Marxismo e Biologia

Por Maila Costa

“Conhecemos apenas uma única ciência, a ciência da história. A história pode ser examinada sob dois aspectos: a história da natureza e a história dos homens. Os dois aspectos, contudo, não são separáveis; enquanto existirem homens, a história da natureza e a história dos homens se condicionarão reciprocamente.”

Embora Marx não tenha deixado nenhuma contribuição teórica direta à biologia, a estrutura de análise e a tradição teórica de Engels, bem como os diálogos marxistas em geral, contribuíram imensamente para a biologia evolutiva, sendo que a literatura histórica e filosófica coloca isso de maneira bastante rigorosa. 

Mesmo que historiadores e filósofos diversos tenham tentado afastar a influência do marxismo da modelagem biológica, sem o acúmulo marxista, tais modelagens dificilmente teriam sido criadas justamente em função do contexto político e científico da época, que era bastante reducionista. Da tradição de Descartes, por exemplo, viria nossa tendência simplista de dar mais valor epistemológico ao objeto do que a suas inter-relações internas e externas. Muitas coisas que foram consideradas controversas por terem sido analisadas de maneira não linear, com influência direta do marxismo, hoje são consideradas triviais na biologia.

É verdade que em seus escritos Engels se mostra contaminado pelas teorias naturalistas da época, mas o próprio Darwin também enfrentou as mesmas limitações. Sem o conhecimento que possuímos atualmente sobre genética, é compreensível que se apoie no conceito da herança simples e direta dos caracteres biológicos, por exemplo.

As obras de Engels em que ele estuda a natureza – a Dialética da Natureza e o Anti-Dühring – são subestimadas em razão de algumas imprecisões científicas. Entretanto, elas ainda assim foram extremamente relevantes, sendo que embora contenham muitos erros, elas acertam no que é mais importante: o entendimento de que as determinações dos organismos humanos vêm de processos naturais e ambientais e da sua relação entre si e de que os organismos não são entes passivos nesse processo evolutivo, mas sim sujeito e objeto do mesmo.

Enquanto a sociobiologia e a psicologia evolutiva trabalham com o conceito de natureza humana, tentando atribuir comportamentos encontrados nas outras espécies aos humanos e usando uma argumentação circular, a biologia evolutiva rejeita completamente a ideia de comportamentos humanos inatos, ou seja, o comportamento humano não é evoluído de gerações passadas, embora os organismos humanos não estejam à parte do processo evolutivo.

Nesse sentido, o organismo constrói o processo evolutivo que constrói ele mesmo e os componentes causais que determinam este processo não fazem sentido separados do todo. Não há organismo sem ambiente assim como não há ambiente sem organismo Tanto a genética, quanto o ambiente estão sendo continuamente ressignificados e modificados um pelo outro, pelas relações que estabelecem entre si e pelos demais organismos.

Embora haja o senso comum de que a existência do mundo físico externo ao organismo continuaria a existir da mesma forma na ausência deste organismo e de que os ambientes existem sem e independentes dos organismos, os ambientes não são simples condições físicas, mas sim os espaços funcionais definidos pelas atividades dos próprios organismos.

Ao modificar o ambiente, o organismo modifica as próprias forças que atuam em si mesmo. O ser humano se estabelece com a relação com a natureza externa e interna. Desse modo, não há coisas fixas. Seja em relação à genética, à cultura ou ao ambiente é impossível falar de um organismo individual, pois ele só existe com todas as suas determinações no contexto de populações.

No que toca a generalidade das espécies, o contexto em que todas as espécies estão inseridas no nosso planeta é alterado continuamente pelas condições sociais, portanto é impossível assegurar que determinada característica seja uma vantagem ou uma desvantagem independente do contexto.

“Mas se a história humana deve ser concebida também como história da natureza (também através da história da ciência), como pode a dialética ser separada da natureza?”

Uma das grandes contribuições dos biólogos marxistas foi o enfrentamento ao determinismo biológico, que é convenientemente utilizado para legitimar a exploração e a desigualdade. Suas pesquisas sobre a inexistência de raças na espécie humana demonstraram que há mais variação genética dentro de populações das mesmas supostas raças do que comparando umas com as outras. Nesse sentido, é importante frisar que o racismo é um fato social, baseado na divisão social do trabalho e da riqueza e que o conceito de raça se reflete do colonialismo e não dos caracteres biológicos propriamente ditos.

Além disso, os biólogos evolutivos se empenharam a provar que características encontradas nos humanos que eram normalmente mensuradas como puramente genéticas, por exemplo a inteligência e a agressividade, têm muito mais relação com a realidade socioeconômica dos sujeitos do que com caracteres hereditários e, por tanto, estão distantes de serem determinadas biologicamente.

Ainda, no âmbito do sexo e do gênero, em meio a teorias radicais, seja em relação aos que entendem o sexo como determinante do comportamento humano e fator legítimo para a divisão social do trabalho, seja em relação aos que negam a  existência do gênero, como se ele fosse uma ficção, coube aos marxistas analisar tais questões honestamente, sem negar as diferenças sexuais presentes em cada organismo da natureza e considerando as condições materiais que constituíram a divisão sexual do trabalho e a construção do gênero, a fim de buscar uma unidade dialética e não um conflito entre biologia e construção social, ou a falsa dicotomia natureza x cultura.

O marxismo não diz respeito somente à concepção do mundo através da luta de classes, mas também ao entendimento ontológico do ser social e é necessário não esquecer e, no lugar disso, defender este pluralismo. Dada a complexidade da realidade, a análise filosófico-científica marxista se diferencia das demais. Mas justamente devido a sua complexidade, muitas vezes uma análise reducionista atende às necessidades científicas em determinados casos específicos, já que não há um método que se aplique a tudo.

Há motivos científicos e metodológicos para considerar e desconsiderar a biologia, mas sempre enfatizando contexto, variação e que organismos dependem da sua história. Esses elementos não são ruídos, mas sim a centralidade da análise. Isso não significa que não seja possível estudar o comportamento humano através da biologia, entretanto, os limites entre os seus componentes causais não são precisos e mensuráveis e o rigor científico acaba com qualquer determinismo. O próprio conhecimento total do genoma humano sequenciado não é, de maneira alguma, o conhecimento sobre o que é “ser humano”.

Por outro lado, jogar a biologia à escanteio pode levar a conclusões não acuradas, já que ela é um dos componentes constitutivos dos organismos e a nossa própria plasticidade é biologicamente recebida. Sendo assim, a biologia não necessita de novos leis e princípios explicativos, mas sim de uma abordagem integrada e dialética, que leve em consideração que para alcançar um entendimento mais rico e próximo do real é necessário compreender o maior número possível de determinações que envolvem o objeto concreto a ser analisado.

Este texto é uma adaptação do conteúdo disponível no podcast “Marxismo e Biologia” do Ontocast (https://anchor.fm/ontocast/episodes/05—Marxismo-e-Biologia-eb4bmk)

Referências:

A Ideologia Alemã – Marx e Engels

A Tripa Hélice – Richard Lewontin

Anti-Dühring e Dialética da Natureza – Friedrich Engels 

Concepção Dialética da História – Antonio Gramsci

Everything Flows – John Dupré e Kevin Nicholson 

Não em Nossos Genes: Ideologia, Biologia e Natureza Humana – Richard Lewontin, Steven Rose e Leon Kamin

Os Biólogos Dialéticos: Genética e Ideologia – Bekah Ward

The Dialectical Biologist – Richard Lewontin e Richard Levins 

The Disorder of Things – John Dupré

The Mirage of a Space Between Nature and Nurture – Evelyn Fox-Keller 

The Social Construction of Human Nature – Kevin Laland e Gillian Brown

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