Por Ignacio Martín-Baró, via UCA.edu, traduzido por Thales Fonseca
Em uma recente sequência cinematográfica, cada vez mais medíocre, se fantasia sobre a possibilidade de um mundo em que uma raça de macacos “hominizados” tomaria o lugar do atual “homo sapiens”, relegado então a um neoselvagismo primitivo. [1] A causa desse hipotético transtorno o constituiria como um desdobramento da agressividade humana, uma falta de controle sobre os recursos técnicos e, portanto, uma irresponsável autodestruição do gênero humano.
Sentimos que a Segunda Guerra Mundial já está um tanto distante – ao menos psicologicamente –, permanece o medo desencadeado pela aparição das armas nucleares com sua ameaçadora capacidade aniquiladora. As angústias dos existencialistas já nos soam como romantismo e hoje ninguém perde o sono por causa de uma eventual invasão de marcianos. No entanto, os espíritos mais perspicazes não deixam de se inquietar diante de um futuro acelerado – enquanto mutação radical do presente – que ameaça transbordar com o controle humano. Não se teme o surgimento de uma raça de macacos inteligentes – hipótese exótica e nada provável –, mas sim o crescente poder da técnica, dos computadores e dos robôs biotécnicos.
Em um livro recente, El shock del futuro (Plaza y Janés, Barcelona, 1971)i, o norte-americano Alvin Toffler reflete sobre o impacto que a progressiva aceleração da técnica vem produzindo no homem. Esse impacto, ele denomina de o choque do futuro. Com ele – diz Toffler – pretende-se descrever “as desastrosas tensão e desorientação que provocamos nos indivíduos ao obrigá-los a uma mudança excessiva em um lapso de tempo demasiadamente breve”. O choque do futuro é, por conseguinte, “a doença da mudança”, “a angústia, tanto física como psicológica, nascida da sobrecarga dos sistemas físicos de adaptação do organismo humano e de seus processos de tomada de decisão… a reação humana a um estímulo excessivo”.
É indubitável que o psiquismo humano possui limites no que diz respeito à velocidade de seu funcionamento, dos quais, quando ultrapassados, se produz a taquipsiquia ou a desaceleração patológica. Segundo Toffler, a aceleração contemporânea das mudanças invade todos os aspectos da realidade, caracterizada cada vez mais pela transitoriedade, pela novidade e pela diversidade. Tudo isso rompe continuamente os esquemas de referência individual, ruptura que não é facilmente consertada. Aqui se apresenta a crise. Porque a inadequação dos esquemas frente à realidade deixa o indivíduo inerte e inseguro, o que o conduz à angústia e, definitivamente, à doença: o choque do futuro.
Toffler não parece duvidar em nenhum momento sobre a universalidade de sua análise. No entanto, é óbvio que, se seu diagnóstico é acertado, o é unicamente para aquelas sociedade ou grupos humanos afetados pela hipertrofia tecnológica. Não que Toffler ignore as diferenças existentes no mundo, nem os abismos que separam, por exemplo, o norte do sul de nossa América. Contudo, diz que isso são detalhes sem importância, “peccata minuta” facilmente solucionável, já que – segundo ele – a revolução super-industrial poderá, no momento que quiser, acabar com “a fome, a doença, a ignorância e a brutalidade”. O problema – grave problema – é que a revolução super-industrial não é uma revolução abstrata, mas sim a “revolução” (ponho o termo entre aspas porque talvez estejamos forçando demais sua significação) de uma determinada sociedade e, mais especificamente, de um determinado grupo social: o grupo dos poderosos. A ele, a seu querer ou não querer, está condicionada a solução. Existe um fato: se os poderosos quisessem, poderiam, não amanhã, mas hoje mesmo, erradicar do mundo ao menos a fome e a doença. Porém, isso exigiria de sua parte uma reconversão, uma mudança de objetivos e uma abdicação radical de seus interesses egoístas. Isso não só não se vê para o futuro, como a direção que caminhamos aponta precisamente no sentido contrário. Enquanto os poderosos seguirem considerando seu próprio desenvolvimento (inclusive a níveis gigantescos, desproporcionais) como a melhor (e quase única) meta, nós oprimidos e dominados seguiremos suportando sobre nossas costas desnutridas o peso de sua opulência. Evidentemente, isso não é um problema técnico, mas sim ético e, no fundo, político.
Toffler é um admirador da tecnologia, mais ainda, da tecnocracia. Claro que pretende impor a ela suas condições, ao menos, impor uma direção. Porém, o que nunca coloca em dúvida é a necessidade de seu crescimento e progresso eterno. Quem se opõe a técnica – é o seu raciocínio – são uns românticos retrógrados e utópicos. A tecnologia é potencialmente boa, e não é opondo-nos a ela que vamos edificar um mundo melhor, mas preparando-nos para viver sob sua hégira. Isso, mais uma vez, nos parece um raciocínio demasiadamente abstrato e, no fundo, ideológico: muito da tecnologia atualmente existente não tem nenhuma bondade, nem sequer em potência, já que sua lógica interna está nos conduzindo à destruição. Por outro lado, a nós, os povos oprimidos, não interessa ligar-nos a um carro de uma tecnologia indiscriminada e imposta; por essa via, sempre estaremos atrás dos dominadores (Varsavsky), e recebendo o que corresponde aos de trás. Pretender insinuar, como faz Toffler, que quem não se liga ao atual progresso tecnológico ficará de fora da história, é querer forçar-nos a entrar na órbita de um novo imperialismo, não mais de ordem econômica, mas técnica. No fundo, se trata de nos manter em nosso estado de opressão; a técnica se converte em um novo “ópio do povo”, uma nova maneira de vender nosso ser e nosso fazer; uma nova maneira de vender hoje o nosso amanhã.
A verdade é que nada nos força a seguir esse caminho. Nada exceto a pressão ideológica de exposições como a de Toffler e, mais profundamente, as forças que ele representa, forças que, lamentamos (e lamentamos muitíssimo), temos intrometidas até mesmo na sopa. Nosso problema, o problema das grandes massas de nosso povo, não é o choque do futuro por excesso de mudança, mas por falta. O choque do futuro não se produz somente como consequência de ruptura com os limites psíquicos por excesso (mania), mas também por falta (depressão). E este é o polo em que nós, latino-americanos, desgraçadamente nos encontramos. Para a maioria de nós, sobretudo para os realmente despossuídos, que são a maioria, o tempo – relação do homem com seu mundo – não transborda por velocidade, mas sim por quietude. É sabido que, tanto física como psiquicamente, é tão ruim para o organismo o excesso quanto à ausência de mudança. O mesmo Toffler reconhece esta polaridade em uma longa nota de sua obra. Para nós o problema não é que haja mudança em demasia, mas que não haja mudança alguma no que é fundamental há muitos séculos. A opressão da colônia se converteu em opressão do imperialismo econômico, a opressão das armas em opressão do dinheiro, e o nosso medo é que a opressão do dinheiro vá tornar-se opressão da técnica, sem que nunca nos seja possível emergir como sujeitos autônomos de nossa própria história.
O que Toffler não diz é que se um grupo social se encontra hoje submetido à pressão de uma mudança hiperacelerada, é em grande medida devido à manutenção da opressão da imobilidade a outro grupo (os povos do terceiro mundo). A supertecnificação de uns não é estranha à pauperização e subdesenvolvimento de outros, perpetuamente subjugados a sua vontade, sujeitados a seu ser, subordinados a seus interesses. A nós, povos latino-americanos, não nos pressiona o futuro; nos oprime o presente. Não se trata de um jogo de palavras afirmar que o nosso choque não é por excesso, mas por falta de futuro. Porém isso, paradoxalmente, nos abre uma nova possibilidade de libertação. Temos a oportunidade histórica de opormos, por uma opção axiológica e política, a certo crescimento tecnológico, a determinada avalanche tecnocrata e, assim, evitar o choque do futuro superacelerado. Podemos, hoje que nos encontramos na dobradiça da super-industrialização das grandes potências, renunciar a seguir esse caminho, um caminho que a nós nada promete, além da perpetuação de nosso estado de opressão. Podemos nos esquivar desse choque do futuro por excesso, não forçando nossa criatividade diante dos problemas gerados pela técnica, mas renunciando de antemão a muita dessa técnica. Que fique entendido que não estou defendendo um naturalismo pseudo-romântico, nem um rousseaunianismo ingênuo. Porém, penso que devemos descartar abertamente aquela técnica que não sirva claramente aos interesses populares. Isso, sem dúvida, é uma opção política, talvez a única opção sensata que nos é possível adotar na atual conjuntura.
Já faz anos que [Alberto] Masferrer falou de um “mínimo vital”, e seu ponto de vista segue sendo peremptório e válido. Porém, hoje convém completar essa visão, assinalando – como o fez [Ivan] Illich – um “máximo vital”. Precisamos fixar um teto à tecnologia desejável, a fim de manter tudo o que a técnica implica ao serviço autêntico – não meramente nominal – dos interesses populares. Oskar Varsavsky afirma sabiamente que já possuímos um suficiente desenvolvimento técnico material para subsidiar adequadamente as nossas necessidades mínimas; o que necessitamos é um desenvolvimento psicossocial, humano e político, que fixa – digamos assim – nossas “necessidades máximas”. Nosso problema não consiste tanto em aumentar esmagadoramente nossa renda per capita (sublinho o tanto, para não excluir a óbvia necessidade de crescimento), quanto em distribuir de maneira justa o que temos; não tanto em aumentar a variedade de produtos, quanto em baratear os essenciais que já produzimos; não tanto em incrementar os bens de consumo, quanto em possibilitar que todos tenham aquele consumo que necessitam para poder viver e se desenvolver como seres humanos. Tudo isso, pois, já não é simples questão de traçar mínimos, mas também de assinalar máximos.
Não gosto de pensar no papel do “macaco”. Porém, vou brincar com a imagem. Sem dúvida alguma, é o papel que representamos no mundo atual (dominados servis) e, certamente, o esquema com o qual nos percebem os “superdesenvolvidos” do Norte. O problema do crescimento incontrolado da técnica está acarretando aos nossos “donos” nos oferecer uma oportunidade histórica esplêndida com vistas a nossa libertação. Talvez para a criação de um “planeta dos macacos”. Porém, em todo caso, um planeta nosso, no qual poderíamos começar a fazer nossa história sem ter que pedir beneplácito aos “guardiões do zoológico”. O que não é nenhuma hipótese exótica para produtores de cinema, mas um desafio ao nosso povo.
Notas:
[1] Em um momento em que vivenciamos uma espécie de apocalipse causado pela agressividade da exploração técnica da natureza pelos seres humanos; quando a nossa posição de “perpétua colônia” se expressa, entre outras coisas, no bloqueio norte-americano que impede que cheguem suprimentos médicos aos países latino-americanos; quando o consumo voraz de certas “tecnologias”, que caracteriza o nosso tempo, se mostra cada dia mais supérfluo; e quando assistimos a cenas curiosas – como as de animais “invadindo” as ruas (deles por direito?) das grandes cidades esvaziadas – que produzem a insuspeita intuição de que o mundo pode finalmente mudar; o presente texto, escrito em 1972 por este que é um dos grandes representantes do pensamento crítico na América Latina e criador da chamada Psicologia da Libertação, parece estranhamente atual. (N. do T.).
[2] Versão brasileira: Toffler, A. (1998). O choque do futuro (6ª ed.). Rio de Janeiro: Record. (N. do T.).
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