afirmar isso não implica em deixar de ser crítico a sua controversa prisão e admirador de parte de seu legado. Pelo contrário, arrisco dizer que essa seja a única chance de salvar a “ideia Lula” (uma ideia proletária, afinal!) em sua potência real.
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Como é curioso (e triste) perceber que a extrema-direita está realizando de maneira autoritária – esse é o modo deles de ser, o que a gente esperava? – aquilo que sempre foi vocação da esquerda produzir, ou pelo menos almejar. Nesse sentido, continuo defendendo a ideia de que o bolsonarismo se alimenta de contradições sociais as quais era nossa função, enquanto esquerda, responder [23].
Eu gostaria de dar aqui dois exemplos: (1) a crítica ao caráter engessado do nosso presidencialismo de coalizão, que nos mantém reféns de um parlamento corrupto e fisiológico, vide o golpe (ou fraude, seja lá que nome se queira dar…) de 2016; e (2) a crítica ao quinhão de ideologia do qual o conhecimento científico não está isento (o famoso par foucaultiano entre saber e poder). Ora, essas críticas sempre foram nossas. Mas ainda assim, quem a está fazendo de maneira efetiva são eles, mesmo que na base da manipulação de uma massa sem consciência de sua própria condição de opressão.
Pois bem, o que seria interessante nisso tudo é que a nossa esquerda reconhecesse que há nessa massa, ou pelo menos em sua orgânica insatisfação, algo a ser ouvido e não simplesmente a rechaçar como um bando de fascistas, ignorantes e preconceituosos – ainda que uma parte considerável dela possa mesmo ser fascista, ignorante e preconceituosa [24]. Tal interpretação é tão cega quanto a que via na Revolta da Vacina – motim popular ocorrido no Brasil do início do século XX – a mera expressão de um povo que não entendia a importância dos avanços da ciência médica, em vez de uma legítima insatisfação com o Estado e suas arbitrariedades.
O nosso erro, portanto, é fechar os olhos para o que há de racional na base popular de Bolsonaro. Aqui, quando afirmo que há uma lógica subjacente à adesão de parte da população ao bolsonarismo (apesar da aparente burrice generalizada), tomo como modelo dois textos de meu amigo Philippe Campos: um que nos provoca a aprender algo com o poder de mobilização social dos neopentecostais [25]; e o outro que diagnostica o surgimento de um novo populismo como resultado do esgotamento do projeto iluminista de crença na razão [26].
O mais dramático nisso tudo é que a nossa esquerda está indo justamente na contramão da busca por compreender a “racionalidade orgânica” presente na insatisfação popular. Pelo contrário, a esquerda vem aceitando o jogo da extrema-direita que nos obriga a ser os bastiões da ordem, a voz da moderação. E nós não temos decepcionado: lá vamos nós defender uma institucionalidade que estamos cansados de saber que não tem nada de democrática e afirmar o privilégio de experts que mandam o povo tomar vacina e dizem que a Terra possui um formato esférico.
É claro que não estou propondo que a gente elogie o obscurantismo quase-medieval deles, muito menos que a gente apoie suas manobras de manejo autoritário do poder. Mas já passou da hora de a esquerda assumir o que sempre foi sua vocação e dar mais crédito para a insatisfação popular. Talvez esse seja o primeiro passo em direção a uma mobilização social que efetivamente promova consciência de classe: o bom e velho trabalho de base.
Aqui, eu tenho plena consciência de que apresentei mais críticas do que propostas de solução. De todo modo, acredito que a proposta de voltar a “ouvir o povo”, ainda que singela, seja mais efetiva (apesar de bem menos prazerosa, é verdade) do que ficar consumindo os progressismos da Rede Globo, seja no Big Brother, nos programas de humor do Adnet ou na sensatez do Dráuzio Varela [27].
Para concluir, gostaria de apelar mais uma vez a Karl Marx:
Se existe na história do mundo um período sem nenhuma relevância, é este. […] Quando o ‘espectro vermelho’, continuamente conjurado e exorcizado pelos contra-revolucionários, finalmente aparece, não traz à cabeça o barrete frígio da anarquia, mas enverga o uniforme da ordem. (p. 346). [28]
Este excerto compõe uma das mais célebres análises de conjuntura já feitas, a saber: O 18 brumário de Luís Bonaparte. Nela, Marx explica com maestria como uma potência popular de subversão (no seu caso, a que deu origem a chamada Primavera dos Povos) pode assumir, posteriormente, um tom regressivo e conservador caso a esquerda falhe em seu processo de mobilização – o que implica, consequentemente, na vitória da direita em seu processo cooptação do poder insurgente.
Não sem motivos, um leitor desavisado poderia facilmente achar que o trecho se refere à esquerda brasileira atual e não à francesa de meados do século XIX. Esquerda que, em sua falta de senso histórico, rechaça as demandas políticas da sociedade civil e traja o infame uniforme da ordem. Resta perguntar: até quando?
Notas:
[1] Nietzsche, F. (2014). Além do bem e do mal. Porto Alegre: L&PM. (Trabalho original publicado em 1886).
[2] Fonseca, T. (2019). A esquerda deve temer a ruína? Notas sobre a crise da democracia no Brasil. Disponível em: <https://18.118.106.12/2019/08/29/a-esquerda-deve-temer-a-ruina-notas-sobre-a-crise-da-democracia-no-brasil/>
[3] Cohen, P. (diretor). (1991). Arquitetura da destruição. New York: First Run Features.
[4] Silveira, P. (1997). A gênese extramundana do indivíduo: a ideologia moderna em Dumont. In: I. Cardoso & P. Silveira, Utopia e mal-estar na cultura: perspectivas psicanalíticas (pp. 9-48). São Paulo: Editora Hucitec.
[5] O que, aliás, não deixará de ser também uma autocrítica, coisa que se percebe no uso da primeira pessoa no decorrer do texto.
[6] O diagnóstico sobre a escassez de uma esquerda radical, que hoje enxerga-se com clareza a olhos nus, já vem sido veiculado há um bom tempo por teóricos como Slavoj Zizek (no cenário mundial) e Vladimir Safatle (por aqui).
[7] Marx, K. (1974). O 18 brumário de Luís Bonaparte. In: J. A. Giannotti (Org.), Os pensadores: Marx (pp. 323-404). São Paulo: Abril Cultural. (Trabalho original escrito em 1851-1852).
[8] Brum, E. (2018). A esquerda que não sabe quem é. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/19/opinion/1545240940_077902.html>.
[9] Safatle, V. (2020). Como a esquerda brasileira morreu. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-02-10/como-a-esquerda-brasileira-morreu.html>.
[10] Zizek, S. (1992). Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
[11] Safatle, V. (2018). Entrevista. Crise & Crítica, 2(2), 184-207. Disponível em: <http://criseecritica.org/wp-content/uploads/2019/06/8-Entrevista-Vladimir-Safatle.pdf>.
[12] Esse tipo de coisa que parece só acontecer no Brasil: o populista oligarca, o liberal na economia e conservador nos costumes e por aí vai…
[13] Safatle, V. (2008). Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo.
[14] Zizek, S. (1996). O espectro da ideologia. In: S. Zizek (Org.), Um mapa da ideologia (p. 7-38). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto.
[15] Fonseca, T. (2019). Op. cit..
[16] Safatle, V. (2012). A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas.
[17] Zizek, S. (2016). O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política. São Paulo: Boitempo.
[18] Zizek, S. (2017). Revisando a crítica social “lacaniana”: a Lei e seu duplo obsceno. In: R. Butler & S. Stephens (Orgs.), Interrogando o real (pp. 277-297). Belo Horizonte: Autêntica Editora.
[19] Marx, K. & Engels, F. (2011). Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes. (Trabalho original publicado em 1848).
[20] Hoje assistimos a uma situação diametralmente oposta ao apelo de Safatle pelo surgimento de “uma esquerda que não teme dizer seu nome”. Aliás, quem não tem temido dizer seu nome é a direita que, em seu cinismo, não teme dizer nada. Uma expressão contundente disso foram às últimas manifestações nazistas no Brasil, que deixaram a todos boquiabertos. Sinceramente, é ótimo que os nazistas de plantão estejam dando as caras – seja sentados num bar ou representando o governo. Me faz lembrar do Tenente Aldo Raine, do filme “Bastardos Inglórios”, que fazia uma cicatriz em forma de suástica na testa dos soldados nazista para que eles não tivessem o direito de simplesmente “tirar a farda” depois de um dia cansativo matando judeus, para que eles não pudessem se escamotear quando a guerra acabasse. Aqueles que não têm tido medo de se afirmar nazistas sempre foram nazistas. Pelo menos agora eles não estão tirando a farda e a gente pode finalmente dar nome aos bois.
[21] Rancière, J. (2014). Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo.
[22] Me parece ser a algo nesse sentido que se direciona o diagnóstico de Safatle sobre a morte da esquerda.
[23] Fonseca, T. (2019). Op. cit.
[24] Algo me diz que esta ideia me ocorreu a partir de uma fala de Paulo Arantes. Por precaução, ainda que sem ter muito certeza sobre quando e onde ouvi, dou o crédito desta ideia a ele.
[25] Campos, P. (2019). O que se pode aprender com a ascensão neopentecostal? Disponível em: <https://18.118.106.12/2019/05/20/o-que-se-pode-aprender-com-a-ascensao-neopetencostal/>.
[26] Campos, P. (2018). Esgotamento do projeto iluminista e des-recalcamento da fé: uma proposta interpretativa das bases do populismo atual. Crise & Crítica, 2(2), 96-110. Disponível em: <http://criseecritica.org/wp-content/uploads/2019/06/5-Philippe-Campos_-Esgotamento-do-Projeto-Iluminista-e-Des-recalcamento-da-fe.pdf>.
[27] Peço desculpas ao leitor pelo excesso de acidez e pedantismo deste trecho, não é da minha intenção gerar nenhum sentimento de culpa em quem assiste TV. Eu mesmo confesso ter certa admiração pelo Adnet e pelo Dráuzio Varela. De todo modo, mantenho o trecho, pois ainda acredito que a retórica pode nos fazer pensar.
[28] Marx, K. (1974). Op. cit.
* Psicanalista e doutorando em Psicologia pela UFSJ. E-mail: thalesalberto94@gmail.com