Por Heribaldo Maia
“Liberdade,
Liberdade, amor.
O seu nome é pouco”
Cordel do fogo encantado
“Eu sou a luta.
Eu não sou um dos que estão conceituados em luta,
mas sou ambos os lutadores
e a própria luta”
Hegel
Por que Hegel? O que Hegel, 250 anos depois, pode nos deixar de lição? O obscuro pensador alemão, multifacetado entre diversas taxações – idealista, romântico, reacionário, totalitário, etc., etc. –, que ficou marcado pela escrita que, nos dizeres de Marx, mais lembram um emaranhado de frases, que só de pensarmos em ler seus textos um calafrio nos toma. Então, por que Hegel?
Bem, há no cenário político e social da atualidade uma disputa que considero ser central nos rumos que nossa sociedade está tomando e tomará – vivemos tempos decisivos para a história humana –: esse debate é sobre a liberdade. Obviamente que você (leitor e leitora) pode questionar e dizer que de alguma forma a questão da “liberdade” sempre permeia o debate político, e eu concordo, é verdade. Porém, o que diferencia são os contextos em que tal questão é colocada, como afirma Lenin há anos em que nada acontece e a dias em que anos acontecem. Ou seja, há momentos em que a questão da liberdade ganha contornos trágicos.
Quando Slavoj Zizek veio ao Brasil para lançar seu livro sobre Hegel: “Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético”, em entrevista para o canal do Youtube da UNIVESP[1], o repórter lhe pergunta “por que Hegel hoje?” Zizek respondeu de uma forma que me intrigou muito na época. Em resumo, o esloveno explicou que sua proposta de retorno a Hegel não era de reaver simplesmente os textos hegelianos ou uma espécie de excentricidade intelectual exegética, mas de retomar Hegel para que se possa repetir o seu gesto no intuito de superá-lo (bastante hegeliana essa proposta, diga-se de passagem).
Porém, após eu ter tido maior contato com os textos de Hegel e seus comentadores contemporâneos, percebo o quão certo estava Zizek em sua entrevista, e também fortalece minha hipótese inicial de que atualmente há uma grande questão (filosófica e política) que se impõe a sociedade como desafio: que tipo de liberdade queremos? Ou seja, o que é liberdade e como efetivá-la?
Mas como assim? Vejamos. Hegel viveu entre os anos de 1770 até morrer em 1831. Isso significa que o filósofo, que reinventou a dialética, viveu anos em que se deparou com a morte lenta dos resquícios da sociedade tradicional e a consolidação de algo novo (que ele não sabia ao certo o que era)[2] – a modernidade burguesa e o capitalismo. Hegel viu a Revolução Francesa, os avanços da Revolução Industrial na Inglaterra e na França e como tais acontecimentos históricos foram moldando o pensamento, a sociabilidade e as instituições políticas. Essa tensão entre o velho mundo que ainda resistia em existir e o novo que insistia em vir ao mundo era especialmente latente para um pensador alemão como Hegel, afinal a Alemanha (que nem era ainda um país unificado) era um país, do ponto de vista político e econômico, atrasado se comparado com Inglaterra e França, que eram vanguardas da ascensão burguesa. Esse contexto de emergência do pensamento hegeliano o impeliu a uma grande questão, que também atravessou filósofos como Kant, Fitche, Schelling, etc., “o que é ser livre e como efetivar a liberdade de modo justo”? Essa questão delineou todo o debate da época do assim chamado Idealismo Alemão[3]. Tal questão surgiu pelos imperativos da história: se o velho mundo estava morrendo e algo ainda nebuloso e turvo surgia no horizonte, então como pensar uma sociedade em que a liberdade fosse o centro de seu funcionamento, onde houvesse de fato um reino da liberdade realizada. Ou seja, como uma sociedade pode produzir homens livres?
Iluministas, idealistas, românticos e outros mergulharam suas mentes em torno de tal enigma. Hegel, influenciado e criticando a tradição que o precedeu, também repetiu o gesto de seus antecessores, mas sempre mirando a superação. Hegel morreu, a burguesia assumiu o controle político e econômico em escala global e o capitalismo se tornou o modo de vida dominante no mundo. Muita coisa aconteceu até chegarmos aqui. Vamos fazer um belo salto no tempo.
Seguindo os caminhos apontados por Hegel, Karl Marx percebeu que a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. De algum modo os nossos tempos são similares ao tempo de Hegel , mas de forma trágica. O capitalismo em seu modelo de democracia liberal está dando seus últimos respiros e cada resistência em se manter vivo apenas constata sua morte iminente – ou como diria outro estudioso de Hegel, Lenin, o capitalismo hoje vem se mostrando como uma aparência vazia. A tragédia é que, assim como na época de Hegel, ainda que saibamos que algo de novo está prestes a surgir, esse algo ainda é obscuro, turvo e sem forma definida, ainda pior, esse novo parece ainda ser impossível para a imaginação política de nosso tempo.
Os sintomas dessa morte são visíveis, como eram visíveis os sintomas da morte da sociedade tradicional nos tempos de Hegel: crises e mais crises econômicas se sucedem com maior frequência, as crises políticas começam a colocar em cheque o pacto da democracia liberal e suas instituições e as soluções são cada vez mais ineficazes. Não é por um acaso que os extremos políticos começam a ganhar força (infelizmente a extrema-direita tem levado ampla vantagem sobre a esquerda radical, ao menos por enquanto). Levantes populares, ainda que sem um horizonte normativo concreto, se espalham com um alvo certo, o capitalismo liberal e suas instituições de tal maneira que as soluções dadas dentro da ordem liberal-burguesa são cada vez mais estéreis e não por um acaso que a própria ordem começa a apelar para o fascismo e seus derivados – afinal as soluções, inclusive e principalmente econômicas, demandam cada vez mais a elevação dos níveis de exploração, opressão, violência e morte. Não é ao acaso que vemos ressurgir mazelas que pareciam ter ficado no passado: doenças já erradicadas retornam, obscurantismos, escravidão, etc. O resultado é um contexto de mal-estar e incerteza gigantesco, tal qual o contexto histórico de Hegel.
Eu sei que é difícil imaginar que o contexto de Hegel tenha sido tão complexo e sombrio como o que vivemos hoje, mas isso é apenas porque já conhecemos a história do século XIX e XX, mas para Hegel, tudo aquilo que se desdobrava era novidade, inesperado e contingente , como nosso tempo é para nós (ainda mais nesses tempos de pandemia, nuvens de gafanhotos, etc.).
Então, de forma completamente nova, mesmo que repetida, a grande questão que assombrou o tempo de Hegel se recoloca nos dias atuais, a liberdade. Afinal, todos e todas se perguntam como será o futuro, esse tão incerto, e para responder tal questão é preciso se questionar sobre a liberdade, pois não há sociedade emancipada sem liberdade efetiva.
A grande tragédia atual é que: se entre final do século XVIII e início do século XIX a burguesia caminhava para sua hegemonia, ainda que a forma dessa hegemonia ainda não tenha tido se colocado na época – e por isso Hegel pensou tanto em temas tão caros a modernidade como o Direito, o Estado, a lei, o mercado, a sociedade civil, etc.; hoje o que vemos é que ainda não se colocou, mesmo que turva e sem forma, o novo em nosso imaginário teórico-político, vivemos um hiato, um momento de vazio, em que a ordem sentindo sua queda reage a uma ameaça ainda latente, mas invisível (por isso discursos como a ameaça comunista se difundem tanto). A questão da liberdade ganha contornos dramáticos.
Ao contrário de concepções kantianas, os conflitos sociais e históricos não se tratam de uma questão de disputas de argumentos racionais (ainda que essa dimensão também seja importante), não se trata de convencer racionalmente o “adversário” de sua posição, pois o adversário já está, em última instância, convencido, mas se trata de uma disputa sobre formas de vida, onde concepções distintas de pensar e efetivar a liberdade se chocam radicalmente. Repare que dos marxistas aos neoliberais o tema da liberdade é central, ainda assim ambos acusam-se de acabar com as condições da liberdade se realizar. Essa é a questão, pensar a liberdade hoje é pensar como ela pode se efetivar e não uma mera questão teórica que paira abstratamente – afinal, já diz Hegel em sua Ciência da Lógica: “o que é racional, isso é efetivo; e o que é efetivo, isto é racional”.
A sociedade hoje chegou a uma resposta inicial, ainda que seja apenas um primeiro passo do problema: o nosso modo de vida, a democracia liberal burguesa, não nos ofereceu até hoje condições de sermos efetivamente livres e cada vez menos demonstra capacidade de reatualizar essa promessa de liberdade a fins de efetivá-la. Essa impressão é verdadeira, principalmente se percebermos que as instituições democráticas racionais são, cada vez mais, parte do problema, o resultado dessa constatação é o crescimento da tensão política em todo o mundo. A ordem burguesa já sinaliza que sua escolha é o fascismo e a extrema-direita sob a roupagem neoliberal, afinal tal retórica vai de encontro com o sentimento difuso emanado pelas reinvindicações populares contra as instituições e o sistema. A esquerda radical, que começa a se rearticular e a superar seu passado social-democrata e social-liberal, ainda corre atrás e começa a radicalizar ainda mais sua postura, um exemplo é o PSL (Partido pelo Socialismo e Libertação) dos Estados Unidos da América, que recentemente tem feito comícios para mais de 10 mil pessoas e sempre entoando discursos com críticas radicais ao capitalismo – tudo isso em pleno solo da maior potência imperialista do mundo.
Assim vivemos tempos sombrios, em que o velho morreu, mas o novo ainda não nasceu, e complementa, certeiramente, Slavoj Zizek: e entre isso surgem monstros. A angústia que nos permeia é similar a angústia que Hegel e seus contemporâneos viveram, em ver o velho mundo morrer sem a certeza do que viria. São tempos de angústia. A liberdade torna-se assim uma questão central, não como uma batalha abstrata de ideias, mas como uma luta real e concreta entre formas de vida radicalmente antagônicos. Se os fascistas saem do armário para defender a manutenção da miséria e segregação racial, sexual, de gênero e geográfica, os explorados e oprimidos também firmam posição para dizer não!, não aceitaremos em nome de sua liberdade nossa dor e nossa morte.
A única certeza que temos é que a promessa de liberdade da democracia liberal burguesa ruiu. Ela só se mantém em pé como um cadáver não enterrado que começa a feder ou como uma ruína prestes a desabar no primeiro sopro. Vivemos um tempo que é similar ao que Hegel descreveu em sua época: em que o anoitecer se estende e ainda que saibamos que o sol nascerá, ele ainda não nasceu, e as trevas da noite insistem em esconder o primeiro raio de sol que desvelará o novo mundo prestes a nascer.
Se nosso tempo demanda um gesto como o de Hegel, de se debruçar e pensar a liberdade diante de um novo que ainda não surgiu, devemos também seguir sua intuição: de que a liberdade só é real quando é expressa numa forma de vida livre – quando efetiva.
[1] https://www.youtube.com/watch?v=t1cb58-eTs4
[2] Sugiro a leitura do livro: Hegel, Marx e a tadição liberal de Domenico Losurdo.
[3] Sugiro a leitura do livro Idealismo alemão de Will Dudley. Apesar de não focar tanto nas questões históricas, o livro é uma boa porta de entrada, considerando os limites de uma introdução, para quem está começando a tatear as obras de Hegel.
*Heribaldo Maia é professor de História, membro do Grupo de Estudos Adorno e Curador do Projeto Mímesis.