Por Agustín Cueva, traduzido por Lorena Duailibe
“Não se pode esquecer que a discussão atual no seio da esquerda latinoamericana não passa pela fronteira fictícia entre uma corrente supostamente democrática e outra que não a seria (a denominada “leninista”); a diferença real se dá entre uma tendência que trata de congelar as aspirações das massas fixada pela democracia burguesa, e outra que não nega a democracia mas que busca elevá-la a níveis revolucionários. Para esta última, o problema não é obviamente o da democracia seca, senão de como incorporar a maior quantidade de democracia para o povo no processo de transformação radical da realidade.
A Internacional Comunista e os partidos nacionais
A ideia de uma dependência absoluta dos partidos comunistas (PC) latinoamericanos com respeito à Internacional Comunista (IC) foi sustentada por três fontes muito diferentes: a) o imperialismo e as classes dominantes em geral, b) o movimento trotskista e c) alguns PC. Que as forças compreendidas no primeiro usem essa tese é mais compreensível: se trata de apresentar os PC e grupos afins como organizações externas à realidade nacional, e o próprio marxismo como “ideologia estrangeira”. Igualmente se entendem as razões dos trotskistas; é uma maneira de atribuir todas as limitações e eventuais erros da esquerda realmente existente (a outra, imaginária, é por definição imaculada) a Stalin e a IC.
É impressionante, no entanto, que certos PC sustentem teses parecidas, mas tal assombro se dissipa ao observar que não por azar são aqueles partidos que não lograram a classe operária e em geral populares de seus respectivos países. Culpar disso a IC – dissolvida há mais de quarenta anos – resulta em algo tão fácil quanto irresponsável.
Que a filiação à IC não determinava de maneira fatal o destino dos PC parecia uma evidência em si. Somente pensando na trajetória de três partidos asiáticos hoje no poder, o chinês, o vietnamita e o coreano, se percebe a imensa distância que os separa de seus homólogos latinoamericanos, todos membros, no entanto, da IC. Os asiáticos estiveram claramente mais perto desta organização que os latiamericanos, mas isso não foi óbice para, por um lado, nacionalizarem profundamente seu marxismo – para o bem ou para o mal – e, por outro, seguissem entre si vias muito distintas. A experiência de Mao, sobretudo a partir de 1935, comprova ademais a seguinte hipótese: não é que alguns PC tenham sido – e às vezes seguem sendo – fracos porque a IC lhes impulsionou determinada linha política; ao contrário, foi na medida em que eram fracos e carentes de enraizamento popular que uma linha “exterior” parecia impor-se-lhes. Mao pode divergir de Stalin porque se movia, segundo sua metáfora, “como peixe na água”.
Para o caso da América Latina não é supérfluo recordar que também existem diferenças muito notáveis no desenvolvimento dos PC.
Bastante ortodoxos e de massas, os partidos chileno e uruguaio melhor se parecem com seus equivalentes da Europa mediterrânea, até a década passada pelo menos. Um partido como o Comunista Mexicano tem uma transformação histórica atravessada por todo tipo de “heterodoxias”, que no entanto pouco se aproximou do povo. Uma leitura cuidadosa de sua recém publicada História mostra que seu verdadeiro drama nunca foi o de uma definição da IC, senão de como reagir e atuar frente à revolução que ocorria em seu próprio país[1]. Se acreditarmos em estudos como o de Manuel Caballero, o PC da Venezuela tampouco parece possuir uma trajetória explicável com base nos slogans da IC: o autor tem razão em sublinhar que essa trajetória é mais compreensível a partir especificamente do processo histórico venezuelano[2].
Uma última observação: vale ressaltar que episódios importantes da nossa história, como o levante comunista de 1935 no Brasil ou o da Frente Popular chileno em 1936, somente na lenda difundida por Michael Löwy são redutíveis a mots d’ordre do Comintern[3]. Inumeráveis testemunhos confirmam a “autoctonia” do movimento brasileiro[4], do mesmo modo que nenhum historiador medianamente sério duvidaria da raiz nacional da Frente Popular de Aguirre Cerda e Salvador Allende.
Mito e realidade de José Carlos Mariátegui
Reivindicado pelos neogramscinianos tanto como pelos maoistas de Sendero Luminoso, e não menos pelo governo de Velasco Alvarado que por todos os partidos comunistas, José Carlos Mariátegui (JCM) é um clássico do nosso marxismo e um tipo simbólico no qual convergem múltiplos mitos. Aqui nos limitaremos a expor nossa opinião sobre alguns pontos controvertidos.
Primeiro, nos parece falso que JCM seja uma espécie de profeta heterodoxo, como por algum tempo acreditaram certos marxistas dogmáticos e, o que é pior, seguem acreditando todavia teóricos trotskistas ou alguns publicitários próximos à socialdemocracia. Surpreende, ao contrário, que intelectuais da IV Internacional reivindiquem como seu um autor que explicitamente deu razão a Stalin contra Trotsky, inclusive quanto à necessidade de desenvolver o socialismo em um único país[5], e que com maior explicitação ainda fez da existência do feudalismo latinoamericano um pivô de suas brilhantes análises (crime de lesa interpretação segundo o trotskismo). Tampouco deixa de surpreender que, a força de querer fazer de JCM um dissidente avant la lettre, José Aricó, por exemplo, termine inventado um JCM “anti estatalista”, “contrário à visão classista do marxismo oficial” e “criador de um universo que se define mais em termos de cultura que dos estritamente de classe”[6]. Onde expressou JCM semelhantes ideias?
Segundo: tampouco parece ter aderência a lenda de uma obra de JCM cujo destino póstumo consistiu em transitar das catacumbas do stalinismo a uma espécie de epifania atual: ambos extremos são falsos. Para os andinos da minha geração e da que a precedeu, JCM nunca foi um desconhecido. Mais ainda: era impensável, justamente nos anos em que se supõe que o “Amauta” foi proscrito, que discutíamos do problema indígena ou agrário, de questões literárias ou do que vinte anos mais tarde se denominaria “modos de produção”, sem conhecer minimamente os 7 ensaios. Pelos anos quarenta e cinquenta este livro já era um clássico[7].
Cabe desde logo perguntar-se se JCM era igualmente conhecido no Cone Sul, por exemplo. E a resposta tem que ser negativa, mas com o esclarecimento de que hoje tampouco o é, embora por motivo menos intrigante do que alguns gostariam: seu universo de preocupações não é mais correspondente, ao menos no nível da experiência empírica cotidiana, com o que prevaleceu no Cone Sul. Sem o menor ânimo de irritar Aricó e menos ainda de postular ao monopólio de uma “andinidade” em que não acredito, devo confessar que minha leitura de suas múltiplas interpretações de JCM não fazem mais que corroborar aquela suspeita: estudioso inserido nos meandros do debate europeu, Aricó me deixa sempre a impressão de deixar um pouco de lado as preocupações de JCM; quase como se fizera um esforço por traduzir para a linguagem dos “brancos” o sui generis discurso do “cholo” peruano.
Terceiro: JCM não me parece um teórico strictu sensu, isto é, um pensador cujo trabalho se dirija fundamentalmente à revisão e/ou reelaboração de categorias e sistemas conceituais de interpretação da realidade. Neste sentido, assino sem reserva as seguintes opiniões de Rubén Jiménez Ricárdez:
[JCM abordou os problemas teóricos do marxismo] em um número limitado de ensaios. Constituem, como já vi, a parte mais fraca da obra de Mariátegui. A de menor sopro crítico. Mas incentiva a mesma paixão política que o resto de sua obra. Terá que considerar os trabalhos que a integram como um tipo de trabalho subsidiário. Correm num terreno filosófico e deixam ver o inacabado processo de apreensão do materialismo dialético por parte de Mariátegui. São, portanto, os marcos sintomáticos de um processo teórico não concluído, e não os graves e definitivos desvios do marxismo que muitos quiseram ver.[8]
Nem tampouco, adicionaríamos, as geniais contribuições que outros começam a descobrir.
O que faz, então, a grandeza de JCM? Antes de tudo, em ter deixado o primeiro esquema marxista de interpretação das modalidades específicas de desenvolvimento do capitalismo na América Latina, em condições de dependência e articulação com outras formas produtivas (feudalismo, escravidão, comunidade primitiva); esquema que muitos de nós, seus discípulos, seguimos considerando válido. Ao fazê-lo, JCM ligou pela primeira vez o discurso marxista a nossa realidade, evitando que aquele discurso flutuasse como uma substância etérea incapaz de incorporar-se ao referente empírico que pretende explicar. Nacionalização do marxismo? Se preferir, sim.
Logo, JCM nos ensinou com o exemplo como a vocação totalizadora do marxismo não pode permanecer como mero postulado, senão que tem que funcionar como prática real: suas análises abarcam, com efeito, desde a problemática econômica até os vereditos da literatura, passando pelo estudo da dinâmica regional (tão na moda hoje), do problema educativo, a questão étnica, etc. Tudo isso, com uma particular lucidez e sobre a base de um imenso acervo cultural que, também pela primeira vez em nossa história, foi incorporado a coordenadas sistematicamente marxistas sem cair nesse potpurrí teórico que ainda caracteriza boa parte do ensaio latinoamericano.
Enfim, JCM abriu o caminho para uma crítica marxista das ideologias adversárias, sobretudo, através de seus debates com o idealismo e o populismo. Ademais, está claro ser ele um pioneiro ao assinalar a necessidade de uma via revolucionária e socialista como solução de problemas latinoamericanos, justificada cientificamente pela análise de nosso específico desenvolvimento capitalista. Imensas as contribuições deste homem singular.
1930-1959: A fundação de uma visão marxista de nosso mundo
Com frequência costuma-se apresentar um panorama do desenvolvimento inicial do marxismo na América Latina dividido em duas fantasiosas etapas: a) uma espécie de idade de ouro que se extinguiria com a morte de Mariátegui, em 1930; e b) uma suposta idade obscura que se estenderia desde aqui até 1959, em que se produz a Revolução Cubana.
Esta versão carece de toda seriedade. É precisamente a partir dos anos trinta quando toma forma um movimento intelectual inspirado no marxismo, e com tanto vigor e envergadura poderia considerá-lo como o fundamento de toda a cultura moderna de América Latina. A ele pertencem poetas do nível de Neruda, Vallejo ou Nicolás Guillén, novelistas como Jorge Amado ou Carlos Luis Fallas, pintores como os do muralismo mexicano e até arquitetos como o grande Niemeyer. Sem dúvida o melhor de nossa cultura.
Observe que não se trata de criadores que “por um lado” se confessem como marxistas e “por outro” façam uma obra que nada tenha a ver com a dita ideologia. Não; o peso do marxismo é tão grande que às vezes acontece o oposto: autores que militam em partidos não marxistas, mas cuja obra está impregnada de uma visão materialista do mundo. Servem de exemplo os novelistas Jorge Icaza do Equador, Ciro Alegría do Peru ou o Prêmio Nobel Miguel Ángel Asturias.
Contudo, convém destacar que através desta plêiade de criadores o marxismo se funde indissoluvelmente com o nacional e popular na medida em que: a) se recuperam as raízes populares subjacentes em grupos étnicos oprimidos: índios, negros, mulatos, mestiços, etc; b) se reinterpreta nossa história e nossas tradições; c) se cria, a partir do anterior, um novo repertório simbólico e até uma nova linguagem; e isso d) sem cair no folclorismo e colocar essas imagens e representações na perspectiva da construção de uma cultura nacional até então inexistente, ou pelo menos atrofiada pelo caráter estacionário da sociedade oligárquica e pela dominação imperial; e e) destacando as múltiplas tensões e contradições, inclusive as de classe, que atravessam a vida de nossas nações.
Ao participar decisivamente na conformação desta visão de mundo, o marxismo adquire carta de cidadania na América Latina ao mesmo tempo em que esta região se marxistiza. Ademais, será o continente mais impregnado de marxismo: nada poderá traçar a história contemporânea de suas atividades vitais prescindindo esse ingrediente que somente acharemos na política, senão também na literatura, nas artes plásticas, na música neofolclórica ou na canção-protesto, nas ciências sociais ou mesmo na teologia.
Restam, desde já, algumas perguntas por responder, começando pela seguinte: por que os “especialistas” no marxismo latinoamericano não notaram este fenômeno que salta a vista? Deixemos ao leitor a tarefa de indagar a parte que corresponde à simples ignorância e a que se atribui à má-fé.
Uma segunda questão consiste em saber o que determinou o auge daquela visão fortemente marxistizada da realidade. Além da influência da revolução bolchevique e outros acontecimentos “extremos” (a Guerra Civil Espanhola ou a Frente Popular francesa, por exemplo), houve supostamente a efervescência e disponibilidade de nossas próprias forças locais e em particular das camadas intermediárias tanto mais jacobinas e anti-imperialistas, quanto que suportavam diretamente as consequências de uma via oligárquica de desenvolvimento (“decomposta” em alguma medida pela crise de 29) e da dependência do imperialismo que nos impedia culminar o projeto nacional. O marxismo-leninismo (fórmula inseparável entre nós) foi em tais condições o único instrumento capaz de dar conta dessa complexa situação e assinalar ao mesmo tempo um caminho de superação.
Uma terceira inquietação se refere ao contraste da riqueza daquele acúmulo de imagens e representações revolucionárias, e a relativa e simultânea pobreza do pensamento abstrativamente expressado: ensaio filosófico, sociológico, etc. Assim é, mas a explicação de tal “anomalia” excede os propósitos deste artigo na medida em que remete a um problema maior: o de inquirir por que a cultura da América Latina toda, desde a Colônia até os anos sessenta deste século, possuiu similar característica.
Por último constatamos que ao longo do período analisado nesta seção, se registra um notório desenvolvimento desigual do marxismo: hegemônico em muitas áreas da cultura, embora muito menos no plano orgânico-partidário (pese à existência de PC e afins) e penetra somente muito lentamente nas massas.
A Revolução Cubana: Culminação e ruptura
As reflexões precedentes ajudam a explicar algo que todos intuímos: a revolução Cubana não surgiu por geração espontânea. Permitem entender, também, aquela afirmação de Fidel Castro que muitos põem em dúvida: que antes do triunfo de 1959 ele já era marxista-leninista. Ajuda, por último, a compreender como a Revolução Cubana somente na aparência constitui uma transgressão do principio de que “sem a teoria revolucionária não há ação revolucionária”. Neste caso a teoria revolucionária strictu sensu estava dada pela presença do marxismo-leninismo a nível mundial, mas existia ademais uma “aclimatação latinoamericana” da dita teoria e uma visão do mundo inspirada nela, pletórica de vivências e símbolos nacionais. Na medida em que o materialismo histórico se enraíza na América Latina como marxismo-leninismo, isto é, como pensamento profundamente anti-imperialista, tampouco é de se estranhar que o líder cubano, sem “enganar” ninguém nem considerar dilemas como os de Ernesto Laclau[9], ache natural unir aquele pensamento com nossa melhor tradição libertária, encarnada neste caso por José Martí. Vinte anos mais tarde a experiência se repetirá, mutatis mutandis na Nicarágua sandinista.
Mas junto ao movimento das ideias está também o da realidade. Neste decisivo plano a Revolução Cubana é culminação e superação, ao mesmo tempo, de uma série de insurreições e revoluções que marcam toda a etapa do pós-guerra em América Latina. Recordemos três por sua importância, começando pelo “Bogotazo” de 1948, onde Fidel realizou uma de suas primeiras aprendizagens, deixando marcado tanto pela ação das massas como pela personalidade do líder assassinado, Jorge Eliécer Gaitán, em quem convergia uma explosiva mistura do melhor do liberalismo radical, muitos recursos do populismo então em voga, e um tipo de socialismo difuso.
Em segundo lugar deve-se mencionar a revolução guatemalteca (1944-1954), onde outro líder do futuro Movimento 26 de Julho, o Che Guevara, realizou sua aprendizagem. Que conclusões extraio dali? Pelo menos duas: a) a esquerda somente pode triunfar com a condição de organizar e armar as massas, para garantir e aprofundar com elas o processo revolucionário; e b) nos países dependentes, a parte mais árdua da luta não é aquela travada contra a classe dominante local, mas aquela que deve ser sustentada contra o imperialismo.
Há uma terceira experiência cuja influência sobre o processo cubano é mais difícil de avaliar: a revolução boliviana de 1952. O mais provável é que desta revolução saíra uma lição exatamente inversa à da Guatemala; de nada serve ter as massas combatendo nas ruas nem – evento incomum – os operários aniquilando o exército da classe dominante, se não existe uma organização de vanguarda que cumpra realmente seu papel.
Além disso, não devemos esquecer que o modelo de desenvolvimento capitalista dependente do pós-guerra entrou numa zona crepuscular na América Latina, junto com as distintas opções políticas que o acompanharam, desenvolvimentismo e populismo, sobretudo. Além de mais, a esta altura da história, essa crise unia-se com uma de caráter mundial: aos finais dos anos cinquenta era evidente que junto ao boom econômico dos países imperialistas, a “brecha” que os separava do Terceiro Mundo só tinha aumentado. Justamente por isso surgem as noções de Terceiro Mundo e subdesenvolvimento; ao calor de lutas de libertação nacional que se livram em muitos pontos do globo: Indochina, Argélia, Congo, etc.
A Revolução Cubana é, pois, o ponto de convergência de muitas vertentes; de uma tradição jacobina e anti-imperialista muito autóctone e um marxismo-leninismo assimilado e moldado a nossa medida; de tudo isso e uma disposição revolucionária das massas de acordo com nossa condição de elo fraco; por fim e muito importante, de um momento em que pela primeira vez a história universal busque totalizar-se não mais pela ação e pensamento das metrópoles de sempre, senão pela constituição de uma nova unidade que, ainda de maneira difusa, comece a denominar-se Terceiro Mundo.
O marxismo renovado dos anos sessenta
A Revolução Cubana implicou uma superação do marxismo latinoamericano existente até então? Claro que sim, visto que constituiu não só uma culminação senão ademais uma crítica prática daquele, ao mostrar novos caminhos e perspectivas para a revolução. Na medida em que o marxismo-leninismo não é unicamente uma teoria “crítica”, senão uma teoria encaminhada para transformar a realidade, o fato de que os revolucionários cubanos tenham logrado este objetivo implicou assim mesmo uma superação: não somente de certas teses e práticas do marxismo chamado “tradicional”, isto é, o dos PC, senão também e até diria que, sobretudo, daqueles marxismos imaginários que sempre tiveram razão verbal ou escrita mas jamais transformaram minimamente a realidade.
Quais foram as principais concepções modificadas pelo processo cubano? É imperioso assinalar quatro: a) a definição do caráter das formações sociais latinoamericanas; b) o esquema de interpretação das classes sociais e portanto do sistema de eventuais alianças; c) o caráter da revolução latinoamericana; e d) as forma de luta.
Em relação ao primeiro ponto, muito se insiste em que a Revolução Cubana somente foi possível quando seus líderes compreenderam que nossas sociedades não são feudais nem semifeudais, senão plenamente capitalistas. Trata-se, no entanto, de uma atribuição post factum. Não existe um único texto, nenhum, em que tal preocupação apareça esboçada sequer por algum dos dirigentes do 26 de Julho. Até agosto de 1961, o Che seguia falando de uma reforma agrária “antifeudal e anti-imperialista”[10].
Ao revisar sua Obra revolucionária resta evidente que seu radical anti-imperialismo está enriquecido por um amplo conhecimento das lutas de libertação do Terceiro Mundo assim como da reflexão em torno delas, do mesmo modo que pelas análises e concepções sobre o que se havia detectado como situação de subdesenvolvimento. Neste sentido, cabe sublinhar que o marxismo latinoamericano se enriqueceu ao experimentar uma terceiromundialização, é ainda mais necessário destacar que o “euromarxismo” tentará enterrá-lo mais tarde.
O anterior não significa que o debate sobre o caráter de América Latina não se desenvolveu à suite da Revolução Cubana, especialmente provocado por André Gunder Frank e sua escola (que ao contrário foram bem-vindos na revista cubana Pensamento Crítico). Não é o caso de entrarmos aqui no labirinto da trama desta discussão, cujo resultado é conhecido: dado que a América Latina dos anos sessenta a diante era predominantemente e cada vez mais capitalista na opinião de todos, o debate tendeu a definhar por falta de oponentes e de atualidade. Com honrosas exceções, como a de Luis Vitale, ninguém se inflama atualmente ante a pergunta de se América Latina foi ou não feudal nos séculos XVI a XIX, nem se acredita que dali se derivem consequências para a futura revolução. O debate, no entanto, enriqueceu nossas ciências sociais embora somente porque as colocou em tensão.
Pertinente ao segundo ponto, isto é, ao esquema de interpretação das classes sociais, o fundamental da discussão girou em torno da existência ou não de uma burguesia nacional e ao papel que ela podia desempenhar no processo revolucionário. Como no caso anterior, este problema também apareceu depois da Revolução Cubana e mais pela experiência de outros países que pela que inicialmente se havia dado na ilha. Em efeito, em um famosíssimo texto de 1961, o Che escrevia o seguinte sobre Cuba:
É compreensível que a burguesia nacional, protegida pelo imperialismo e pela tirania, cujas tropas caíram de saco sobre a pequena propriedade e faziam do suborno um meio diário de vida, vira com certa simpatia que estes jovens rebeldes das montanhas castigaram o braço armado do imperialismo… Assim, forças não revolucionárias ajudaram de fato ao facilitar o caminho do advento do poder revolucionário.[11]
A essa altura, no entanto, era evidente que nos demais países latinoamericanos a “burguesia nacional”, envergonhada pelo curso da Revolução Cubana, estava se tornando uma força cada vez menos progressista. Ademais era verdade algo que os estudiosos sociólogos e econômicos corroboravam: o processo de transnacionalização, que conferia um novo caráter a nossas economias, se tornou precário num extremo e transnacionalizado em outro à antiga “burguesia nacional”; em suma, tinha se decomposto. As contradições interburguesas (secundárias, obviamente) seguiam existindo, mas já eram de outro tipo.
Se os pontos até agora tratados representam implicações da Revolução Cubana, antes das declarações explícitas sobre ela, os pertinentes ao caráter da revolução latinoamericana e às formas de luta são, em vez disso, suas contribuições diretas. A ação cubana coloca a possibilidade de uma revolução socialista na agenda, que em seu curso resolverá as tarefas teoricamente “democrático-burguesas” e desde logo as de libertação nacional (anti-imperialistas)[12]. Quanto às formas de luta, atualiza a possibilidade da ação armada recuperando uma velha tradição guerrilheira e montonera de América Latina. No entanto, a partir deste momento entramos em uma etapa a qual se experimentaram todas as formas de luta, desde o denominado “foquismo” até a guerrilha urbana que se segue, continuando nos anos setenta com experiências tão diversas como a da Unidade Popular chilena ou a guerra popular prolongada que deu em algumas zonas da Colômbia e sobretudo na América Central.
Por outro lado, a década de setenta inicia um tipo de época de ouro de nossas ciências sociais, que pela primeira vez deixam de ser mera caixa de ressonância do que diz na Europa ou Estados Unidos, para configurar sua própria problemática e até pretender elaborar sua própria teoria: a da dependência, que não é o caso de se discutir aqui. Essas ciências sociais estão ademais altamente politizadas e de uma maneira dialética interessante elas contribuem, a sua volta, para dar apoio científico às tarefas das diversas organizações políticas[13].
Retrocesso e novos questionamentos
Em 1973, com o golpe de Estado no Uruguai e a derrubada de Salvador Allende no Chile se inicia um período de retrocesso do movimento revolucionário latinoamericano que durará aproximadamente um quinquênio, até 1978, e conhecerá talvez seu pior momento em 1976, quando os regimes militares de direita ou recentemente direitizados parecem controlar quase todo o continente.
Nestas condições, o marxismo latinoamericano desenvolverá quatro linhas principais de investigação, que são ao mesmo tempo questionáveis: a) o caráter dos novos regimes, especialmente do Cone Sul; b) as transformações operadas no Estado latinoamericano; c) a necessidade de restabelecer a democracia e as vias para consegui-la; e d) os marcos globais de interpretação da realidade latinoamericana.
Quanto ao primeiro ponto, pode-se dizer que há unanimidade em constatar o caráter novo dos regimes militares recém implantados; ou seja, que não se trata mais das ditaduras latinoamericanas de tipo tradicional senão de golpes institucionais que aspiravam remodelar a economia, as relações sociais e a política dos respectivos países em consonância com o processo de transnacionalização. Além deste acordo, as divergências começavam a ser particularmente agudas ao discutir o caráter fascista ou não fascista daqueles regimes. Inútil recapitular os argumentos de um debate cujo eco é todavia perceptível. As alternativas à teoria da fascistização foram, como se lembrará, por um lado a do denominado Estado de Segurança Nacional (sustentada por Luis Maria, por exemplo); por outro, e à esquerda, a teoria do Estado de Contrainsurgência de R. M. Marini (não evocamos a teoria do Estado burocrático-autoritário, sustentada por G. O’Donnell, por situar-se fora do debate marxista). Supostamente, cada teoria interpretativa correspondia à determinada fórmula política de luta antiditatorial, embora, irônica como sempre, a história determinou novos “divisores de água” na década de oitenta.
Em relação ao segundo ponto – transformações operadas no Estado –, também houve consenso em detectar sua remodelação em função dos requerimentos do capital financeiro, fato que a sua maneira supõe certo tipo de modernização. Estabelecimento, então, de um capitalismo monopolista? Aqui, estamos longe da unanimidade. Grau de robustez deste Estado? Tampouco havia acordo sobre isto e até hoje não há.
A questão da democracia pareceu de inicio o melhor ponto de confluência para as forças antiditatoriais; mas em longo prazo tornou-se o pior bloco de discórdia na medida em que cada qual preenchia aquele conceito com os mais diversos conteúdos. Chile, onde a esquerda sempre teve mais alternativas que no resto do Cone Sul, ilustra completamente o escopo destas discrepâncias, hoje mais agudas que ontem. Mas isto remete a problemas que analisaremos na parte final.
É o quarto ponto – questionamento dos marcos gerais da interpretação da realidade latinoamericana – que grosso modo se expressou como uma oposição da “teoria da dependência” e uma “teoria da articulação de modos de produção sob domínio imperialista”; discussão que em seu momento despertou paixões iluminadas mas que hoje, à distância, parece em grande medida superada, para não dizer démodée. Em parte, porque a realidade presente já não levanta as mesmas perguntas e desafios de uma década atrás; em parte porque cada um dos campos (dependentistas e antidependentistas) foram decantando suas teorias e também… suas linhas.
De toda forma aqueles debates foram interrompidos ou, mais exatamente, reformados por dois acontecimentos que se perfilaram com nitidez em 1978: o renascimento do movimento de massas, impressionante como no caso do Brasil, e o crescimento do espírito insurgente na América Central, sobretudo na Nicarágua. Sinais inequívocos de uma nova etapa.
Entre a revolução e o eurocomunismo
O ano de 1979 é essencial na história do marxismo latinoamericano por mais de uma razão. Em primeiro lugar, pelo triunfo da revolução sandinista, vinte anos depois da Revolução Cubana e ao cabo de tantas experiências falidas da esquerda. Revitalizante em si mesma, a vitória nicaraguense não foi ademais um fato isolado: foi o ponto de destaque de um processo revolucionário que tomava corpo em El Salvador e se articulava na Guatemala, enquanto ilumina um ponto distante e até então ignorado: a Granada de Bishop.
No entanto, o desenvolvimento deste e de outros processos será tanto mais árduo e suntuoso quanto coincide com uma precipitação da direitização do “Ocidente”, isto é, dos países imperialistas. O acontecimento mais conhecido é óbvio: a reorganização dos Estados Unidos, que na verdade se iniciou sob o mandato de Carter, em meados de 1979. E também seu equivalente no exterior, representado pela senhora Thatcher. Mas isso é somente uma parte; mais grave, sem dúvida, é a direitização dos partidos socialistas da França, Espanha e Portugal, cada vez mais satélites da potência estadunidense. Ademias, e como conta detalhadamente R. Aron em suas Memórias[14], a antiga intelectualidade da esquerda, ou pelo menos progressista, já tinha experimentado uma virada a 180 graus aos finais dos anos setenta. Conste que não se trata unicamente de um antissovietismo ou anticomunismo, senão também de um expresso antiterceiromundismo[15]. Não é este o lugar para analisar as causas de tal direitização, que indubitavelmente tem a ver com a profunda crise do Ocidente, cujo bode expiatório acabou por ser o Terceiro Mundo (como foram os judeus na crise de 29).
O eurocomunismo surge precisamente neste contexto, como uma expressão a mais da crise da esquerda europeia e concebendo-se a si mesmo, em uma de suas vertentes, como uma alternativa conservadora à “via chilena”. Em efeito, enquanto a maior parte da esquerda latinoamericana reagiu ante a derrota no Chile destacando o erro consistente em não se haver feito todo o possível para tomar realmente o poder, a liderança do PC italiano chegou à conclusão estritamente oposta: tinha que proceder com mais cautela, marchando no compasso de uma aliança com a Democracia Cristã. Teoria que certamente evitaria o golpe, posto que o torna desnecessário, ainda sem chegar aos extremos do PCI: terceira via ao socialismo sob o guarda-chuva protetor da OTAN.
Mas sejamos justos: se todos os caminhos conduzem supostamente a Roma, nem todos partem dali. Teoria bastante similar às do eurocomunismo surgiram na América Latina no começo dos anos setenta, sintetizados, por exemplo, no livro Processo à esquerda, de Teodoro Petkoff, ex-guerrilheiro venezuelano e atual dirigente do MAS[16]. O dito texto teve influência mínima somente fora de seu país; foi recebido como o que em grande parte era: fruto de uma elevada febre petrolífera.
Distinto foi o destino do eurocomunismo em razão de vários fatos. Primeiro, vinha com selo europeu, em um momento em que uma estranha mistura de fraqueza e frivolidade nos fazia recair na dependência teórico-cultural. Segundo, com ou sem razão, traía o aval de um homem por todos respeitado, Antonio Gramsci. Terceiro: aparecia como a “via democrática” ao socialismo, em um contexto em que a maioria dos latinoamericanos clamávamos por um “retorno” à vida democrática. Quarto: fora da América Central, a norma era o declínio ideológico. Quinto e último: a febre petrolífera não era exclusivamente venezuelana; de maneira efêmera o México vivera uma etapa parecida e, em certo sentido, os últimos alentos do “milagre brasileiro” alimentavam circuitos de bem-estar propensos ao eurocomunismo.
De qualquer forma, a referida corrente semeou uma enorme confusão na América Latina e contribuiu para o desarme ideológico de muitos setores da esquerda, no momento em que requeríamos maior firmeza para combater um imperialismo cada vez mais prepotente e agressivo. Entre outras coisas, nos fazia perder a consciência terceiromundista com que tínhamos nos enriquecido nos anos sessenta; agora, ainda que teoricamente se pressupõe nosso pertencimento àquilo que Gramsci denominou “Ocidente”. Não faltou quem previu que na virada do milênio países como México, Brasil e Venezuela ingressariam no clube dos desenvolvidos. Nestes sonhos andávamos quando a crise de 1982 nos deparou com o duro despertar que conhecemos: voltamos à dobra dos subdesenvolvidos e nem sequer com a cabeça erguida.
Diversidade e pluralismo
Como afirmou mais de uma vez Schafik Jorge Handal, dirigente dos comunistas salvadorenhos, a própria diversificação que experimentou a estrutura social de nossos países cria não somente classes, senão grupos de fisionomia muito específica que legitimamente aspiram possuir órgãos próprios de expressão[17]. Ao mesmo tempo, a crise do imperialismo e do capitalismo em cada país radicaliza muitos grupos sociais, que adotam posições revolucionárias. Nessas condições é muito difícil pensar que somente um grupo político pode ser considerado como vanguarda, com exceção dos demais, e o que se impõe com razão é a ideia das frentes revolucionárias (na Nicarágua ocorreu igual a El Salvador) que em conjunto constituem a vanguarda do respectivo processo. Existe pois uma espécie de diversidade na unidade, cuja evolução não está determinada de antemão: pode ou não ser conveniente avançar para a formação de um partido que está liderando o caminho, dependendo de muitas condições objetivas e subjetivas, internas e externas.
Se a diversificação da estrutura social nacional favorece a formação de várias organizações revolucionárias pelo país, a diversidade histórico-cultural entre países, somada à multiplicidade de experiências na construção do socialismo no mundo, propiciam outro fenômeno: que organizações aparentemente similares em determinado momento experimentem com o passar do tempo transformações que as levam a posições às vezes muito diferentes. É o que acontece com os PC, não somente a nível latinoamericano senão mundial. Em efeito, que similitude existe atualmente entre os PC da URSS, China, Albânia, Espanha e Iugoslávia, por exemplo? Pouca, sendo uma referência ao marxismo cada vez mais equívoca e uma história comum cada vez mais remota. Quiçá na América Latina a diferença seja menos contrastante, sobretudo a raiz do virtual fracasso das linhas maoista e “albanesa”; o que não significa que não se registram variações notáveis se se compara, por exemplo, o PC brasileiro com o de El Salvador, o PSUM[18] com o PC cubano, ou este com o nicaraguense. Isso, a nível das posições políticas, porque a nível de desenvolvimento e presença nacional, as diferenças não são menos notáveis, como se viu na primeira parte deste artigo. O caso acima mencionado do PC nicaraguense serve, ademais, para demonstrar como a vanguarda do processo revolucionário não se confunde necessariamente com os PC.
E isto nos leva ao último ponto, que tem a ver com o pluralismo ideológico: na atualidade, a fronteira que separa as posições revolucionárias das não revolucionárias não corresponde obrigatoriamente à que divide marxistas e não marxistas. Entre os eurocomunistas que profetizam sua oposição ao socialismo real e ostenta sua “distância crítica” frente a todas as revoluções deste mundo, e os cristãos comprometidos com a revolução (como tantos agora existem na América Latina) me parece evidente que a posição da esquerda está representada pelos segundos.
Ademais, entre o universo teórico desses cristãos revolucionários e o do marxismo, talvez haja menos distância do que se supõe. Em um recente número da revista Cristianismo e Sociedade, por exemplo, vieram vários estudos que mostram como as ciências sociais latinoamericanas, fortemente impregnadas de marxismo, serviram de nexo entre o materialismo histórico e a avançada visão de mundo dos cristãos. Samuel Silva Gotay afirma que “a interpretação radical da dependência estrutural, representada pelos cientistas de esquerda, inclinados ao uso das categorias marxistas de análise socioeconômica, foi o que possibilitou que muitos militantes cristãos do continente tivessem contato com a análise marxista e fizessem uma interpretação marxista da história e do subdesenvolvimento latinoamericano”[19]. Mais reservado, o padre Gustavo Gutiérrez pensa que “se existe encontro, este se dá entre a teologia e ciências sociais, e não entre teologia e análise marxista”; embora de imediato tenha que afirmar um matiz: “salvo pelos elementos deste [da análise marxista, AC] que se acham nas ciências sociais contemporâneas, em particular tal como se apresentam no mundo latinoamericano”[20].
Correta precisão, posto que “no mundo latinoamericano” também esta esfera da cultura resulta inimaginável sem a contribuição marxista, que nem sequer a sistemática repressão dos últimos anos logrou erradicar das ciências sociais.
O que não quer dizer que o marxismo está “impondo-se” aos cristãos nem “infiltrando-se” na teologia, senão que existe uma confluência cimentada em uma cultura revolucionária, patrimônio comum dos latinoamericanos e que alimenta o projeto radical de transformação. Com sua deslumbrante mistura de sandinismo e poesia, de cristianismo e marxismo-leninismo[21], Nicarágua é sem dúvida a melhor materialização desta confluência.
Perfis do debate atual
O debate invocado em “O marxismo renovado dos anos sessenta” deste trabalho, referente ao caráter das formações sociais latinoamericanas, foi a todo momento um debate explícito; o que se desenvolve atualmente sobre o mesmo tema (embora com diferentes alternativas) é um debate sobreposto, cheio de álibis.
Em tais condições, o próprio marxismo começa a adotar uma linguagem equívoca, às vezes enredado na armadilha de velhas oposições pré-marxistas, como por exemplo a de “sociedade civil” vs. “sociedade política”. Esquece-se, neste caso, que o marxismo se constituiu fazendo a dissecação do conceito de “sociedade civil” até descobrir sua medula econômica e sua contraditória textura classista. Fora dessa perspectiva, o que pode significar para um marxista a categoria de sociedade civil? Nada, por ser um campo semântico ambíguo, ao que igualmente pode a burguesia apelar para pedir que se desestabilize a economia em seu favor (o FMI figura nesta ótica o melhor defensor da “sociedade civil”), que o povo para exigir que o Estado burguês respeite a autonomia de suas organizações sindicais, partidárias, etc.
Igual ambiguidade encerra o conceito de “hegemonia”, uma vez desprendido de seu uso europeu ocidental que alude à forma de dominação atual da burguesia financeira; consenso no interior do espaço metropolitano, coerção na “periferia”; exploração atenuada por dentro, superexploração fora. O que deixa o conceito de “hegemonia” quando se aplica-o nas antípodas, isto é, nas sociedades “periféricas”? Apenas uma mistificação subliminar que induz a pensar que o poder se estrutura segundo o mais puro esquema liberal: por meio de uma livre competição de ideias, imagens e representações que termina por favorecer aos competidores políticos mais meritórios.
Enfim, como afirmamos anteriormente, é o mesmo conceito gramsciano de sociedades “ocidentais”, que não faz mais que desvirtuar nossa peculiaridade derivada da dependência e do subdesenvolvimento. E, atrás de todo este andaime teórico equivocado, uma questão fundamental que não se termina: qual é o verdadeiro status das sociedades latinoamericanas de hoje?
Quando Gramsci afirmou que as sociedades do “Ocidente” se caracterizavam pelo robustecimento da “sociedade civil”, queria apontar um reforço da sociedade burguesa; de outro modo seriam incompreensíveis os problemas e perspectivas que aguardam pela revolução proletária. Ademais, é lógico que isso ocorreu nas fortes ligações (países imperialistas): Lênin também o previu. Resta saber se um fortalecimento parecido da burguesia está ocorrendo nesta sociedade e sob qual forma e em quais condições. Deve-se estar consciente, ademais, de que se tal coisa está de fato sucedendo, significa que a revolução socialista será adiada sine die, como efetivamente ocorreu no “Ocidente”.
Portanto, a mesma discussão sobre o caráter “leninista” ou não de nossas sociedades[22], longe de ser, como se pretende, um debate sobre que via de transição e que socialismo adotar, implica pronunciamentos sobre uma questão muito mais decisiva: a de saber se ainda é viável uma alternativa anticapitalista (e necessariamente anti-imperialista) na América Latina, ou se o máximo a que podemos aspirar é um “socialismo” a la Europa ocidental, só que sem “periferia” de onde extrair o excedente econômico para atenuar os efeitos da exploração.
Ponto com o qual nos cercamos de outra questão vital. Contra o que se enfatiza no “Ocidente”, Lênin não é unicamente o teórico de certo tipo de partido e de luta pelo poder; é ademais o teórico do capitalismo em sua fase imperialista, por mais que isso soe lugar comum. Contudo: pode haver na América Latina dependente um marxismo suscetível de dispensar seu complemento leninista? Parece-me que não, e menos ainda em um momento em que o imperialismo se mostra mais agressivo e explorador que nunca.
Marxismo e democracia
Está na ordem do dia afirmar que a questão central do marxismo passa hoje por sua definição frente à democracia. Asseveração que parece absolutamente correta com a única condição de fazer certas precisões breves destinadas a evitar deformações intencionais ou mal-entendidos.
Primeiro: a democracia é sempre uma resposta histórica e concreta destinada a conseguir o máximo bem-estar para o povo (ou ao menos conjunturalmente, seu menor mal), e não um conjunto de normas formais que devem aplicar-se independentemente de cada situação. Neste sentido, é evidente que num país agredido como a Nicarágua não se pode exigir-lhe, suponhamos, o levantamento de certas restrições aos direitos individuais, como as que se derivam do estado de emergência vigente. Colômbia viveu pelo menos meio século em estado de sítio, que é mais grave que o de emergência. Ameaçado por um punhado de facínoras, que não chegavam a cem, Alfonsín impôs a mesma medida na Argentina em 1985, sem que ninguém a achasse ultrajante.
Segundo: parece absolutamente idealista pensar que pode existir na atualidade uma democracia sem adjetivos. Este é, ademais, um problema que não depende dos marxistas: a democracia estadunidense, por exemplo, não vai deixar de ser burguesa e imperialista pelo fato de que algum teórico neomarxista decida libertá-la de tais qualificativos. Note-se, a este respeito, que as agressões que os Estados Unidos perpetuam pelo mundo se baseiam no consenso da maioria da nação, ademais de que, pela regra geral, seguem todos os procedimentos previstos pela Lei: com toda “liberdade” o Congresso vota a quantidade de fundos a se destinar a cada agressão.
Terceiro: a eleição de métodos democráticos ou não democráticos de luta (no sentido de seu apego ou não à lei vigente) não necessariamente depende do campo revolucionário. Além disso, identificar democracia com legalidade é exagero, para dizer o mínimo: na América Latina o normal é que a burguesia rompa sua própria legalidade e os setores populares sejam acusados de “subversivos” quando respondem a tais transgressões.
Quarto: é obrigação de o marxismo latinoamericano definir com profundidade o que se deve entender por democracia em países como os nossos, dada principalmente as aspirações e interesses dos setores populares e evitando que se utilize o conceito de democracia para mascarar as contradições de classe, iludir as definições frente ao imperialismo, ou afastar do horizonte toda possibilidade de uma transformação realmente anticapitalista.
Quinto e último: não se pode esquecer que a discussão atual no seio da esquerda latinoamericana não passa pela fronteira fictícia entre uma corrente supostamente democrática e outra que não a seria (a denominada “leninista”); a diferença real se dá entre uma tendência que trata de congelar as aspirações das massas fixada pela democracia burguesa, e outra que não nega a democracia mas que busca elevá-la a níveis revolucionários. Para esta última, o problema não é obviamente o da democracia seca, senão de como incorporar a maior quantidade de democracia para o povo no processo de transformação radical da realidade.
* Extraído de Agustín Cueva, La teoria marxista: categorías de base y problemas actuales, Planeta-Letraviva, 1987, p. 165-186.
Notas:
[1] Arnoldo Martínez Verdugo, Historia del comunismo en México, México, Enlace-Grijalbo, 1985.
[2] Manuel Caballero, “La Internacional Comunista y América Larina. La sección venezoelana”, Cuadernos de Pasado y Presente, No. 80, México, 1978.
[3] Michael Löwy, El marxismo en América Latina (de 1909 a nuestros días). Antología, México, Era, 1982.
[4] Crf. por exemplo: Dênis de Moraes e Francesco Viana, Prestes:lutas e autocríticas, Petrópolis, Vozes, 1982; ou: Moisés Vinhas, O Partidão: a luta por um partido de massas, 1922-1974, São Paulo, Hucitec, 1982.
[5] Crf. José Carlos Mariátegui, Obra política, México, Era, 1984, p. 219. Löwy mutila sem o menor respeito esse texto para dar a entender que Mariátegui era filotrotskista, sendo que Mariátegui inclusive compartilha abertamente a ideia da revolução em um só país. A citada mutilação pode ser encontrada em Löwy, El marxismo en América Latina (de 1909 a nuestros días), Antología, op. cit, p. 20.
[6] Crf. seu artigo “El marxismo latinoamericano”, em Norberto Bobbio e Nicola Matteucri: Diccionario de política, México, Siglo XXI, 1982, p. 987.
[7] Alguns me fizeram notar que transcorreram quinze anos entre a primeira edição dos 7 ensaios (1928) e a segunda (1943) e nove anos mais entre esta e a terceira (1952). É certo, mas isso corresponde ao ritmo editorial da época. Entre a primeira (1950) e a segunda edição (1959) do El laberinto de la soledad passaram nove anos e isso que já eram outros tempos, num país como o México e com um autor que está longe de ser um proscrito: Octavio Paz.
[8] “Prólogo”, em Obra política, op. cit., p. 13.
[9] Ernesto Laclau, Política e ideologia en la teoría marxista: capitalismo, fascismo, populismo, México, Siglo XXI, 2ª ed., 1980, p. 193 e ss.
[10] Ernesto Che Guevara, “Discurso en Punta del Este”, em Obra revolucionaria, México, Era, 1971, p. 421.
[11] “Cuba: ¿excepción histórica o vanguardia en la lucha anticolonialista?”, em Obra revolucionaria, op. cit., p. 517.
[12] Crf. Carlos Rafael Rodríguez, Cuba en el tránsito al socialismo (1959-1963), México, Siglo XXI, 1978.
[13] Inclusive dos PC, como se pode comprovar na leitura da Declaración de la Conferencia de los Partidos Comunistas de América Latina y del Caribe, Havana, Granma, resumo semanal, 22 de junho de 1975.
[14] Raymond Aron, Mémories, Paris, Julliard, 1985, especialmente a “Cinquième partie”.
[15] Quem quiser ter uma ideia da fúria antiterceiromundista, colorida de racismo, de importantes setores da intelectualidade europeia, Crf. Le Monde diplomatique em espanhol, ano VII, n. 77, maio de 1985, dossiê intitulado: “Una bestia a abatir: el tercermundismo”.
[16] Movimento ao Socialismo (N. do E.).
[17] Crf., entre outros, Mario Menéndez Rodríguez, El Salvador: una auténtica guerra civil, São Salvador, EDUCA, 1980, p. 159 e ss.; ou Marta Harnecker, Pueblos en armas, México, Universidade Autônoma de Guerrero, 1983, p. 133 e ss.
[18] Partido Socialista Unificado do México (N. do E.).
[19] Samuel Silva Gotay, “Las condiciones históricas y teóricas que hicieron posible la incorporación del materialismo histórico en el pensamiento cristiano de América Latina”, em Cristianismo y Sociedad, n. 84, México, 1985, p. 40.
[20] Gustavo Gutiérrez, “Teología y ciencias sociales”, em ibid., p. 56.
[21] O melhor texto teórico a este respeito é intitulado “En Nicaragua se juega el destino de América Latina”, discurso do comandante Bayardo Arce no Primeiro Congresso do Pensamento Anti-imperialista, Managua, 20 de novembro de 1985.
[22] Crf., por exemplo, “Introdución”, em Caminos de la democracia en América Larina, Madri, Fundação Pablo Iglesias, 1984.