O que acontece depois da meia noite? Reflexões sobre o Apocalipse

Por Pedro Mauad

“Ou seja, não temos o que perder, pois o que temos atualmente é o próprio apocalipse em seus desdobramentos. Trata-se, então, de criar e construir isso que pensamos estar em risco. Mediante nosso esforço em salvar a humanidade podemos criar, pela primeira vez, uma humanidade de fato a ser salva, já que é somente por meio dessa ameaça de extinção que nos tornamos capazes de vislumbrar uma humanidade unificada a partir de sua própria inconsistência.”


Imagino ser conhecido por alguns o chamado ‘Relógio do Juízo Final’. O relógio é mantido desde 1947 pelo comitê de diretores do Bulletin of the Atomic Scientists da Universidade de Chicago. Seu objetivo é marcar quanto tempo falta para a meia noite, isto é, para a hora em que o mundo acaba. A cada nova ameaça, o relógio é adiantado alguns minutos, e seu avanço inicial se deu quando a União Soviética testou sua primeira bomba nuclear. Naquela época restavam sete minutos para a meia noite, hoje, em 2020, falta um minuto e quarenta segundos. 

Em um artigo de 2017[1], Alenka Zupancic recupera um texto de Maurice Blanchot de 1964 com um título bastante curioso, “O apocalipse é decepcionante”. Blanchot escreveu esse texto tendo em vista a Guerra Fria e a iminência de um conflito nuclear entre EUA URSS. Mas, poderíamos nos perguntar, em que sentido o apocalipse seria decepcionante uma vez que ele representa o fim da vida humana? A resposta é simples: ele é decepcionante justamente porque ele não realiza esse fim. Tal como durante a Guerra Fria, ele permanece sempre como uma ameaça, e essa ameaça nunca corresponde ao seu poder de destruição. E, como observa Alenka, “mesmo que a realização dessa ameaça nos matasse, não seríamos exatamente sobrecarregados pelo seu poder, mas varridos pela sua fúria”, de modo que esse fim se torna insignificante em si mesmo, não existirá ninguém para testemunhá-lo. Seja como for, nos importa mais aquilo que o apocalipse põe em ameaça e menos se essa ameaça vai se realizar ou não. Isso nos mostra que ao pensarmos no apocalipse, colocamos em evidência a totalidade da humanidade que tem sua existência ameaçada.

No entanto, segundo Alenka,

“a idéia do todo (de um tudo que pode ser perdido) só aparece através de uma negação; ela apenas constitui um todo na perspectiva de estar potencialmente perdido. Em outras palavras, não há totalidade (existente), nem “todo o mundo”, que poderia eventualmente ser (realmente) perdido em um apocalipse atômico; paradoxalmente, é apenas a perspectiva dessa perda (potencial) que a constitui ou a faz parecer como uma totalidade ou um todo. ”

Sendo assim, podemos dizer que é diante de uma possível destruição, isto é, de uma negatividade explícita, que adquirimos consciência e que ganha concretude aquilo que possivelmente pode ser perdido; tal como o escravo, que na dialética hegeliana entre a dominação e a servidão, só advém à vida após enfrentar a morte. Podemos ir além e afirmar que é somente após atravessar essa negatividade ameaçadora que criamos o que pode ser destruído. Não há um todo da humanidade para ser destruído, a menos quando o postulamos mediante a ameaça de sua extinção. Dito de outro modo, a ideia de uma totalidade da sociedade se consuma retroativamente ao colocar os seus próprios pressupostos. Temos com isso um bom exemplo do funcionamento da negação da negação de Hegel: longe de representar, no sentido cronológico, o momento final de um movimento dialético, a negação da negação é um movimento que tem sua verdade em uma simultaneidade retroativa, ela põe retroativamente aquilo que a pressupõe.

Ora, o mesmo não vale para a situação em que nos encontramos hoje? Para aproveitarmos o título do artigo de Alenka, o apocalipse, representado pela ameaça ainda misteriosa da COVID-19, a qual podemos também acrescentar o aquecimento global ou até mesmo uma nova ameaça de guerra nuclear, não continua decepcionante? Mas também, do mesmo modo, não é justamente essa ameaça que nos coloca em condição de defender uma ideia de todo social que não gostaríamos que fosse eliminado?

É bastante conhecida a frase de Frederic Jameson, “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, que explicita como, ao imaginário social é mais verossímil especular sobre um desastre nuclear ou ecológico, do que reconhecer que a lógica capitalista está exaurindo o mundo e que precisamos superá-la para impedir que o mundo acabe. Mas, e se ao invés de estar nos conduzindo para o fim do mundo, tal lógica for, na verdade, a própria expressão de um apocalipse que já está acontecendo? Seria o caso de dizer que nosso relógio está atrasado, já é mais de meia noite e, parafraseando Achille Mbembe[2], mesmo antes do coronavírus, a humanidade já estava morrendo de asfixia. O apocalipse já começou e se tornou parte de nossas vidas. Como sugere Alenka, “ele não está nos esperando em algum lugar do futuro, mas está determinando nossas condições sociais, econômicas e ambientais”, enquanto, por outro lado, ele “pode levar tempo, mesmo muito tempo; ele não é necessariamente um evento instantâneo, mas pode durar e durar… o suficiente para um outro mundo e uma nova história ter lugar antes de ‘tudo acabar’.”

Recuperando o raciocínio que construímos anteriormente, não seria o caso de também dizermos que por habitarmos o fim do mundo, podemos, por isso mesmo, sermos interpelados pela totalidade social e, quem sabe, agirmos em função do que ela representa para nós, ou seja, nossa própria existência? Com isso realizamos uma mudança de perspectiva que desloca o modo como enxergamos o problema. Vermos por esse ângulo nos possibilita transformarmos nosso problema em uma possível solução: trata-se de afirmarmos que, mais do que significar o fim do mundo, o apocalipse pode nos dar as condições para um novo mundo. Seguindo Alenka, não se trata tanto de “mudar o mundo”, mas de criá-lo. E criá-lo porque um mundo pensado de fato a partir de sua totalidade nunca existiu. Tal totalidade não é, ao contrário do que pode dar a entender, nenhum tipo de totalidade orgânica e harmoniosa, mas simplesmente uma totalidade que não nega seus próprios antagonismos. Uma totalidade que reconhece sua possibilidade de efetivação naquilo que a ameaça destruir. Em suma, a totalidade social é, na verdade, um não-todo, ou uma totalidade barrada, e por isso sua via de acesso precisa ser a negatividade. Além disso, não faz sentido pensarmos em termos de um ‘depois’, o apocalipse é aqui e agora e não há outro modo de criarmos esse novo mundo que não seja pela política.

A política só é possível porque a própria sociedade é clivada em seu interior pela impossibilidade de existir plenamente, isto é, a sociedade não tem uma unidade que a legitima enquanto tal, não há um elo de ligação orgânico entre seus membros –  o que significa dizer que a sociedade em si não existe. Como vimos, a ideia de uma totalidade social só é possível através do significado que damos a ela retroativamente, e esse significado adquire seu sentido dialeticamente ao se confrontar com a negatividade. Desse modo, é necessário a produção de significantes que artificialmente possibilitem a existência do que compreendemos por sociedade. No entanto, tais significantes são vazios, não trazem consigo nenhum conteúdo para além daquele que existe na sua própria superfície. O que difere tais significantes, na política, é a capacidade de cada um de se tornar hegemônico. Colega e conterrâneo de Alenka, Slavoj Zizek irá dizer que, “uma vez que ‘a sociedade não existe’, a unidade definitiva só pode ser simbolizada na forma de um significante hegemonizado por um conteúdo particular – a batalha por esse conteúdo é a batalha política.”[3] A política é, então, a luta pelo conteúdo do significante vazio que representa a impossibilidade da Sociedade. E o conteúdo do significante, por sua vez, é político, uma vez que não há política fora da ordem do significante. O ato político dessa imposição muda a própria estrutura que determina como as coisas funcionam, nas palavras de Zizek, ela transforma os próprios parâmetros daquilo que é considerado ‘possível’ na constelação existente. É assim que passamos de um ainda não para o sempre-já: depois de consumado o ato político, é como se sempre já estivéssemos sob suas determinações, embora isso só ganhe efetividade na medida em que é posto retroativamente.

No entanto, a distinção entre o nível zero da lacuna – a impossibilidade que define a condição social -, e seu preenchimento com uma nova hegemonia deve ser rejeitada por ser falsa: “o nível zero nunca está ‘aí’, só pode ser vivenciado retroativamente, como a pressuposição de uma nova intervenção política, da imposição de uma nova ordem.” A força política da desordem, portanto, não antecede stricto sensu a própria política, ela atua justamente no momento retroativo em que ao adentrarmos na dimensão do sempre-já, somos capazes de postular um ainda não. Muito mais do que simplesmente preparar o terreno para a imposição de uma reestruturação da ordem social, o apocalipse explicita a posteriori a lacuna, é ele quem nos fornece o reconhecimento da lacuna como verdade e possibilidade da transformação do estado de coisas atual. De outro modo, a vinculação política com esse transformação, ou revolução, se preferirmos, se daria nos contornos de uma ideologização substancialista desse novo, isto é, perderia de vista a condição radical da política ao desconsiderar a lacuna ou inconsistência de toda ordem social, assim como perderia a dialética própria à retroatividade enquanto constitutiva do sentido dos acontecimentos.

 Mais uma vez, então, precisamos nos desvencilhar de qualquer pensamento cronológico e linear ao refletirmos sobre as relações que existem entre o sujeito e a política, entre os indivíduos e o não-todo social. Nos limites de nossa linguagem, podemos dizer que o que ocorre é um processo que se dá de trás pra frente, em que o fim antecede o começo. Ou, segundo o modo como Zizek interpreta esta passagem da Enciclopédia de Hegel: “a plena realização do fim infinito é somente suprassumir a ilusão de que o fim não foi ainda realizado”[4], não realizamos esse fim ao atingi-lo, “mas provando que já o atingimos, mesmo que o caminho para sua realização esteja oculto de nossas vistas.”[5]

Portanto, diante da ameaça do fim dos tempos, em que somos capturados pelo medo de ‘perder tudo’,nos diz Alenka que,

“na verdade somos reféns de algo que ainda não existe. E esse tipo de chantagem não é, de fato, o próprio meio de garantir que nunca existirá?  Isso nos faz focar em preservar o que existe e o que temos, mas exclui qualquer alternativa real, qualquer meio de pensar de maneira diferente. […] A verdadeira escolha é “perder tudo” e criar o que estamos prestes a perder (mesmo se perdermos tudo no processo): somente isso poderia eventualmente nos salvar, em um sentido profundo ”.

Ou seja, não temos o que perder, pois o que temos atualmente é o próprio apocalipse em seus desdobramentos. Trata-se, então, de criar e construir isso que pensamos estar em risco. Mediante nosso esforço em salvar a humanidade podemos criar, pela primeira vez, uma humanidade de fato a ser salva, já que é somente por meio dessa ameaça de extinção que nos tornamos capazes de vislumbrar uma humanidade unificada a partir de sua própria inconsistência. Retroativamente, portanto, postulamos aquilo que queremos salvar e, fazendo isso, criamos o que é pressuposto. E isso quer dizer que não podemos nos iludir com um fim que ainda estaria por se realizar, mas apenas que precisamos mostrar que já o atingimos, se quisermos falar em termos de um futuro, é um futuro que só tem sua razão de ser enquanto é manifestado no presente.


Referências

[1] Ver Alenka Zupančič, “The Apocalypse is (Still) Disappointing”, em Ben Hjorth (ed.), Lost Cause (“Repetition/s”), S: Journal of the Circle for Lacanian Ideology Critique, v. 11, 2018. Disponível em: http://www.lineofbeauty.org/index.php/S/article/view/82/101

[2] Achille Mbembe, O direito universal à respiração. Em: https://n-1edicoes.org/020

[3] Slavoj Zizek, O Sujeito incômodo, p.195

[4] Enciclopédia das ciências filosóficas: A ciência da lógica, p. 347

[5] Slavoj Zizek, Interrogando o real, p. 42

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