O neoliberalismo não se extingue por decreto – Notas sobre o caso do México

Por Manuel Vega Z., via Revista Rosa, traduzido por Daniel Fabre

“Vivemos em um estado neoliberal, com um direito neoliberal e isso não mudou. O neoliberalismo não se foi e ainda está para ser destruído. Se não conseguirmos diferenciar entre a forma política capitalista como a relação social hegemônica que impulsiona a reprodução social do capital, e o simples regime político que por sua vez administra essa forma política, não seremos capazes de entrar no coração do capitalismo e nossa luta contra o neoliberalismo será apenas superficial.”


Longe de nossas paixões eleitorais conjunturais (e que alegria que Macri se foi e que Peña Nieto também; e que Piñera partirá, Duque e Bolsonaro partirão), precisamos entender o que é o neoliberalismo para superá-lo. O neoliberalismo não é um governo, a cada vez. Essa constatação evita acreditar que remover um grupo político do governo e colocar outro para administrar o mesmo com algumas nuances diferentes é o suficiente para matar magicamente o neoliberalismo.

O neoliberalismo é a forma político-legal que o Estado e o direito adotaram para constituir um andaime que protege e veicula a reprodução social do capital no ritmo vertiginoso do pulso neoliberal. Ele está sendo forjado lenta, mas violentamente há pelo menos 40 anos. Está gradualmente transformando o estado capitalista com a privatização do que antes era público; tem neoliberalizado a lei capitalista com reformas estruturais que significam ainda mais precariedade do trabalho e perda de direitos sociais; materializa-se na privatização da saúde, moradia, educação, na escassez de vida, na uberização do trabalho, na desapropriação de terras e na mercantilização da água, do vento, de qualquer tipo de energia e até mesmos dos afetos.

Esses processos são graduais, progressivos e duradouros. Que alegria que se vão os neoliberais, mas a forma político-legal neoliberal herdada pelos governos progressistas é o cavalo de Tróia no qual o neoliberalismo está impregnado. A remoção de um grupo político das instituições estatais não significa nada, mas, ao mesmo tempo, é capaz de iniciar um processo de reversão – na medida do possível – da neoliberalização do estado e da lei (garantindo a regulamentação do trabalho sob o capitalismo, legislação sobre previdência social, aposentadorias, reforma tributária com impostos progressivos, nacionalização de setores econômicos estratégicos); de transformações radicais em áreas em que não é mais possível se reverter os danos (irreparáveis ​​ao meio ambiente, pontos sem retorno em que a crise ecológica põe em risco até a futura habitabilidade planetária); e também o fortalecimento de alternativas de desenvolvimento contrárias à lógica do capitalismo em sua fase neoliberal (nesse sentido, muitos povos do mundo vêm ensaiando alternativas há muito tempo).

Esses processos são de longa duração, são processos sociais materiais e não apenas jornadas eleitorais periódicas. Tirar um grupo político apenas dizendo que não haverá mais neoliberalismo e administrar a ordem existente sem revertê-la e transformá-la, não é realmente atacar a matriz jurídico-econômica-política em que se apoia o neoliberalismo.

O combate ao neoliberalismo será um processo de décadas, pois o neoliberalismo levou décadas para moldar esse Estado, a lei e até a estética e a subjetividade humana à sua imagem e semelhança. Afirmar que uma mera mudança de grupo político no poder com outras canções e outros slogans não significa, por si só, a superação do neoliberalismo, não é uma crítica dogmática ou reacionária aos movimentos progressistas na América Latina.

A única coisa que digo e sustento, apesar da possibilidade de ficar sozinho na celebração, é que deve haver critérios materiais objetivos para se avaliar como e em que medida uma alternativa político-econômica anti-neoliberal está realmente sendo construída. É possível construir coletivamente e democraticamente alternativas sociais e critérios de verificação material para avaliar a luta contra o neoliberalismo a médio e longo prazo ao invés de apenas invocar discursivamente as críticas ao neoliberalismo como mero slogan político-eleitoral.

O Estado que eles nos deixaram é neoliberal, o direito que eles nos deixaram é neoliberal, as relações de trabalho que temos hoje são neoliberais, a desapropriação de terras e a mercantilização da água que sofremos hoje são neoliberais. Por isso, combater o neoliberalismo significa, então, transformar progressivamente as relações sociais produtoras de valor – e entre elas o Estado e a lei como guardiões da reprodução social do capital -, em direção a um estágio materialmente antineoliberal, verificável objetivamente e não apenas discursivamente.

As reformas estruturais neoliberais promovidas por Peña Nieto foram revertidas? A obra de Calderón foi desfeita? O estado neoliberal no México foi desmantelado? A lei neoliberal foi corroída? Foram promovidas reformas progressivas significativas que tenham um impacto substancial no dia a dia das pessoas comuns? A terceirização de mão-de-obra foi eliminada? Os direitos sociais perdidos foram recuperados? O sistema educacional foi reformado substancialmente, promovendo um projeto aprofundado que não seja composto da visão neoliberal e das necessidades do mercado? Foram freados os processos de mercantilização da natureza, como a mineração, que destroem o tecido social dos povos e comunidades?

Não é possível fazer tudo isso em um ano. Então, por que sustentar a falsa ideia de que o neoliberalismo já se foi? Ou pior ainda, porque ideologicamente afirmar que vivemos em um estado social? Declarar que hoje temos um estado social no México, um ano após a administração do novo governo, pelo qual votei e não me arrependo, é apenas uma expressão ideológica de auto-engano, de uma alienação panfletária sem autocrítica. O estado de direito social é totalmente capitalista, porém não é neoliberal; é fordista-keynesiano. O objetivo é identificar onde está o estado social no México? Um estado social é construído em um ano? Um país dependente sujeito à divisão internacional do trabalho pode erigir um estado social em um ano? Eu afirmo que não, e não se pode esperar algo assim por pura vontade, porque seria irreal, quase mágico.

Por que enganar o povo dos países periféricos com a promessa de que a construção de um estado de direito social, democrático e capitalista é possível em nossas regiões? Essas teorias do estado de bem-estar nasceram nos centros de acumulação mundial de capital. Era a promessa civilizatória de garantir “uma vida decente” dentro do capitalismo através dos direitos sociais para neutralizar a luta de classes. Mas eles esqueceram que o capital está passando por crises cíclicas e hoje, mesmo na Europa e na América do Norte, os estados assistenciais estão quebrando, a luta de classes está novamente se tornando clara em todo o mundo. Nós, na periferia, temos estados dependentes, formas estatais dominadas, submetidas sistematicamente ao subdesenvolvimento e à divisão internacional do trabalho. Devemos pensar e orientar nossa práxis a partir do lugar em que estamos localizados, com uma perspectiva ao mesmo tempo internacionalista.

A forma-estado e a forma jurídica intrinsecamente capitalista, hoje moldadas no calor do neoliberalismo, adquiriram suas características definidoras atuais ao longo de quase meio século. Isso não muda em um período de seis anos, muito menos em um ano ou em dois. Não em três. Seria estúpido e ingênuo exigir que o neoliberalismo fosse apagado com o toque de uma caneta, que as relações sociais neoliberais de produção fossem transformadas instantaneamente pelo simples movimento de um grupo político, que por outro lado, é uma vitória eleitoral e um alento moralizante.

O que devemos nos perguntar sinceramente é se os discursos triunfalistas sobre a superação do neoliberalismo contribuem efetivamente para superá-lo ou se construímos coletivamente e democraticamente critérios materiais que ajudam a avaliar objetivamente a luta antineoliberal, sabendo, além disso, que será uma luta internacional e intergeracional, não podendo ser reduzido a um simples slogan político de tempos eleitorais. As relações sociais de reprodução da vida e não meros discursos poderiam ser um bom critério material para se orientar e analisar a luta contra o neoliberalismo.

O Estado não é uma coisa eterna e imóvel, mas uma rede de relações sociais concretas, historicamente determinadas e ligadas à universalização da produção capitalista. E, nesse sentido, reverter a neoliberalização do Estado e do direito e transformar as relações sociais neoliberais da reprodução é uma tarefa estratégica fundamental. Com um horizonte epistemológico a ser desenvolvido academicamente e para se disputar politicamente. Não é apenas uma disputa de significado, mas fundamentalmente uma disputa de forças materiais reais.

É encorajador ouvir vozes talentosas e experientes, como as de Armando Bartra e Elvira Concheiro, pedindo críticas e autocríticas na MORENA, ambos acadêmicos e combatentes sociais com uma longa história nos campos de batalha da esquerda mexicana. Seu diagnóstico é claro e contundente: há uma crise no MORENA causada pelo oportunismo político e pela falta de mobilização e estratégia no partido, uma vez que se chegou ao governo. Enrique Dussel também já chamou a atenção a esse respeito. Ou as bases sociais são fortalecidas e verdadeiros quadros políticos são construídos ou, após cinco anos, um  Lenin Moreno mexicano aparecerá.

Outros brilhantes intelectuais orgânicos do MORENA, como o proeminente constitucionalista Jaime Cárdenas Gracia e o cientista político Arnaldo Córdova, têm trabalhos fundamentais para a compreensão do neoliberalismo no México e suas relações diretas com a neoliberalização do Estado e da lei mexicana. Por que, então, não ler esses intelectuais orgânicos talentosos, em vez de repetir dogmaticamente que o neoliberalismo se foi no México e que vivemos em um estado social?

Vivemos em um estado neoliberal, com um direito neoliberal e isso não mudou. O neoliberalismo não se foi e ainda está para ser destruído. Se não conseguirmos diferenciar entre a forma política capitalista como a relação social hegemônica que impulsiona a reprodução social do capital, e o simples regime político que por sua vez administra essa forma política, não seremos capazes de entrar no coração do capitalismo e nossa luta contra o neoliberalismo será apenas superficial.

A dialética se manifesta na América Latina, novos ventos começam a soprar, mas para que seja uma espiral revolucionária e não um círculo vicioso é necessário avançar além do progressismo e do neoliberalismo que se revezam, às vezes até nos confundindo, enquanto a crise planetária, ecológica e civilizatória é apenas aguçada. A barbárie aguarda no crepúsculo do século o peso morto das gerações derrotadas e, se não houver uma mudança na direção do barco, para além da resistência pela resistência das lutas populares, se a revolução anticapitalista não for concebida com urgência como um freio de mão, nas palavras de Walter Benjamin, as nuances entre progressismo e neoliberalismo serão obscurecidas. Deve haver critérios materiais para se conceber objetivamente se o neoliberalismo está sendo combatido; porque o neoliberalismo não é superado por decreto ou por discurso de campanha.


* Manuel Vega Zúñiga é advogado e mestre em direitos humanos pela Universidade Autônoma de San Luis Potosí.


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