Por João Pedro Luques
A preocupação sobre a relação entre filosofia e outras práticas é um elemento central no pensamento de Louis Althusser. Para ele, tanto a prática científica como a prática política fornecem elementos fundamentais para o pensamento filosófico. Seja para seu desenvolvimento, seja para seu atrofiamento.
Ou seja, a filosofia tem um tipo de relação com essas práticas que, ao mesmo tempo em que ela pode se nutrir delas e desenvolvê-las, ela pode também bloqueá-las. É nesse sentido que Althusser acusa Sartre não apenas de fazer uma filosofia pré-marxista e pré-freudiana, mas de fazer uma filosofia que tem o efeito de travar o desenvolvimento destas ciências, de desviá-las de seu caminho (Louis Althusser, Réponse a John Lewis, 1973, François Maspero).
Tendo em vista esta relação complexa, gostaríamos de pensar a articulação entre a filosofia de Althusser e a pesquisas sobre a questão das opressões realizada por Asad Haider.
Haider é um pesquisador e militante político Estadunidense que ganhou notoriedade após a publicação de seu brilhante livro de 2018 Mistaken Identity: Race and Class in the Age of Trump (No Brasil, o título saiu em 2019 como Armadilha da Identidade: Raça e Classe nos Dias de Hoje, pela editora Veneta). Nesta obra, dentre outras coisas, ele se destaca por discutir a questão das opressões com um rigor ímpar. Longe de defender a crítica igualmente fácil e incorreta de “a pauta das identidades teria substituído a pauta mais universal e importante da luta de classes”, o autor resgata a tradição da teoria anti-racista revolucionária para fazer uma crítica precisa à política identitária: sua lógica de acomodação para com o Estado capitalista, seu individualismo, sua gênese como resultado de derrotas políticas e crises organizativas da esquerda, etc.
Entretanto, possivelmente pelo seu claro objetivo de intervir na conjuntura política, Haider não explicita quais princípios filosóficos guiaram pesquisa. Contudo, felizmente, a publicação de seu livro no Brasil o forçou a esclarecer este ponto. Ou seja, preocupado em evitar que o público brasileiro incorresse de uma adaptação mecânica de suas teses para a realidade brasileira, de uma generalização indevida de suas considerações sobre uma formação social particular (Estados Unidos), o autor se vê forçado a falar com um pouco mais de detalhes sobre sua fundamentação filosófica. Eis o que ele diz na sua apresentação do livro realizada no espaço Tapera Taperá (SP):
“Depois de lerem meu livro, muitas pessoas me perguntam sobre qual a relação entre raça e classe. Estudando Economia Política Clássica, Marx dizia que não apenas suas respostas, mas também suas perguntas continham mistificações. Eu acredito que a questão da relação entre raça e classe é uma mistificação. Isso porque raça e classe não são objetos que existem na realidade material. Elas são conceitos abstratos que usamos para compreender aspectos de uma realidade material complexa. A realidade concreta é uma estrutura complexa, ela não é a expressão de uma essência. Ela não é como um bombom que comemos o chocolate ao redor para chegarmos a uma noz que seria a classe, a raça, ou outra coisa. Existe uma estrutura complexa na realidade material e nós usamos de abstrações para entender aspectos particulares dela […]. [N]ós não podemos compreender a relação entre raça e classe no nível das abstrações.” [1]
A fonte dessa reflexão é uma só: Althusser. Sua distinção entre a totalidade hegeliana:
“Faço aqui alusão à estrutura do todo hegeliano da qual já falei: o todo hegeliano possui um tipo de unidade na qual cada elemento do todo, seja esse a determinação material ou econômica, determinada instituição política, determinada forma religiosa, artística ou filosófica, não é nada mais do que o conceito em um momento histórico determinado” (Louis Althusser, Lire le Capital, François Maspero,1973, p. 117, tradução nossa).
E o todo marxista:
“[…] é um todo cuja unidade […] é constituída por um certo tipo de complexidade, é a unidade de um todo estruturado, compreendendo o que podemos chamar de níveis ou distâncias distintas e ‘relativamente autônomas’, que coexistem em uma certa unidade estrutural complexa, articulando-se umas sobre as outras de acordo com modos de determinação específicos, fixados em última instância pelo nível ou instância econômica (Louis Althusser, Lire le Capital, François Maspero, 1973, p. 120-121, tradução nossa).
E é aqui que a dialética entre ciência e filosofia mostra toda sua beleza. Sejamos mais claros: longe de bloquear a pesquisa com uma resposta essencialista (“Classe é mais importante que raça”; “Raça é só uma expressão da exploração de classe”, etc.), a filosofia Althusseriana coloca questões que fundamentam uma verdadeira investigação científica. Não se trata de pensar qual ente abstrato (raça ou classe) é mais importante, mas sim de realizar uma pesquisa específica para compreender como o racismo se estrutura de maneira particular em cada formação social. Como não existe uma essência, cada formação social se comporta como um todo complexo diferente, de tal maneira que dificilmente duas formações sociais apresentarão um mesmo tipo de racialização. Nas palavras de Haider:
“Há muitas situações em que aparece o fenômeno da raça, e elas são bastante diferentes entre si. De modo a entender como ele opera, temos que falar sobre essas situações em suas especificidades. Considere os seguintes exemplos: colonialismo espanhol e colonialismo holandês; colonialismo inglês na Índia e colonialismo japonês na Coreia; conflito étnico na África pós-colonial e conflito étnico nos Balcãs pós-socialista. Todos esses exemplos são acompanhados de várias ideologias de raça. Não ganhamos nada reduzindo essas situações concretas a uma única abstração, que tentamos depois explicar separadamente das circunstâncias específicas” (Asad Haider, Armadilha da Identidade, Veneta, 2019, p. 73).
Por fim, pedimos desculpa por nossa exposição um tanto curta esquemática e enfatizamos que apenas uma pequena parte da questão foi tratada aqui, que outros elementos da filosofia de Althusser abrem portas igualmente interessantes para pesquisas no campo das opressões. Pretendemos abordar essas relações em outras oportunidades…
Notas:
[1]: HAIDER, Asad. Lançamento: Armadilha da Identidade. 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=fIOB6emwZQE>. (a partir de 7 min, 21s, tradução nossa).
1 comentário em “Ler Asad Haider. O Althusserianismo e o debate das opressões, notas para uma pesquisa”
O texto está interessante, mas terminou um pouco vago. Seria fundamental ter prosseguido na reflexão, em vez de interrompê-lá bruscamente. Demais, gostei.