Por Eginardo Pires, via Encontros com a Civilização Brasileira, transcrito por Rômulo Cassi Soares de Melo
Em meio ao clima de medo em relação a corrente althusseriana[1], o Brasil debatia, na década de 1970, o ensaio Ideologia e Aparelhos ideológicos de Estado de Louis Althusser. Exatamente nesse contexto, intervém Eginardo Pires, dirigindo sua crítica impiedosa – ora republicada – aos comentários do então “príncipe dos sociólogos”. Mas longe de ser um texto datado pela conjuntura, esta é uma resposta que, a exemplo de anti-Düring ou Resposta a John Lewis, se autonomiza do debate que a produziu para estabelecer o seu brilho próprio. Por isso, merece ser relida.
Em um artigo publicado há cerca de um ano sobre Estado Capitalista e Marxismo,[2] Fernando Henrique Cardoso passa em revista o desenvolvimento da teoria sobre este tema, a partir de Hegel, e conclui com algumas formulações próprias a respeito do Estado, dos Partidos e dos regimes políticos. Esta seção conclusiva me parece ser o que há de mais convincente em seu texto. A parte mais importante do inventário crítico que a precede é dedicada a Gramsci e Althusser. A crítica a Gramsci não se sustenta, a meu ver, mas acredito ser preferível deixar a discussão a respeito para cientistas sociais mais familiarizados com a obra rica e complexa deste pensador e dirigente político italiano. Quanto a Althusser, minha posição é distinta: a discordância com a “crítica” de Cardoso é total e não existe a limitação de um conhecimento insuficiente da obra. Proponho-me, portanto, fazer aqui a desmontagem desta “crítica”. Mas é preciso passar antes pelos pontos de acordo, não apenas pelo respeito que Cardoso merece, pelo reconhecimento que é devido a tudo o que existe (sempre) de válido e relevante em suas contribuições, mas também para encaminhar minha questão e suscitar esta primeira dúvida: como pode ser Althusser o que Cardoso nos diz se alguém, defendendo Althusser, subscreve integralmente suas proposições positivas sobre o Estado e as classes? Vejamos, portanto, o que Cardoso nos ensina quando seu espírito está mais livre e menos preocupado, como diriam os economistas, com a “concorrência”.
Primeira proposição — É necessário distinguir o Estado enquanto organização (e a burocracia) do Pacto de Dominação que se expressa também na organização estatal. [3] Este Pacto de Dominação não tem nada em comum com um “contrato social” (pois não exclui a coerção, não se consolida apenas pelo consenso), mas se define como o conjunto das alianças entre frações das classes dominantes e seus vínculos com setores das classes subalternas que o Pacto pode também englobar (conforme o caráter do regime político em questão). Cardoso retoma aqui, em outros termos, à distinção proposta por Althusser entre o aparelho do Estado e o poder de Estado.[4] Valendo-se do exemplo da história política francesa no século passado, Althusser indica, em seu texto sobre os Aparelhos Ideológicos, que as sucessivas mudanças de regime deixaram mais ou menos intacto o aparelho estatal (o Estado como organização), ao mesmo tempo em que estavam associadas a mudanças na detenção do poder de Estado, isto é, a modificações do sistema de alianças de classe (ou do Pacto de Dominação).
Segunda proposição — “O espaço teórico da dominação de classe não coincide totalmente com o Estado, embora encontre nele o ponto nodal para manter a articulação da estrutura da sociedade.”[5] Cardoso insiste aqui na distinção entre a “sociedade civil”, ao nível da qual se organizam e se expressam os interesses privados ou setoriais da sociedade (através das associações, dos partidos, das escolas, dos meios de comunicação etc.) e o aparelho centralizado do Estado. A ênfase nesta distinção tem suas raízes na prática teórica e política de Cardoso, que foi o primeiro a formular de modo adequado, em nosso país, a questão da democracia. As exigências da luta democrática impõem que se coloque no primeiro plano, como objetivo, o desenvolvimento e o reforço das organizações autônomas da “sociedade civil”, e esta necessidade encontra sua expressão teórica na resistência de Cardoso em aceitar a identidade formulada por Gramsci entre Estado e “sociedade civil”,[6] assim como a afirmação althusseriana de que os aparelhos ideológicos (sindicatos, partidos, escolas etc.) são também aparelhos de Estado, mesmo quando seu estatuto jurídico os situa na esfera privada. Mas a discordância, aqui, é apenas nominal. Os referidos aparelhos ideológicos são de Estado, segundo Althusser, porque, quer sejam públicos ou privados, eles têm todos uma idêntica função, a reprodução da ideologia dominante, e participam portanto (como mecanismos necessários deste processo) do processo global de reprodução das relações de produção capitalistas. E ao contrário do que Cardoso nos quer fazer acreditar (como veremos mais adiante), Althusser deixa bem explícita a razão pela qual os aparelhos ideológicos (que são múltiplos e não estão sujeitos a uma unidade de comando) são particularmente permeáveis às contradições e às lutas que dividem a sociedade, o que caracteriza sua “autonomia relativa” diante do aparelho coercitivo estatal.
Terceira proposição – O Pacto de Dominação “requer contínuos esforços de preservação, ao nível da sociedade, da economia e ao nível da máquina política. Ele é, pois, constituído de tensão e de luta permanente.”[7] Aqui, uma vez mais, Cardoso reencontra Althusser. O sistema de alianças de classe, que é uma forma concreta, particular e historicamente menos durável da dominação de classe, requer, para sua preservação, uma luta contínua. Não basta que ao nível “econômico” se realize o processo de reprodução do capital, a reprodução das relações de produção capitalistas (nem basta, como talvez Cardoso julgasse conveniente acrescentar, que se processe ao nível “econômico” uma forma concreta e historicamente determinada da acumulação de capital, um “padrão de acumulação”, reproduzindo, enquanto dura, o predomínio “econômico” de uma fração da classe capitalista sobre as demais). É necessário que o Pacto de Dominação seja garantido em sua continuidade por uma luta política e ideológica. Esta última, embora não ausente no interior do aparelho coercitivo do Estado, tem seu locus privilegiado nos aparelhos ideológicos. A única “nuance” que separa Cardoso de Althusser neste ponto (“nuance” já explicada no tópico anterior) está no fato de que ele se recusa a considerar estes aparelhos como sendo aparelhos de Estado. A luta ideológica se dá “ao nível da sociedade”.
Quarta proposição — Quando partes do aparelho de Estado “conseguem ser controladas por setores de classes não pertencentes ao Pacto de Dominação vigente, as classes e frações que constituem este último podem refluir do Estado e tentar rearticular a dominação através de uma estratégia que vise reocupar o Estado a partir de recursos políticos, de força e ideológicos, existentes ao nível das próprias classes”.[8] Esta generalização (como indica a referência feita, no texto, ao caso chileno) é um subproduto próprio da prática teórica de Cardoso, do esforço coletivo de nossos intelectuais (dentro do qual, como se sabe, ele tem-se destacado pelo valor de suas análises) no sentido de compreender os problemas políticos das sociedades latino-americanas.
Quinta proposição — Não se pode dizer “que qualquer tipo de regime seja possível em qualquer forma de acumulação, a qualquer momento”.[9] Deve existir, portanto, uma certa relação necessária (difícil de se formular teoricamente) entre os “padrões de acumulação” e os regimes políticos (liberal, bonapartista, autoritário, populista, fascista etc.) que expressam e tornam politicamente viáveis determinados Pactos de Dominação ou sistemas de alianças e dominação de classe. Mas não se pode concluir disto que toda mudança de regime seja determinada por alterações do padrão de acumulação. Aqui, novamente, as fórmulas de Cardoso (que são justas) têm suas raízes na prática teórica de nossos economistas e cientistas políticos (entre os quais ele mesmo, com o destaque que já foi mencionado acima). Na conjuntura em que vivemos, tais fórmulas significam precisamente isto: a democracia é possível, ou é possível um avanço significativo em direção à democracia, mesmo sem que se alterem algumas características básicas do atual padrão de acumulação na economia brasileira, como por exemplo aquela à qual Cardoso e Faletto deram o nome de “internacionalização do mercado interno”.
Sexta proposição — A autonomia relativa do político (com relação ao econômico) deve ser entendida como a autonomia relativa não do Estado, mas da prática política (ou do “movimento das classes”).[10] Cardoso redescobre aqui, por sua conta, as proposições já antigas do primeiro escrito de Balibar.[11] A diferença está em que Balibar (que é um autor que se situa, como se sabe, dentro da corrente althusseriana) tratava das variações do espaço aberto à luta de classes associadas a mudanças do próprio modo de produção, ao passo que Cardoso se refere às variações do grau de autonomia da instância política ligadas a mudanças de regime (ou do padrão de acumulação, com as qualificações já feitas acima), no quadro da dinâmica de longo prazo de uma sociedade dominada por um mesmo modo de produção.
Podemos agora nos defrontar com a outra face de Cardoso, a sua face “crítica”. A primeira questão que se põe é a da relevância da obra de Althusser. Cardoso nos diz que este autor foi (merecidamente) relegado ao esquecimento[12] (o que é factualmente inexato, a não ser que ele esteja se referindo às deficiências de sua própria memória) e afirma categoricamente que seu trabalho, “até agora, não abriu caminhos para uma análise realmente política do Estado e das classes”.[13]
Já temos boas razões para suspeitar que esta afirmação não se sustenta; o próprio Cardoso nos oferece uma contraprova adicional para sua tese, ao resumir e citar com aprovação as análises mais recentes de Poulantzas,[14] pois se sabe que todo o trabalho teórico de Poulantzas (a partir de Pouvoir Politique et Classes Sociales*) tem seu alicerce na leitura althusseriana dos clássicos do marxismo. E o próprio Cardoso está mais do que consciente desta relação entre os dois autores, uma vez que julgou necessário, em uma crítica anterior a Poulantzas, atacar a filosofia althusseriana que ele entrevia por trás de suas formulações teóricas.[15]
A “crítica” de Cardoso resulta de sua incapacidade em compreender não só o significado dos textos de Althusser como também (o que é essencial para compreender este significado) a dinâmica destes textos, ou seja, seus efeitos. Esta incapacidade tem suas raízes, por sua vez, em um preconceito antiteórico muito difundido entre nossos intelectuais de maior talento, preconceito antiteórico que chega às vezes ao ponto extremo de impedi-los de admitir que fazem teoria mesmo quando a fazem (e bem).[16] Este preconceito se expressa sob a forma de diversas concepções filosóficas equivocadas sobre a natureza do trabalho teórico e de seus resultados. A teoria não é um subproduto natural e automático das análises concretas, nem a síntese maravilhosa onde se condensa e se revela (no sentido religioso de “revelação”) toda a complexa riqueza que nos é possível captar no mundo real. A teoria é um conjunto logicamente articulado de problemas e de respostas a estes problemas, que pela própria força de sua lógica, combinada com as exigências e as lições da prática não-teórica, nos permite (com segurança) colocar e resolver incessantemente novos problemas. Desconhecendo o que Althusser nos ensina sobre a abertura característica das problemáticas científicas, Cardoso se impede de apreender o que constituí a dinâmica de uma teoria e, para começar, a da teoria do autor que serve de alvo à sua “crítica”.
Passemos agora à “crítica” propriamente dita, dirigida ao texto já citado sobre os Aparelhos Ideológicos de Estado. Depois de observar que “paradoxalmente”[17] (por que “paradoxalmente”?) coube a Althusser desenvolver (“extremando-as”) as análises e indicações de Gramsci sobre os aparelhos ideológicos, Cardoso avança algumas teses que serão discutidas adiante e manifesta em seguida sua insatisfação pelo fato de que Althusser não fala da “luta de classes” tanto quanto ele, Cardoso, gostaria. Althusser presta, segundo ele, “uma homenagem verbal” à luta de classes e desenvolve sua análise distanciando-se de Marx. Uma pergunta: por que razão teria Althusser alguma necessidade de prestar “homenagens verbais” à luta de classes? Em uma passagem de gosto duvidoso que conclui uma nota de rodapé (a qual será citada mais adiante), Cardoso nos sugere, sem ser muito explícito, que Althusser teria alguma culpa a expiar a este respeito.[18] Passemos adiante. Em O Capital existem seções inteiras (a primeira, para começar) em que Marx não diz uma palavra sobre a luta de classes. Fica com Cardoso o ônus da prova: demonstrar que estas seções são absolutamente inúteis do ponto de vista da luta de classes. Por outro lado, quem lê o texto de Althusser verifica que suas “homenagens verbais” à luta de classes, à luta de classes das classes dominadas contra a luta de classes das classes dominantes, consistem na verdade em uma longa nota de rodapé e três ou quatro parágrafos que transcrevemos a seguir, respeitando sua ordem de sucessão:
“Que nós saibamos, nenhuma classe pode deter de modo durável o poder de Estado sem exercer ao mesmo tempo sua hegemonia sobre e nos Aparelhos Ideológicos de Estado (…) Esta última observação nos permite compreender que os Aparelhos Ideológicos de Estado possam ser não só o alvo, mas também o lugar da luta de classes, e frequentemente de formas ferozes de luta de classes. A classe (ou a aliança de classes) no poder não impõe a lei nos AIE tão facilmente como no aparelho (repressivo) de Estado, não somente porque as antigas classes dominantes podem conservar aí, durante muito tempo, fortes posições, mas também porque a resistência das classes exploradas pode encontrar o meio e a ocasião de neles se exprimir, seja utilizando as contradições que aí existem, seja conquistando pela luta posições de combate.”[19]
Duas páginas adiante, Althusser nos explica por que é especialmente (ele não diz que é exclusivamente) nos aparelhos ideológicos que isto é possível:
“Enquanto o Aparelho (repressivo) de Estado constitui um todo organizado cujos diferentes membros estão centralizados sob uma unidade de comando, a da política da luta de classes aplicada pelos representantes políticos das classes dominantes que detêm o poder de Estado — os Aparelhos Ideológicos de Estado são múltiplos, distintos, “relativamente autônomos” e suscetíveis de oferecer um campo objetivo a contradições que exprimem, sob formas ora limitadas, ora extremas, os efeitos dos choques entre a luta de classes capitalista e a luta de classes proletária, assim como suas formas subordinadas.”[20]
E, oito páginas depois (páginas sobre história da Europa), uma análise concreta atual, para satisfazer o nosso “crítico”:
“De fato, a Igreja foi hoje substituída pela Escola em seu papel de Aparelho ideológico de Estado dominante. Ela forma um par com a Família, assim como outrora a Igreja formava um par coma Família. Pode-se então afirmar que a crise, de uma profundidade sem precedentes, que abala através do mundo o sistema escolar em tantos Estados, frequentemente combinada com uma crise (…) que sacode o sistema famíliar, adquire um sentido político, se se considera que a Escola (e o par Escola-Família) constitui o Aparelho ideológico de Estado dominante, Aparelho que desempenha um papel determinante na reprodução das relações de produção de um modo de produção ameaçado em sua existência pela luta de classes mundial.”[21]
Não sei se Cardoso teria algo a acrescentar ao que Althusser nos diz sobre a luta de classes nos aparelhos ideológicos de Estado, porque ele não o faz: constato apenas que ele não ficou satisfeito com o que leu em Althusser. Suas “críticas” a este respeito são de uma má vontade desconcertante para quem conhece o texto criticado. Segundo ele, as diferenças estabelecidas por Althusser entre o Aparelho repressivo e os Aparelhos ideológicos são “tautológicas”: um reprime, os outros convencem, por definição. “O que para Althusser distingue o Estado de seus aparatos ideológicos é que estes são diversos e a Repressão Estatal é uniforme, e que enquanto o Estado funciona pela repressão, os aparatos ideológicos convencem.”[22] Ora, toda definição é “tautológica” e Althusser não diz apenas isto; ele diz também, seguindo Gramsci, que “todos os Aparelhos de Estado funcionam ao mesmo tempo pela repressão e pela ideologia, com esta diferença de que no funcionamento do Aparelho (repressivo) de Estado predomina maciçamente a repressão, enquanto no funcionamento dos Aparelhos Ideológicos de Estado predomina maciçamente a ideologia”.[23] Cardoso caracteriza a seguir como “filosófico” o discurso de Althusser neste texto (por desconhecer a diferença entre discurso científico e discurso filosófico) e contrapõe à análise do autor criticado alguns ensinamentos que poderiam ser extraídos de uma “análise sociológica”, arrolando sob esta rubrica algumas generalidades de proveniência gramsciana sobre a variabilidade da correlação de forças segundo a conjuntura, a oscilação no uso da força e da persuasão etc. Toda esta démarche “crítica” desemboca num segundo ponto básico, que está relacionado com a confusão verbal em torno da “sociedade civil”. Já se observou que com esta expressão Cardoso designa a esfera relativamente autônoma e independente (por oposição ao “Estado”) dos interesses privados ou setoriais de segmentos ou classes, na medida em que estes se estruturam e se exprimem no que Althusser denomina “aparelhos ideológicos de Estado”. Mas como ao usar esta expressão alternativa Althusser parece incluir a “sociedade civil” dentro do “Estado” (no sentido que Cardoso atribui a este termo), Cardoso entende que com isto Althusser priva a “sociedade civil” (assim como a “economia”) de qualquer existência e realidade próprias, o que suscita sua objeção, uma vez que ele, Cardoso, está preocupado (por razões práticas, como vimos) em enfatizar a independência e a autonomia da “sociedade civil” (dos aparelhos ideológicos) com relação ao “Estado” (com relação ao aparelho coercitivo e centralizado do Estado). Daí (desta confusão) nasce a segunda “crítica” a Althusser: este retornaria a Hegel. A sociedade não existe mais; ela é uma realidade sem consistência própria e derivada do Estado; o Estado produz a sociedade. “Althusser segue pelo caminho intelectual das petições de princípio até fechar o círculo do raciocínio pela volta a Hegel, ao Espírito Absoluto; encarnado na Ideologia e no Estado, seria este quem garantiria, através de seus aparatos Ideológicos, a reprodução das relações de produção.”[24]
Eu poderia remeter o leitor a trabalhos anteriores de Althusser e Balibar, nos quais se encontram (que eu saiba) as análises mais rigorosas de toda a tradição do pensamento marxista sobre o que pode significar a determinação em última instância do político pelo econômico e seu correlato, a autonomia relativa das instâncias e das práticas não-econômicas, e onde se encontram, também, as análises mais rigorosas sobre a ideologia filosófica hegeliana no que nos interessa, isto é, naquilo que caracteriza a sua diferença com relação à problemática científica de Marx. Prefiro me ater, no entanto, ao trabalho sobre os Aparelhos Ideológicos que constitui o objeto de nossa discussão, para tentar reconstituir sinteticamente o sentido da exposição de Althusser. Ele parte de um problema, o da reprodução das relações de produção e das forças produtivas, tomando como referência a análise clássica de Marx sobre o processo de reprodução do capital em seu conjunto, ao nível “econômico”. Aborda então a questão da reprodução da força de trabalho e põe em evidência a necessária intervenção (hoje em dia) do aparato escolar capitalista neste processo. Aqui ele aponta o que falta na análise de Marx, e que pode ser desenvolvido, não obstante, dentro das linhas básicas de seu quadro teórico: o processo simultâneo de “formação profissional” do trabalhador e de inculcação da ideologia dominante, a qual funciona, em sua existência material, como uma unidade indissociável de discursos e comportamentos. Vejamos agora o termo de sua análise sobre os aparelhos e sobre os mecanismos sociais da ideologia. Ele assinala, concluindo, que suas teses permanecem ainda abstratas e deixam em suspenso “o problema do processo de conjunto da realização da reprodução das relações de produção”,[25] processo global que envolve não só a articulação da ideologia (no sentido exposto) com os mecanismos “econômicos” da produção e da circulação do capital, mas também com a luta de classes. As proposições acima transcritas sobre a existência da luta de classes nos aparelhos ideológicos e suas condições de possibilidade não constituem ainda, portanto (como Althusser nos adverte), uma teoria da dinâmica da luta de classes no processo de reprodução.[26]
Esta é uma démarche tipicamente althusseriana: uma análise desenvolvida com rigor lógico, partindo de um problema definido e tendo como conclusão a formulação de um novo problema que permanece aberto. Este é o “círculo” do pensamento de Althusser: o círculo aberto de uma problemática científica, que se distingue bem do fechamento ideológico dos filósofos que seduzem Cardoso. Voltemos, agora, ao nosso “crítico”. Qual é o seu procedimento diante deste texto? Toda a sua operação “crítica” consiste, simplesmente, nisto: ele toma o texto de Althusser, contra as afirmações explícitas do próprio Althusser, como se este texto pretendesse conter uma teoria do processo de reprodução das relações de produção em seu conjunto. Como Althusser se limita a estudar o funcionamento dos aparelhos ideológicos e da Ideologia (considerada, digamos assim, “em si mesma”, para um primeiro exame), o resultado não pode ser senão este: Althusser transformado em Hegel, dizendo-nos que o Estado e a Ideologia é que produzem a sociedade. Cardoso se agarra a um pedaço do discurso de Althusser (isto é: despedaça-o) para destruí-lo, assimilando-o a um filósofo do qual ele procura se diferenciar. Veremos adiante que o método de leitura proposto pelo próprio Althusser é bem mais exigente: ele impõe como requisito preliminar que se tome em consideração não só o conjunto do texto discutido, como também o conjunto da obra em que este texto se insere e ainda mais do que isto: o conjunto das obras dos outros autores dos quais o autor examinado pretende se distanciar em seu trabalho de crítica e elaboração teórica.
Prossigamos. Cardoso investe agora contra uma outra passagem do texto de Althusser que parece de fato, à primeira vista, bastante estranha: a afirmação da eternidade da ideologia. Vejamos o contexto onde ela aparece: Althusser assinala, em outros termos, que as ideologias, em um sentido mais concreto, são múltiplas e variáveis: mudam com a transformação da sociedade, segundo as conjunturas da luta de classes etc. Mas em toda sociedade se observa a presença e o funcionamento da ideologia; neste sentido, a ideologia em geral não é histórica: ela atravessa a História, em sua permanência. Aqui surge o parágrafo transcrito por Cardoso:
“Se eterno quer dizer não transcendente a toda história (temporal), mas onipresente, trans-histórico, logo imutável em sua forma em toda a extensão da história, eu adotarei, palavra por palavra, a expressão de Freud e escreverei: a ideologia é eterna, exatamente como o inconsciente. E acrescentarei que esta aproximação me parece teoricamente justificada pelo fato de que a eternidade do inconsciente não deixa de estar relacionada com a eternidade da ideologia em geral. Eis aí a razão pela qual creio estar autorizado, ao menos hipoteticamente, a propor uma teoria da ideologia em geral, no (mesmo) sentido em que Freud apresentou uma teoria do inconsciente em geral.”[27]
É visível que, nesta citação, se a lemos bem, o essencial é a referência à “autoridade” de Freud (Cardoso traduz autorisé como justificado) e a afirmação segundo a qual “a eternidade da ideologia tem relação com a eternidade do inconsciente”, afirmação que deveria ser trazida para o centro do debate. Aliás, Cardoso comete aqui, mais uma vez, um pequeno ato de “despedaçamento”, suprimindo precisamente em sua transcrição a parte do parágrafo que precede a referência a Freud, mas não com a intenção de focalizar nesta referência a questão central do texto, e sim para se permitir dizer (de novo contra a ressalva explícita de Althusser) que a concepção althusseriana é não apenas “trans-histórica” ou ainda (se se quiser assim) “a-histórica”, mas sim “anti-histórica”[28] (o grifo é meu). Ora, ela é tão “anti-histórica” como a abertura daquele capítulo de O Capital em que Marx trata do processo de trabalho em geral e enumera os elementos invariantes que participam necessariamente de qualquer processo de trabalho, qualquer que seja a forma historicamente determinada de organização social da produção. É tão “anti-histórica” que se refere a determinadas condições gerais de qualquer história possível, e auxilia nossa inteligência da realidade histórica. Estes pontos já foram bem discutidos e esclarecidos desde a década passada: não insistirei mais. Pois preciso tratar brevemente de uma última objeção de Cardoso: ele nos sugere, para dar o golpe de misericórdia, “que a concepção althusseriana da ideologia implica em afirmar que haverá sempre alienação”.[29]
Talvez para surpresa de Cardoso, não protestarei contra o uso desta pequena palavra, que costuma arrastar consigo uma constelação de equívocos.[30] Mas é preciso esclarecer que não disponho ainda, nesta etapa de minha exposição, de elementos que me permitam lhe oferecer uma resposta satisfatória. É evidente que num certo sentido Althusser não admitiria à “eternidade da alienação”. Sou obrigado a lançar mão de um exemplo acessível para indicar que espécie de “alienação” pode ser vista como irredutível ou “eterna”, por ser inerente à própria estruturação da subjetividade humana. A “inconsciência” insuperável suposta pela concepção de Althusser é da mesma ordem daquele “desconhecimento” necessário do sujeito que fala com relação à estrutura que apoia e torna possível a emissão de seu discurso. O emissor da mensagem (assim como o receptor) não pode ter consciência, ao mesmo tempo em que a emite, do sistema de oposições fonéticas e semânticas que estrutura seu código, ou sua “língua”. Se o sujeito humano existe na linguagem e em sua necessária coexistência com o outro, a ausência e a ocultação da estrutura aparecem assim como essenciais à existência da subjetividade, e não há nada que deva nos horrorizar diante da afirmação de que a “alienação” não se dissipa jamais, neste sentido que a faz idêntica ao desconhecimento. Mas, ainda que o que acabei de dizer já nos encaminhe numa direção cujas possibilidades deverei explorar brevemente na sequência da exposição, sou obrigado a reconhecer que este exemplo do “inconsciente linguístico” não tem ainda uma relação muito clara com o objeto de nossa discussão.
Retomemos, portanto, ao nosso ponto. Vimos quais são as “críticas” de Cardoso a Althusser: acusações de omissão quanto à luta de classes, de hegelianismo totalitário e de forjar uma teoria “anti-histórica”. Nenhuma destas “críticas” resiste à análise. É chegado o momento de perguntar, portanto, pelas razões desta formidável confusão. Por que esta orgia de mau humor, esta ofensiva desleal contra a obra de um pensador que já mereceria um mínimo de respeito pela coerência e pela combatividade que ao longo dos anos tem demonstrado? Quando se examinam, em detalhe, os procedimentos da “crítica” de Cardoso (que, como se viu, consistem literalmente em despedaçar o autor criticado), verifica-se que eles revelam não só sua resistência em entender o conjunto do que Althusser nos diz, como também sua dificuldade (ou sua despreocupação) em enfrentar o problema real, que é o de situar sua obra dentro do contexto teórico e político em que ela surge e de se perguntar a que necessidade histórica ela responde. Assim, para enfatizar apenas um aspecto desta omissão, Cardoso não põe Althusser em confronto com os autores a quem ele explícita ou implicitamente se refere, alguns dos quais, básicos, Cardoso visivelmente desconhece, ainda que tenha bastante audácia e independência de espírito para chegar a discutir em público a filosofia althusseriana (talvez deva se ver nesta audácia uma secreta humildade: não deve preocupá-lo muito a possibilidade de se ver desmentido). Cardoso estabelece uma relação antagônica com o autor discutido, mas quando submetemos a um exame mais minucioso as divergências enfaticamente proclamadas, verificamos que os dois não diferem tanto quanto se poderia pensar a primeira vista, quando se trata de formular asserções positivas sobre o funcionamento da sociedade (afinal de contas, o próprio Cardoso reivindica sua filiação à mesma tradição de pensamento).[31] O resultado deste exame revela que as diferenças (esquematizando um pouco) talvez possam se reduzir simplesmente à competência incomparavelmente maior de Althusser, quando o trabalho teórico consiste em analisar e criticar textos alheios. Esta dupla constatação me empurra, assim, em direção a uma última pergunta: ao invés das divergências (que certamente existem), não serão antes as semelhanças entre os dois autores que suscitam esta ânsia de diferenciação a qualquer preço? O que reforça minha inclinação a dar uma resposta afirmativa é a evidência de que Cardoso, pouco materialista, vê em Althusser o sujeito, diria mesmo o rival, ao invés de encarar objetivamente o discurso althusseriano em sua realidade já histórica.
Repetirei mais ou menos tudo o que disse no parágrafo acima, em outros termos, para tornar mais transparente o fato de que é a teoria althusseriana da ideologia que nos permite compreender a postura de Cardoso diante de Althusser. Cardoso, deliberadamente ou não, ignora de onde vem o discurso althusseriano, qual é o campo estruturado teórico e político que produz este discurso ao mesmo tempo que é atravessado e modificado por ele em alguma medida, e numa direção necessária que se trata de determinar. Ele desconhece o lugar de Althusser, onde está situado este autor para poder dizer e para ser obrigado, num certo sentido, a dizer exatamente o que está dizendo. É assim que Cardoso vê em Althusser apenas o sujeito; chama-o por seu nome próprio e se defronta, conflitivamente, com a imagem de seu semelhante, o intelectual que também discute Marx. E o que Cardoso vê nesta imagem não lhe agrada: ele vê em Althusser o que já sabe, ou acredita saber. Projeta em Althusser a sombra de seus próprios fantasmas: Hegel, o “formalismo” da sociologia funcionalista, o “mecanicismo” etc. E em seguida os reconhece (o reconhecimento /desconhecimento, operação fundamental da ideologia). O resultado de todo este processo é que a relação dual que Cardoso estabelece com Althusser revela toda a carga de deformação imaginária e de agressividade características deste tipo de relação. Ora, creio que qualquer um perceberá esta evidência: a “alienação” de que Cardoso é vítima aqui nada tem de inelutável ou “eterna”. Um intelectual responsável e progressista pode (e deve) facilmente pôr sob controle suas antipatias pessoais quando escreve sobre teoria.
Não posso, portanto, na sequência de minha exposição, ceder à tentação de repetir com sinal invertido este equívoco, este desvio; trata-se, ao contrário, de retificá-lo e de procurar desfazer seus efeitos. Althusser tem nos mostrado que todas as filosofias são tomadas de posição com relação ao destino das ciências e, através delas, com relação ao destino da sociedade.[32] Assim, para compreender a filosofia althusseriana faz-se necessário não só ler Althusser (porque se o fazemos, honestamente, com o espírito aberto, já se revela quase tudo sobre a necessidade que o leva a afirmar precisamente o que afirma), como também procurar relacionar sua obra com o contexto da conjuntura teórica e política onde ela nasce, se desenvolve e adquire um sentido, produzindo seus efeitos. Nesta perspectiva, tentarei explicitar alguns aspectos da conjuntura teórica de Althusser, esclarecendo o significado de um gesto seu que contraria certas tendências bem arraigadas de sua própria tradição de pensamento (sua tomada de posição ao lado da psicanálise freudiana), para poder, mais adiante, sugerir alguma coisa a respeito de seu alcance teórico e de suas implicações políticas.
É preciso, portanto, começar por esclarecer, com a brevidade imposta pelo objetivo principal deste artigo, que significado tem a revolução teórica de Freud. E o farei novamente, como há anos atrás,[33] guiado pela obra de Jacques Lacan, que reconstitui em seu rigor e com toda a força de expressão o que Freud nos tem a dizer. Como escreve um autor da escola lacaniana, “a psicanálise é a descoberta de um lugar, o do inconsciente, e de uma dinâmica que se desenrola neste lugar, articulando-se inteiramente em torno do complexo de Édipo e mais especialmente de seu momento essencial, a castração (…) O Édipo não é o mito no qual se desnudam suas linhas de força, e ainda menos o drama que ele determina no vivido de cada um, mas uma estrutura segundo a qual se ordena o desejo, na medida em que ele constitui um efeito da relação do ser humano não com o social, mas com a linguagem”.[34]
Pode-se pôr em evidência o que significa esta citação, enigmática à primeira vista, se retraçamos o caminho que leva dos “fatos” com os quais a psicanálise se defronta em sua prática à concepção do inconsciente, tendo presente que é só à luz desta teoria que tais “fatos” adquirem seu significado propriamente psicanalítico. Esta “matéria-prima” do trabalho analítico é formada por um conjunto de fenômenos aparentemente heterogêneos (e alguns dos quais “insignificantes”) da existência humana individual: os sintomas neuróticos, os “atos falhos”, as “piadas”, enfim, todo o discurso do sujeito, com tudo o que ele encerra de reminiscências e também de omissões, de pausas e silêncios, sobre os quais se suspende, de modo já perceptível, sua angústia. Se este discurso incoerente se desdobra, prolongando-se, diante do outro não cúmplice de suas ilusões (o analista), com todas as dificuldades, resistências e interrupções da travessia, ele começa a se acercar pouco a pouco de um “núcleo duro” da problemática do sujeito, e conduz à reatualização dos momentos decisivos do drama através do qual “um pequeno animal gerado por um homem e uma mulher”,[35] debatendo-se com as exigências de seu organismo e de sua demanda de amor, é introduzido progressivamente (mas com rupturas drásticas) no universo humano onde seu desejo passa pela mediação da linguagem, ou se estrutura na linguagem.
A fase mais remota que precede esta passagem se mostra como uma situação ao mesmo tempo paradisíaca e terrível: a criança diante da imagem de seu semelhante (ou de um pedaço desta: o seio), modelo original de seu ego (que começa a se constituir através das primeiras identificações) e fonte de prazer ou frustração sem limites, enquanto a criança não consegue perceber na alternância entre ambos uma necessidade e uma ordem. Esboça-se já aí, então, o significado daquele desenlace que vai assegurar definitivamente ao sujeito seu ingresso no universo regido pela linguagem, pela comunicação entre os homens e pela proibição do incesto que garante a continuidade da troca de mulheres entre os grupos nucleares que formam a sociedade humana. É, deste modo, a renúncia ao objeto primeiro da satisfação (a “castração”) que constitui o sujeito como sujeito do desejo, e inscreve simultaneamente o desejo humano na dimensão inconsciente da repetição e do retorno, como busca do objeto perdido.
Pode-se ver, em consequência, que o que a psicanálise nos revela sobre o complexo de Édipo e a estruturação da subjetividade não tem sua validade restrita apenas à forma historicamente específica de organização da família (patriarcal e monogâmica) que predomina nas sociedades ocidentais. Cada sociedade delimita à sua maneira a extensão do grupo no interior do qual vigora a proibição do incesto, mas esta é universal. E, pela mesma razão, a função estrutural do pai, implícita na concepção freudiana, a de impor uma separação e uma perda como pré-requisitos para o acesso do sujeito ao mundo dos homens, pode ter como suporte, segundo as múltiplas variantes das estruturas de parentesco, outros personagens que não o pai tal como o conhecemos em nossa sociedade. Explica-se assim que Safouan possa dizer que a psicanálise freudiana tem por objeto a relação do sujeito humano “não com o social, mas com a linguagem”. E se Lacan diz que “o inconsciente está estruturado como uma linguagem”, esta proposição envolve um respeito literal ao sentido da descoberta de Freud, não só porque, na análise, é através do discurso que o sujeito tem acesso ao mistério de seu desejo, como porque este último é estruturado em sua origem pela imposição de uma Palavra, que marca a existência humana em seu início, formando-a no limite da Lei, e abrindo ao sujeito a possibilidade de emergir como sujeito do desejo e de sua própria fala.
Há um outro aspecto desta concepção que preciso sublinhar aqui, porque interessa, como se verá mais adiante, à nossa discussão. O papel “repressivo”, que às vezes se costuma atribuir ao pai, define um aspecto limitado e estritamente negativo de sua função. A imposição da Lei que conduz ao desfecho do drama edipiano, envolvendo um corte, o sacrifício do objeto, tem também seu reverso: a criança (digamos o menino, para evitar um problema difícil que não me é necessário tratar aqui) começa seu caminho em direção à vida adulta onde ocupará um dia o lugar de seu pai, o que Freud exprime ao falar da identificação através da qual esta figura é incorporada como “ideal do eu”. A “castração” libera a criança para um mundo maior, fazendo-a superar a relação fechada e absorvente com a mãe. Compreende- se assim a fórmula aparentemente sibilina de Lacan: “A castração quer dizer que é preciso que o gozo seja recusado, para que possa ser atingido na escala invertida da Lei do desejo”.[36] Por isto, ainda que uma “desordem” seja também possível no desejo paterno, “a verdadeira função do pai… é de unir (e não de opor) um desejo à Lei”.[37] O desastre, cujos efeitos são o objeto da terapia analítica, consiste precisamente na ausência da Lei e, antes de mais nada, sua ausência no desejo da mãe: se a criança é tudo para sua mãe, esta a sufoca; se não é nada, também a destrói. A ausência da Lei se manifesta nestas duas variantes patogênicas de uma mesma estrutura: um deficit ou um superavit do desejo materno.
Mas se se coloca, assim, o objeto da psicanálise neste mesmo nível de “onipresença” ou de “trans-historicidade” da linguagem, o que poderia então nos ensinar Freud sobre a sociedade? Para esboçar uma resposta, posso tomar como referência seu escrito de 1921 sobre a Psicologia das Massas. E, fazendo assim, estarei me reaproximando do objeto inicial de nossa discussão, pois Freud, em um determinado momento de sua exposição, desenvolve o tema dos mecanismos que mantêm a coesão de “aparelhos de Estado” como a Igreja e o Exército, aos quais ele dá o nome de “massas artificiais”:
“A Igreja e o Exército são massas artificiais, isto é, massas sobre as quais atua uma coerção exterior destinada a preservá-las da dissolução e a evitar modificações de sua estrutura. Em geral, não depende da vontade do indivíduo entrar ou não para formar parte delas, e, uma vez dentro, a separação se acha sujeita a determinadas condições, cujo descumprimento é rigorosamente castigado. A questão de saber por que estas associações precisam de semelhantes garantias não nos interessa no momento, e sim, em troca, a circunstância de que estas multidões, altamente organizadas e protegidas (na forma indicada) contra a desagregação, nos revelam determinadas particularidades, que em outras se mantêm ocultas ou dissimuladas.”[38]
Note-se que Freud elimina de seu campo de análise a coerção externa exercida sobre os participantes destas associações, e assinala que também está desinteressado em saber por que razões elas têm necessidade de se defender desta maneira contra as ameaças de desagregação ou de alterações de sua estrutura. Embora este desinteresse seja caracterizado como momentâneo, o fato de que Freud não chega a abordar novamente de modo explícito esta questão em seu texto nos permite entender que ele está fazendo referência aqui a uma demarcação precisa dos limites de seu objeto. A psicanálise não é a ciência da sociedade; ela não pode nos dizer nada sobre o exercício da violência em seu aspecto objetivo e seus mecanismos, e tampouco pode nos instruir sobre as tendências sociais que ameaçam a coesão daqueles aparelhos. Em suma: a psicanálise só pode elucidar até certo ponto os mecanismos gerais de funcionamento e de reprodução de tais aparelhos na medida em que eles funcionam não pela coação, mas pela “ideologia”.
Não cabe aqui uma discussão detalhada deste trabalho de Freud: limito-me a reconstruir sinteticamente o movimento de sua exposição, de um modo um pouco arbitrário, selecionando os elementos que me interessam, mas respeitando sua lógica. O ponto de partida de Freud é a obra de Gustave Le Bon sobre a psicologia das multidões. Ela lhe serve (juntamente com outros autores também citados) principalmente como um registro bastante rico e preciso dos fenômenos que caracterizam o comportamento espontâneo das massas não organizadas, e também por algumas indicações teóricas que Freud explora criticamente. Pouco a pouco, Freud começa a tomar distância com relação a Le Bon em várias direções: a) recusando a noção de um “instinto gregário” como força primária no psiquismo humano; b) pondo em destaque as relações afetivas dos integrantes da massa com a figura do chefe ou do caudilho, base da unidade do grupo (e assinalando a lacuna da reflexão de Le Bon a este respeito); c) retificando em parte a visão predominantemente depreciativa de Le Bon sobre o comportamento da multidão, com base no fato de que este apresenta também características positivas, pois dentro da massa o indivíduo pode superar seu egoísmo e suas preocupações individuais.”[39]
Este último movimento crítico conduz Freud a ver na estruturação das coletividades institucionalizadas e permanentes uma conquista da civilização; na “massa artificial”, superam-se algumas limitações da multidão espontânea: estabelece-se uma divisão do trabalho entre os indivíduos, criam-se condições para o trabalho intelectual e toda a atividade é desenvolvida em função dos valores ou objetivos permanentes da organização. Mas Freud irá conservar, em seu tratamento da “massa artificial”, um elemento teórico que fica estabelecido já na etapa prévia da discussão: a afirmação do caráter regressivo do comportamento dos indivíduos que formam a multidão. A falta de autonomia do indivíduo, a diminuição da atividade intelectual e da capacidade crítica, a afetividade desenfreada, o movimento no sentido de traduzir imediatamente os impulsos em ações, todos estes traços do comportamento dos indivíduos na multidão reproduzem momentaneamente características das fases mais primitivas da estruturação do psiquismo humano. E, consciente de que o real, para o homem, é estruturado pela Palavra, Freud nos diz literalmente que não há nada de surpreendente no fato de que, nos ímpetos incontroláveis da multidão, pareça ficar abolida a intervenção do “princípio de realidade”, pois os indivíduos substituem momentaneamente o seu “ideal do eu” pela figura “hipnótica” do caudilho, que fica assim investido da função de ser o suporte real, objetivado, da instância paterna: “Não é de estranhar que o eu considere como real uma percepção quando a instância psíquica encarregada da prova da realidade se pronuncia pela realidade da mesma”.[40]
Esta ideia fundamental será conservada na análise de Freud sobre os “aparelhos de Estado”; o vínculo subjetivo com a figura do chefe é um elemento básico para assegurar sua coesão e permanência, e a existência do indivíduo na organização está marcada por uma “ilusão” essencial: “Na Igreja e no Exército reina, quaisquer que sejam suas diferenças em outros aspectos, uma mesma ilusão: a ilusão da presença visível ou invisível de um chefe (Cristo, na Igreja Católica, e o general comandante, no Exército), que ama com igual amor a todos os membros da coletividade. Desta ilusão depende tudo, e sua dissipação traria consigo a desagregação da Igreja ou do Exército, na medida em que a coerção exterior o permitisse”.[41] E Freud nos sugere, em outra passagem, que esta função unificadora do chefe pode ser preenchida também por uma ideia abstrata;[42] quando isto ocorre, poderíamos dizer, parafraseando-o, que a coesão do grupo se sustenta então pela autoridade da pura Palavra, e é da fidelidade a este discurso, instituído como o fundamento do real para os integrantes do grupo, que os líderes eventuais retiram, por sua vez, a sua própria autoridade derivada. Podemos lembrar, agora, a fórmula através da qual Althusser caracteriza o funcionamento da ideologia: a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos para que eles se sujeitem (“livremente”) ao Sujeito.[43]
O objeto deste trabalho de Freud pode ser caracterizado, portanto, como sendo os mecanismos inconscientes da submissão “voluntária” à autoridade. E não seria despropositado afirmar que aí se encerra, hoje, o miolo crítico da psicanálise, de um ponto de vista social. Sabe-se que a tempestade de reações de repulsa que ela provocou de início, nos tempos de Freud, tinha como foco sua teoria da sexualidade, que é também um componente essencial da construção teórica freudiana. Mas o capitalismo avançado aprendeu a conviver de modo mais tranquilo com o sexo, a ponto de fazer com ele o que faz com tudo o que reconhece como importante na vida humana, transformando-o em mercadoria.[44] Assim, se a psicanálise tem hoje interesse para uma compreensão crítica do universo social, é pelo que ela tem a dizer não sobre a questão do sexo, mas sobre a questão da autoridade.
Mas o discurso psicanalítico não flutua misteriosamente na atmosfera da sociedade; é um discurso pronunciado e tem também, como diria Althusser, sua existência material em determinados aparelhos ideológicos. Ele existe nos meios de comunicação de massa, que veiculam, de forma mais ou menos vulgarizada, aquelas verdades que um dia foram o escândalo da sociedade vitoriana. Existe também na Universidade, onde, depois de uma árdua luta teórica sustentada por Freud e seus seguidores, a psicanálise viu ser reconhecida sua respeitabilidade e seu valor científico. Mas este discurso existe também, e emana, sob sua forma original e sempre renovada, da própria instituição psicanalítica, do conjunto de sociedades de psicoterapeutas que, em maior ou menor medida, se inspiram na descoberta freudiana e tomam como referência e guia, em sua prática, a autoridade científica de Freud. E esta existência social não pode deixar de ter repercussões sobre o desenvolvimento da teoria, pois, quaisquer que sejam suas potencialidades críticas, a psicanálise, tendo lutado para se fazer realidade na sociedade existente, obteve sua vitória, com o preço de ter estabelecido com esta sociedade um certo compromisso.[45]
As sociedades de psicanálise, em um de seus aspectos, são e funcionam de modo análogo a verdadeiras empresas capitalistas, como as escolas ou os hospitais privados, encarregando-se da formação profissional dos candidatos à carreira de psicanalista e prestando-lhes (no Brasil, a um preço bem elevado) os serviços psicoterapêuticos que são também parte essencial desta formação. E, na medida em que o são e funcionam assim, valem-se, em interesse próprio, de práticas bem conhecidas pelos economistas, limitando o incremento da oferta de serviços psicoterapêuticos para evitar a depreciação destes serviços no mercado. Por outro lado, o conjunto das sociedades psicanalíticas constitui também um movimento, ou uma “frente ampla” de “partidos” cujos membros se associam com o objetivo comum de trocar ideias e experiências, de desenvolver o conhecimento psicanalítico e de promover sua difusão na sociedade.[46] Basta mencionar este duplo aspecto do aparelho ideológico e/ou produtivo da psicanálise para dar uma primeira ideia de suas contradições. Não é de surpreender, à luz desta realidade básica, que o movimento psicanalítico tenha sido sempre o terreno de acirradas controvérsias, de conflitos de autoridade e de cisões irreversíveis.
Pode-se perguntar se se impõe como inevitável, para preservar a existência da psicanálise, o reforço ou a simples preservação de sua vertente mais conservadora, que tem, como sugeri, uma sólida base objetiva. Se a sobrevivência da psicanálise não está garantida (já que nada nos está garantido neste mundo), pode-se ver, não obstante, uma necessidade em sua presença na sociedade atual. O capitalismo produz, em massa, submissão à autoridade (para a grande maioria), mas tem também necessidade, para se reproduzir e se expandir, de utilizar o trabalho de homens formados no exercício livre de sua inteligência, capazes de fazer avançar a ciência e a técnica, e de formular soluções (mesmo contrariando em alguma medida os interesses estabelecidos) para os inumeráveis problemas sociais que, sob uma forma sempre nova, são produzidos pelo funcionamento “regular” do sistema. A contradição social da psicanálise se manifesta também no fato de que seus serviços só atingem, grosso modo, aquela minoria à qual a divisão “técnica” (isto é: social) do trabalho atribui, como privilégio exclusivo, as atividades de direção e a produção cultural, incluindo-se aí a produção artística e a dos conhecimentos teóricos e práticos.
Mas, em que pesem estas ambiguidades e contradições de sua existência material, a psicanálise, se a entendemos bem (e é sempre possível fazê-lo, embora isto exija esforço), é essencialmente libertadora, como o são todas as ciências. Por isto, os que trabalham em seu interior para desenvolver esta dimensão que ela comporta não deixam de invocar aquela Palavra “que não cessou de sustentá-la em seu próprio desvio”,[47] a autoridade científica de Freud, que tem sua legitimidade fundada nas potencialidades de uma prática liberadora do desejo é na persuasão de um discurso racional. Por isto que é em nome de Freud, cuja legitimidade é reconhecida em todos os recantos da instituição psicanalítica, que Jacques Lacan, com obstinação e audácia, tem desenvolvido sua crítica a todas as formas de corrupção da teoria e da prática freudianas, como por exemplo aquela, bem conhecida, que se expressa na concepção ideológica da psicoterapia como “adaptação” do sujeito à “realidade” (não questionada) de seu universo social.
Acredito já ter esclarecido suficientemente as razões pelas quais Althusser toma posição ao lado de Freud e Lacan; falta explicar o uso que, por sua conta e para seus propósitos, ele faz destes autores. Sabe-se que já numa primeira fase de seu trabalho teórico ele tomou emprestado da psicanálise o conceito de sobredeterminação, que mostrou sua utilidade na teoria das conjunturas.[48] Mas sua iniciativa mais importante, e de maiores consequências, neste sentido, está na elaboração do conceito e da prática da leitura sintomal.[49] Para entendê-la, vejamos antes qual a natureza do empreendimento althusseriano. Althusser se propôs a tarefa de demonstrar sistematicamente o que ele entrevia nos próprios textos, nos documentos desta história: que Marx foi o fundador de uma ciência nova, a ciência da História, e que só pode chegar a sê-lo através de um imenso trabalho de transformação crítica de tudo o quanto lhe era oferecido, como “matéria-prima” de pensamento, pela economia política inglesa, pela teoria política francesa e pela filosofia idealista alemã. O produto deste trabalho assumiu a forma de um discurso racional e metódico, de uma demonstração científica. Mas não se tratava de um produto acabado, e isto não apenas no sentido mais aparente de que Marx não teve tempo para concluir o seu plano: lendo-o atentamente, e levando em conta o conjunto do que ele havia escrito, podia-se verificar em determinados pontos quase imperceptíveis que seu rigor lógico falhava; havia contradições, lacunas, certas passagens da argumentação onde uma determinada questão, que se impunha à luz do que havia sido exposto em outro lugar, tinha sua ausência dissimulada por uma solução implícita cuja “evidência” era apenas aparente. Aqui, Althusser valeu-se de Freud e Lacan: decidiu encarar estas falhas localizadas do discurso como “sintomas” de uma “recaída” nas ideologias que Marx havia lutado para superar. E sentiu-se ainda mais autorizado a fazê-lo por ter verificado, nestes mesmos textos, que o mesmo método de leitura, impressionantemente análogo à “interpretação” (leitura) freudiana, tinha sido aplicado pelo próprio Marx à obra dos economistas ingleses, em seu trabalho crítico. Assim se pôs Althusser a encarar a própria obra de Marx como o produto de uma história, como o resultado de um gigantesco trabalho teórico, bem sucedido no essencial, mas inevitavelmente inacabado, pela necessária inconsciência de seu autor com relação a inúmeras possibilidades (necessárias) que se encontravam inscritas em seu próprio discurso. Eis aí o inusitado da postura althusseriana diante de Marx: uma afirmação categórica do caráter científico de sua obra, uma fidelidade inflexível ao autor estudado, e, ao mesmo tempo, uma explicitação sistemática de suas lacunas, uma indicação precisa e constante de tudo o quanto tinha sido deixado, mesmo involuntariamente, como tarefa para os herdeiros de seu pensamento e de sua prática. Por isto Althusser, que é visto por muitos como um dogmático, é, na verdade, o mais antidogmático dos filósofos marxistas: a leitura sintomal é o oposto da leitura religiosa de Marx, e, ao elaborar seu método, Althusser investia contra esta forma suprema de “culto da personalidade” que consiste em procurar na Sagrada Escritura do marxismo a revelação imediata da Verdade.[50]
Assim, se lemos Althusser com a simpatia mínima que é necessária para a compreensão, podemos ter uma medida do profundo equívoco de Cardoso quando, em um artigo anterior, faz uma alusão velada mas óbvia à leitura sintomal, deixando claro que a entende como a “moda” de “ler nas entrelinhas o que o autor nega expressamente nas linhas”.[51] Ele confunde aqui a teoria alheia com sua própria prática. Tampouco é verdadeira a sua afirmação de que Althusser se apresenta “como um mero comentador de Marx”.[52] Althusser é um leitor de Marx: não é um comentador nem um intérprete. Interpretar significa (desprezo aqui algumas sutilezas) projetar sobre um texto alheio o conjunto de nossas convicções sobre este texto, ou sobre o objeto a que este texto se refere ou parece se referir. O comentário é ainda menos do que a interpretação, por ser menos sistemático: é quase como a associação de ideias, é mais ou menos o que fazemos quando, numa conversação informal, respondemos ao nosso interlocutor com qualquer coisa que nos passe pela cabeça. Deixo ao juízo do leitor decidir se Cardoso é um “mero comentador” ou um intérprete de Althusser. Qualquer que seja a opinião que se forme a este respeito, vejo aqui uma confirmação adicional para minha tese sobre a relação imaginária do sujeito Fernando Henrique Cardoso com a imagem do sujeito Louis Althusser.
Vejamos agora alguma coisa sobre o contexto político da obra de Althusser: os problemas com os quais se defronta, na atualidade, a esquerda europeia. Não se trata, aqui, de tentar fazer uma análise de conjuntura, e sim de evocar alguns aspectos importantes de uma situação histórica. Sabe-se que sempre houve divisões dentro da esquerda. Mas esta também tem seus pais, ou seus ancestrais, e a passagem do tempo só fez multiplicar o número daqueles grandes teóricos e dirigentes políticos, cuja autoridade é invocada nos debates e nas lutas. E, dado o primado que a tradição do pensamento de esquerda atribui à prática política, aqueles que obtiveram sucessos práticos neste terreno tiveram sempre seu prestígio reforçado por este fato. Sob este aspecto, a história recente produziu uma situação nova. Começa a se impor como uma evidência o fato de que alguns grandes experimentos sociais que em alguma medida se inspiravam nas fontes primeiras desta tradição teórica e prática ficaram, em sua realidade objetiva, bastante aquém de determinadas expectativas ideais que, justificadamente ou não, haviam suscitado. Poder-se-ia falar da China, mas da Suécia também. Daí a necessidade de que muita coisa seja repensada. Porque a morte dos pais não resolve por si só nenhum problema: eles continuam a viver pela autoridade de sua palavra. E tampouco a teoria em seu estado atual, como o conjunto heterogêneo do que eles deixaram dito, pode servir de base por si só para arbitrar as divergências. Pois esta teoria, se ela é necessariamente inacabada, contraditória e instável em sua própria solidez, engendra ela própria, pela multiplicidade das possibilidades que encerra, o conjunto das posições e de suas diferenças. “A lógica do saber tem uma potência própria que produz uma situação paternal, isto é, um centro encarnado como metáfora do centro teórico …, e que é uma garantia de autoridade (e autorização) através da hierarquização do sistema que recorta e produz uma realidade. É por isto que o pai pode ser desafiado, iconoclasticamente, e ainda assim a ideia instituída ser mantida por seu centro articulador, que tem por capacidade impor vários pais (e suas divergências).”[53] Daí a importância que assume o trabalho no campo da teoria. O que há de fecundo nas contradições deve ser posto a serviço de seu desenvolvimento. Porque a teoria é insuprimível (os homens não vivem sem palavras), e porque ela é também necessária: qualquer política viável precisa, para se impor, revestir-se da autoridade legítima de um conhecimento, e precisa também pensar-se a si mesma, para se dotar da flexibilidade necessária a um ajustamento rápido diante de conjunturas novas. É neste contexto que atua a filosofia althusseriana, é nele que Althusser, filósofo, emite sua mensagem: se nós queremos (porque devemos) seguir o caminho desta imensa aventura, que é a transformação democrática da sociedade, no sentido da superação de todas as opressões, nós podemos (e devemos) tomar como guia e referência a ciência de Marx, porque ela ilumina este caminho, mas não podemos (não devemos) esquecer que é a própria lógica deste discurso já antigo, no seu “plano” não realizado, nos seus silêncios inadvertidos, que aponta para tudo o que resta a fazer para a elucidação dos mecanismos da sociedade. É isto que ele nos diz, com suas palavras:
“Os esforços repetidos de Marx para romper os limites objetivos do Teórico existente, para forjar o que lhe permitiria pensar a questão que sua descoberta científica colocava para sua filosofia, seus fracassos, e mesmo suas recaídas, fazem parte do drama teórico que ele viveu, numa solidão absoluta, bem antes de nós, que começamos somente a suspeitar… que sua questão é a nossa, e por muito tempo, e que ela comanda todo nosso futuro. Sozinho, Marx procurou à sua volta aliados e sustentáculos: quem poderia ser severo com ele por ter-se apoiado em Hegel? Por nossa própria conta, devemos a Marx não estarmos sozinhos: nossa solidão só se susteve por nossa ignorância do que ele havia dito. É ela que é preciso acusar, em nós, e em todos aqueles que pensam tê-lo superado, e só falo aqui dos melhores – quando não estão senão no limiar da terra que ele nos descobriu e abriu. Nós lhe devemos até o poder ver nele suas falhas, suas lacunas, suas omissões: elas contribuem para sua grandeza, porque nunca fazemos, retomando-as, senão retomar a partir de seus inícios um discurso interrompido pela morte. Sabe-se como termina o terceiro Livro d’o Capital. Um título: As Classes Sociais. Vinte linhas, e depois o silêncio.”[54]
E, num apêndice ao texto que conclui com este parágrafo, Althusser acrescenta:
“Se é verdade, com a condição de não dar a esta fórmula uma ressonância historicista, que a humanidade só se propõe tarefas que ela tem condições de cumprir, ainda é preciso que ela toma uma exata consciência da relação existente entre estas tarefas e suas capacidades, que ela aceite passar pelo conhecimento destes termos e de sua relação, logo, pela colocação em questão destas tarefas e destas capacidades, para definir os meios adequados para produzir e dominar seu futuro. Sem o que, e até na “transparência” de suas novas relações econômicas, ela se arriscaria, como já o experimentou nos silêncios do terror – e como pode fazê-lo por uma segunda vez nos anseios do humanismo, ela se arriscaria a entrar, com a consciência pura, em um futuro ainda carregado de perigos e de sombras.”[55]
Assim vamos completando nosso quadro. Vimos o porquê da tomada de posição ao lado da psicanálise e a utilização que dela faz Althusser em seu próprio trabalho, a leitura de Marx. Mas toda esta discussão seria desnecessária se se tratasse apenas de salientar a importância da descoberta de Freud para todos os que compartilham do projeto de uma sociedade de homens e mulheres livres no sentido pleno da palavra. Pois Cardoso estaria inteiramente de acordo quanto a este ponto, como deixa transparecer em uma nota de rodapé:
“Tratar-se-ia (para Althusser – E.P. –) de complementar a análise por uma teoria do sujeito e da representação. A ideologia seria a necessária dimensão do imaginário na relação entre sujeitos e destes com os objetos. Neste caso, abrir-se-ia um caminho para a luta contra a alienação, mas no nível de uma práxis do sujeito individual. Não nego a importância do tema e mesmo sua necessidade para uma teoria da política contemporânea. Mas neste caso, porque não seguir Marcuse e a Escola de Frankfurt na proposição de uma teoria crítica e radicalmente liberadora ao nível da práxis interpessoal, pela crítica à técnica, à sociedade de massas e ao consumo, ao nível dos efeitos da civilização capitalista industrial, ao invés de fazer como Althusser que se agarra à ‘luta de classes’ como se esta fosse um escapulário que garante a Salvação e diz o ‘Creio em Deus Padre’ na hora da morte, depois de haver pecado a vida toda?”[56]
A parte final desta nota não merece nenhum “comentário”; contento-me em deixá-la aqui transcrita, exposta por uma segunda vez ao julgamento do leitor. Mas, deixando isto de lado, existe aqui uma questão que me parece legítima: por que Althusser e não Marcuse e os pensadores da Escola de Frankfurt? Farei o que está a meu alcance para dar uma resposta parcial a esta pergunta. E esta resposta será parcial em vários sentidos: deixarei de lado a Escola de Frankfurt e, para não prolongar demasiadamente esta discussão, fixar-me-ei em Marcuse, que é um autor mais conhecido entre nós, esboçando algumas linhas gerais que poderiam ser desenvolvidas em uma leitura crítica de um de seus livros, Eros e Civilização, onde ele nos apresenta de forma sistemática sua própria interpretação da psicanálise.[57]
Não se deve, de modo algum, menosprezar Marcuse: ele foi o ideólogo da juventude norte-americana em revolta contra a guerra e contra a planificação capitalista da vida quotidiana, na qual ele viu a revolta “instintiva” da Vida contra a Morte. Mas, justamente por ter sido este ideólogo, ele não nos ensina muita coisa além daquilo que esta mesma juventude já percebia “instintivamente”, em sua revolta, sobre o funcionamento de nossa sociedade. Todo o seu discurso está estruturado sobre a base de um conjunto de oposições: liberação versus repressão, jogo e fantasia versus trabalho compulsório, liberdade versus necessidade. Os termos destas oposições (que se reduzem todas a uma única oposição básica) são realidades imediatamente presentes na vivência do indivíduo rebelado contra um ambiente social opressivo. Não nos deparamos nunca com um conceito: o conjunto da construção ideológica não faz mais do que reduplicar ad infinitum um dilaceramento, cuja significação já é visível no próprio interior da experiência imediata da revolta. E, não obstante, estamos diante de uma construção intelectual elaborada. É interessante, portanto, fazer uma primeira listagem esquemática das fontes de onde Marcuse retira os elementos principais de sua montagem:
1.º) Marx (com certa predominância do Jovem Marx sobre o Marx do período de maturidade) – O desenvolvimento das forças produtivas cria as condições históricas fundamentais para a edificação de uma sociedade onde a produção não será mais uma finalidade em si mesma, mas estará subordinada à satisfação das necessidades sociais, onde o tempo de trabalho será uma fração mínima do tempo total da vida dos indivíduos, onde portanto a “alienação” do trabalho será suplantada pelo “reino da liberdade”, pelo desenvolvimento das potencialidades humanas nos períodos de lazer, fora das atividades produtivas.
2.º) Freud – O progresso da civilização é acompanhado pela repressão dos impulsos sexuais; a energia da libido deve ser desviada sob diversas formas de seus objetos e finalidades imediatas para ser aplicada à luta contra a natureza, ao trabalho produtivo e à produção cultural. Os impulsos destrutivos (“pulsão de morte”) são submetidos a um processo análogo de contenção e de canalização em outras direções.
3.º) Heidegger – A época contemporânea é caracterizada pelo poderio avassalador da Técnica, desdobramento da ciência moderna, que por sua vez tem suas raízes na Metafísica ocidental. O domínio da Técnica está essencialmente relacionado a uma atitude exploradora ou “requisitadora” do homem contemporâneo diante da Natureza, que é encarada como um mero “reservatório de forças, suscetível de cálculo”.[58]
Marcuse utiliza o elemento marxista de sua construção para produzir um certo efeito crítico sobre o elemento freudiano; põe em evidência o que Freud não pode perceber sobre a dinâmica histórica da sociedade, dados os limites de sua própria construção teórica: não há nada de eterno ou de inelutável na repressão; o “reino da liberdade” é possível. Mas seu compromisso filosófico humanista deixa também marcas em sua leitura de Freud, fazendo-o suprimir ou minimizar os paradoxos do desejo revelados pela psicanálise, o que o conduz, em seus últimos capítulos, a desenhar uma imagem mais ou menos idealizada da sociedade futura. Por outro lado, há no discurso de Marcuse uma certa tensão entre o componente marxista e o componente heideggeriano: ao mesmo tempo em que reconhece (neste livro) a importância histórica do desenvolvimento científico e tecnológico como condição para a libertação humana, é atraído na direção de uma visão crítica da Razão ocidental; a filosofia pós-platônica é vista por ele como o desenvolvimento de uma lógica da dominação. Este último componente antirracionalista, enquanto tese, tem seu peso relativizado pelos outros aspectos de sua concepção, mas talvez deva ser visto como o mais decisivo na própria estruturação de seu discurso. Desenvolvendo uma apreciação crítica do conjunto de sua obra, no artigo De Hegel a Marcuse, Lucio Coletti mostra como ela se situa como um prolongamento da tradição anti-intelectualista e anticientífica do pensamento contemporâneo que tem sua raiz e seu ponto de partida sistemático na filosofia hegeliana.[59] Submetida ao parti pris de um pensamento filosófico que tem como pedra fundamental a hostilidade à ciência, a obra de Marcuse tem aí também a origem e a determinação de seus próprios limites; trata-se de um discurso ideológico que pode nos inspirar, mas que não nos instrui nem nos orienta. Ele dificilmente pode ser visto, portanto, como uma alternativa a Althusser, se se trata de erguer uma ponte que seja de fato fecunda entre a ciência da sociedade e a psicanálise.
Enfim, são todas estas razões aqui expostas que me conduzem levantar objeções aos que trabalham pelo “esquecimento” dos que vieram antes de nós e aplanaram nosso caminho. Não vejo má-fé neste trabalho; vejo, antes, a marca de certos hábitos negativos de pensamento, de um certo provincianismo que leva à desinformação sobre o que se produz fora de nosso círculo, ou fora da corrente intelectual de nossa predileção. O que quer que se pense a respeito, no entanto, Althusser tem razão ao nos convocar para um reencontro com aquelas obras nas quais podemos ver em processo a fundação das ciências humanas, ao nos chamar para um reexame das obras daqueles homens que abriram para o mundo humano a possibilidade de seu autoconhecimento científico. Mas ele tem também razão ao nos advertir sobre o modo pelo qual se deve efetuar este “retorno”, para que não se converta numa nova (velha) idolatria. Pois é possível que estejamos, nestes casos, diante de uma paternidade liberadora, de uma Lei legítima. Para por isto a prova, é preciso ler Marx e Freud aprendendo, com eles, a arte e a ciência da leitura.
* Eginardo Pires foi Economista, com curso de mestrado na Universidade de Campinas. Formado em Filosofia, pela UFRJ. Autor dos ensaios “O Inconsciente em Sartre e Politzer”, “Os ‘Ecrits’ de Jacques Lacan”, “Sobre Heidegger” e “A Teoria da Produção dos Conhecimentos”, publicados pela revista Tempo Brasileiro e pela Editora Vozes.
Notas:
[1] ESCOBAR, Carlos Henrique. Quem tem medo de Louis Althusser? In: Achegas.net, n.º 44, 2011; e MOTTA, Luiz Eduardo. Sobre ‘Quem tem medo de Louis Althusser?’ de Carlos Henrique Escobar. In: Achegas.net, n.º 44, 2011
[2] Cardoso, Fernando Henrique. Estado Capitalista e Marxismo. In: Estudos Cebrap, n.º 21, jul-ago-set. de 1977. [disponível em: http://bibliotecavirtual.cebrap.org.br/arquivos/estado_capitalista_e_marxismo_a.pdf].
[3] Ibid. p. 24.
[4] Althusser, Louis. Idéologie et Appareils Idéologiques d’État, (publicado em La Pensée, n.º 151, junho de 1970). In: Positions, Paris, Editions Socialies, 1976, p. 80. [Diversas edições em língua portuguesa, dentre as quais destacam-se: ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos ideológicos de Estado (Notas para uma pesquisa). In: ALTHUSSER, Louis. Sobre a reprodução. 2. ed. Petrópolis: Vozes, p. 253-294, 2008; e ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1983.]
[5] Cardoso, F. H. op. cit., p. 24.
[6] Ibid. p. 13-4.
[7] Ibid. p. 25.
[8] Ibid. p. 26.
[9] Ibid. p. 27.
[10] Ibid. p. 28.
[11] Babilar, Étienne. Sur les Concepts Fondamentaux du Matérialisme Historique. In: Lire le Capital, vol. II, Paris, Maspero, edição de 1968 em tamanho reduzido [edição brasileira: BABILAR, Étienne. Sobre os Conceitos Fundamentais do Materialismo Histórico. In: ALTHUSSER, Louis et al. Ler o Capital. Vol. 2. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.]
[12] Cardoso, F. H., op. cit. p. 20.
[13] Ibid. p. 17.
[14] Ibid. p. 20-3.
[15] Cardoso, F. H., Althusserianismo ou Marxismo? A Propósito do Conceito de Classes em Poulantzas: Comentários. In: Estudos Cebrap n.º 3, janeiro de 1973 [disponível em: http://bibliotecavirtual.cebrap.org.br/arquivos/althusserianismo_ou_marxismo_c.pdf]. A crítica filosófica de Cardoso, neste artigo, gira em torno de sua recusa a aceitar a distinção althusseriana (marxista) entre objeto real e objeto de conhecimento, contra a qual é invocada a categoria de “abstração real”. É verdade, como Marx mostrou, que a economia política não poderia ter-se desenvolvido como ciência senão em um certo estágio de desenvolvimento da produção capitalista (seu período de gestação). Marx desenvolve a “crítica da economia política”, isolando e transformando os elementos científicos presentes na própria economia política, e esta, por sua vez, retira alguns de seus conceitos básicos (fazendo-os funcionar teoricamente de modo distinto) da própria experiência dos agentes capitalistas em sua luta competitiva. Assim, tomando um exemplo, Marx define “preço” e “custo de produção”, num certo estágio de sua análise, mais ou menos nos mesmos termos em que um empresário os definiria. E isto é inevitável: justamente porque Marx quer explicar as aparências da concorrência, estas aparências entram, de algum modo, em seu discurso. Mas isto não significa que o conjunto deste discurso fique submetido a estas aparências, nem que o conceito de seu objeto (desdobrado e exposto através deste discurso) reproduza as ilusões do sujeito capitalista em seu mundo “real”. Recusar a distinção entre o objeto real e o objeto pensado (ou o objeto de conhecimento) é recusar a distinção entre ideologia e ciência, é recusar também a existência e a necessidade de uma atividade específica, o trabalho teórico, que tem como resultado a crítica das aparências ideológicas e o conhecimento científico.
[16] Ver Cardoso, F. H., Teoria da Dependência ou Análises Concretas de Situações de Dependência? In: Estudos Cebrap n.º 1, 1979 [disponível em: http://bibliotecavirtual.cebrap.org.br/arquivos/teoria_da_dependencia_ou_analises_concretas_b.pdf]. Bastaria a Cardoso ter mostrado, como o fez, que a crítica de Weffort atingia a teoria da dependência de Gunder Frank, e não a sua. A negação do caráter teórico da teoria da dependência elaborada por ele e por Faletto é apenas sua maneira peculiar de indicar (no que tem razão) a validade científica de sua teoria e sua aptidão para orientar a análise das situações particulares de dependência na América Latina. É a maneira como ele consegue dizer isto no quadro de sua filosofia espontânea de cientista; sobre o conceito de filosofia espontânea de cientista, ver Althusser, Louis, Philosophie et Philosophie Spontanée des Savants. Paris, Maspero, 1974, p. 98ss [edição em língua portuguesa: ALTHUSSER, Louis. Filosofia e filosofia espontânea dos cientistas. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1976].
[17] Cardoso, F. H., Estado Capitalista e Marxismo, op. cit., p. 15.
[18] Seria interessante ler, a propósito, para desfazer dúvidas que estas insinuações podem despertar, o prefácio do Pour Marx onde Althusser nos dá o testemunho de sua geração e explica de que maneira, nos velhos tempos, ele procurava pagar a sua Dívida de intelectual pequeno burguês (Pour Marx, Paris, Maspero, 1967, p. 17 [ed. brasileira: ALTHUSSER, Louis. Por Marx. Campinas: Ed. Unicamp, 2015]). Mais tarde, as coisas ficaram mais claras. Por outro lado, se Cardoso relesse (?) a nota de rodapé do início do Lire le Capital em que Althusser agradece ao psicanalista Jacques Lacan, leitor de Freud, e àqueles filósofos franceses que foram, antes dele “mestres na leitura das obras do saber”, teria um belo exemplo de como um intelectual pode pagar (reconhecendo-as) as suas dívidas (ver Du “Capital” à la Philosophie de Marx. In: Lire le Capital, vol. I, op. cit., p. 13 [edição brasileira: ALTHUSSER et al. Ler o Capital. Vol. 1. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979]).
[19] Althusser, Louis, Idéologie et Appareils Idéologiques d’État, op. cit., p. 86.
[20] Ibid. p. 89. Poulantzas, desenvolvendo a concepção de Althusser, mostraria mais tarde que também o Aparelho coercitivo do Estado é atravessado e dividido pelas contradições da sociedade. Mas Cardoso dá igualmente seu aplauso a outra iniciativa de Poulantzas: a de retirar os “partidos revolucionários” do rol dos aparelhos ideológicos (Cardoso, F. H. op. cit., p. 21-2). A consequência lógica deste procedimento é muito interessante: tais partidos podem ser vistos, para usar uma expressão do gosto de Cardoso, como entelequias: entidades dotadas de uma dinâmica própria e absolutamente impermeáveis (“por definição”) à influência da ideologia dominante. Diante desta “teoria”, é surpreendente o fato de que tais organizações sejam também o palco (e o objetivo) de ásperas lutas políticas e ideológicas.
[21] Althusser, Louis, op. cit. p. 97.
[22] Cardoso, F. H., op. cit. p. 16.
[23] Althusser, L., op. cit. p. 88.
[24] Cardoso, F. H. op. cit. p. 16.
[25] Althusser, L. op. cit. p. 122.
[26] O “jogo” das contradições, assim como o aspecto “desestruturante” da luta de classes, foram abordados por Althusser no artigo Sur la Dialectique Matérialiste, publicado em La Pensée, agosto de 1963 (ver Pour Marx, op. cit.).
[27] Althusser, Louis, Idéologie et Appareils Idéologiques d’État, op. cit., pp. 100-1.
[28] Cardoso, F. H. op. cit. p. 16.
[29] Ibid. p. 17.
[30] A propósito: Cardoso, em seu survey, mostra-se partidário da costura epistemológica, ignorando tranquilamente a distinção, solidamente estabelecida pela corrente althusseriana, entre o Jovem Marx e o Marx do período de maturidade. Mas este parti pris não tem outra consequência mais grave na sequência de sua exposição a não ser a confusão gerada pelo uso da expressão (ou da categoria?) hegeliana de “sociedade civil”, também utilizada pelo Jovem Marx. Em seus Elementos de Autocrítica, Althusser reafirma a tese do corte epistemológico, mas acrescenta um apêndice a seu texto no qual, reelaborando o problema da passagem do Jovem Marx (ideológico) ao Marx maduro (científico), ele reconhece à sua maneira o papel da “paixão” no processo do conhecimento, ver Althusser, Louis, Sur l’évolution du Jeune Marx. In: Elements d’Autocritique. Paris, Hachette, 1974, p. 123ss [edição brasileira: ALTHUSSER, Louis. Elementos de autocrítica. In: ALTHUSSER, Louis. Posições 1. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978].
[31] Cardoso, E. H., op. cit., p. 29.
[32] Althusser, Louis. Philosophie et Philosophie Spontanée des Savants (1967). Paris, Maspero, 1974, pp. 53-117 e Lenine e a Filosofia (1968). Lisboa, Editorial Estampa, 1974, pp. 59-68 [edição brasileira: ALTHUSSER, Louis. Lênin e a filosofia. São Paulo: Edições Mandacaru, 1989].
[33] Pires, Eginardo, Os “Écrits” de Jacques Lacan. In: Tempo Brasileiro, n.º 21/22 (número especial sobre psicanálise), 1969.
[34] Safouan, Moustafa, De la Structure en Psychanalyse, Contribution à une Théorie du Manque. In: Wahl, François (ed), Qu’est-ce que le Structuralisme? Paris, Éditions de Seuil, 1968, p. 241 [edição brasileira: SAFOUAN, Moustafa. Estruturalismo e Psicanálise. São Paulo: Editora Cultrix, 1970].
[35] Althusser, Louis, Freud et Lacan. In: La Nouvelle Critique, n.º 161-162, dez-jan de 1964-65. In: Positions, Paris, Ed. Sociales, 1976, p. 21 [edição brasileira: ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan. In: ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan. Marx e Freud – Introdução crítico-histórica. 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985].
[36] Lacan, Jacques, Écrits. Paris, Éditions du Seuil, p. 827. [ed. brasileira: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998]
[37] Ibid. p. 824.
[38] Freud, Sigmund, Psicologia de las Masas. In: Obras Completas. Vol. 1, Madrid, Editorial Biblioteca Nueva, 1948, p. 1131 [diversas edições brasileiras, dentre as quais: SIGMUND, Freud. Psicologia das massas e análise do Eu e outros textos. São Paulo: Cia. das Letras, 2011].
[39] Freud se afasta da visão depreciativa sobre a massa também em outro sentido: “No que se refere à produção intelectual, está… demonstrado que as grandes criações do pensamento, as descobertas capitais e as soluções decisivas de grandes problemas não são possíveis senão para o indivíduo isolado que trabalha na solidão. Não obstante, também a alma coletiva é capaz de dar vida a criações espirituais de uma ordem genial, como o provam, em primeiro lugar, o idioma, e depois os cantos populares, o folclore etc. Ademais, ter-se-ia que precisar quanto devem o pensador e o poeta aos estímulos da massa e se são realmente algo mais do que os aperfeiçoadores de um trabalho anímico no qual os demais colaboraram simultaneamente”. Freud, Sigmund, op. cit. p. 1126.
[40] Ibid. p. 1142.
[41] Ibid. p. 1131.
[42] Ibid. pp. 1134-5.
[43] Idéologie et Appareils…, op. cit., pp. 110-22. Os filósofos que desenvolveram a problemática ideológica da “teoria do conhecimento” a partir de Descartes, defrontando-se com o “problema das garantias”, fizeram também, à sua maneira, o inventário das fontes de ilusão que podem ser identificadas na experiência do sujeito, mas, desconhecendo o fato de que o “real”, para o sujeito humano, é estruturado pela linguagem, mostraram sempre uma predileção especial por aqueles “enganos” dos quais o sujeito pode ser vítima em sua própria experiência pessoal e isolada, como o sonho, a alucinação e a velha “ilusão dos sentidos”. Mas só excepcionalmente encararam o problema da mentira, cujo exame, mesmo no quadro limitado e ideológico do “problema das garantias”, poderia tê-los conduzido a algumas conclusões interessantes. Já tive a oportunidade, em outra ocasião, de discutir brevemente um artigo de um destes filósofos (O. Neurath), onde ele se coloca esta pergunta: como um cientista pode ter certeza de que seu colega não mente ao descrever suas experiências? Mas ele se põe essa questão de passagem, sem levá-la muito a sério. Ver Pires, Eginardo, A Teoria da Produção dos Conhecimentos. In: Epistemologia e Teoria da Ciência. Petrópolis. Edit. Vozes, (livro contendo artigos de diversos autores) 1971, pp. 171-2.
[44] Aqui, cabe deixar explícita uma ressalva: ao falar de capitalismo avançado, reconheço que, dado nosso atraso cultural, a questão da libertação sexual é ainda uma questão importante na sociedade brasileira.
[45] Ver Mannoni, O., Freud: el Descrubrimiento del Inconsciente. B. Aires, Editorial Galerna, 1970.
[46] Utilizo aqui livremente, e com outra terminologia, distinções trabalhadas por Chaim Samuel Katz em seu livro Psicanálise e Instituição (Rio de Janeiro, Edit. Documentário, 1977, pp. 69-80). Embora seja obrigado a me contrapor à sua ideologia antiteórica, preciso sublinhar a existência e a importância deste livro. O leitor que atravessar o primeiro capítulo filosófico (denso, mas optativo, segundo o autor) encontrará na sequência da exposição uma análise rica e lúcida sobre a instituição psicanalítica, as contradições que sempre a dividiram e ainda a dividem, com ênfase especial sobre o modo como estes problemas se apresentam hoje para a instituição psicanalítica brasileira e para aqueles a quem ela tenta excluir. As lacunas do livro sobre as razões teóricas e “políticas” das decisões tomadas por Freud para preservar uma determinada orientação do movimento psicanalítico podem ser preenchidas, para o leitor interessado, através da leitura da obra de O. Mannoni, citada acima.
[47] Lacan, Jacques, Écrits, op. cit. p. 403.
[48] Ver Althusser, Louis, Contradiction et Surdetermination. Artigo publicado em La Pensée em dezembro de 1962. In: Pour Marx, op. cit.
[49] Sobre o conceito de leitura sintomal, ver Althusser, L., Du “Capital” à la Philosophie de Marx. In: Lire le Capital, vol. 1, op. cit., pp. 12-37.
[50] Alberto Coelho de Souza (que orientou no estudo de Althusser toda uma geração de jovens intelectuais, no Rio de Janeiro), já escrevia, há anos atrás: “… o teórico marxista é, antes de tudo, responsável pela coerência do marxismo. Isto não conduz no dogmatismo, antes contribui para evitá-lo” (Ciência e Ideologia em Althusser. In: Tempo Brasileiro, n.º 23/24, Rio de Janeiro, 1970, p. 74).
[51] Althusserianismo ou Marxismo? op. cit., p. 67.
[52] Estado Capitalista e Marxismo, op. cit., p. 15.
[53] Katz, Chaim Samuel, op, cit., p. 72.
[54] L’Objet du Capital, In: Lire le Capital, vol. II, op. cit., p. 71.
[55] Ibid. p. 78.
[56] Cardoso, F. H., op. cit., p. 30.
[57] Ver Marcuse, Herbert, Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1968.
[58] No pensamento contemporâneo: é em Martin Heidegger que encontramos a formulação filosófica mais elaborada e a principal matriz intelectual do luddismo teórico que ataca as máquinas ao invés de criticar as relações sociais que impõem uma determinada utilização destas máquinas. Mas Heidegger não é ingênuo a ponto de “criticar” a Técnica; vê nela também uma necessidade. A Técnica é filha da moderna ciência da natureza, que por sua vez é o resultado do desenvolvimento da Metafísica no Ocidente. Mas o domínio da Técnica constitui, para ele, à forma contemporânea da “ocultação do Ser.” Segundo ele, “a ciência não pensa”. Heidegger, embora sendo um leitor e um crítico do Idealismo alemão, é um filósofo idealista no sentido específico em que idealismo significa, precisamente, rejeição da ciência. (Pires, Eginardo, Sobre Heidegger. In: Tempo Brasileiro, n.º 23/24, 1970, pp. 65-7).
[59] Coletti, Lucio, From Rousseau to Lenin, London, NLB, 1972, pp. 128-40. Coletti reconhece um aspecto essencial da filosofia marxista que é a defesa da ciência. Mas não chega a nos oferecer uma resposta satisfatória sobre o que distingue a problemática científica de Marx da problemático ideológica hegeliana. Esta limitação de seu pensamento não deixa de ter relação com sua própria postura crítica diante de Althusser. Em uma entrevista a Perry Anderson, encontramos um detalhe revelador sobre sua posição antialthusseriana. Diz Coletti que, segundo Althusser, Marx “retomou diretamente uma noção central de Hegel — a ideia de um ‘processo sem sujeito’. De um ponto de vista filosófico, esta afirmação é evidentemente absurda: só pode fazê-la alguém que leu Hegel há muito tempo e só guardou dele uma lembrança muito vaga. Pois o processo hegeliano tem certamente um sujeito. Este sujeito não é humano, é o Logos.” (Politique et Philosophie, Éditions Galilée, 1975, p. 35). Ora, quem lê Althusser sabe que para ele o conceito de um processo sem sujeito(s) nem fim(ns) é especificamente marxista, é o que distingue o processo histórico segundo Marx da concepção hegeliana da História como história de um Sujeito. Vê-se, assim, que mesmo o mais respeitado filósofo marxista italiano pode ser acometido desta espécie de repulsa violenta diante do pensamento de Althusser, que chega ao ponto de impedir os críticos de lerem e compreenderem o autor que criticam. Mas esta repulsa está na razão direta da novidade e da importância da obra de Althusser. Sabe-se que estas resistências passionais diante de uma obra têm, guardadas as devidas proporções, muitos precedentes na história do conhecimento.