Yves Lacoste, via Gallica, traduzido por Mario Matos
Falar novamente sobre os bombardeios nos diques no Vietnã do Norte (especialmente os ocorridos no verão de 1972) agora que a guerra da Indochina terminou – finalmente -, pode parecer um exercício ocioso. Porém, não é inútil retornar a esse assunto, principalmente se consideramos importante, politicamente, não apenas mostrar as relações que existem entre análise geográfica e estratégia militar e apresentar o problema da responsabilidade dos geógrafos, mas também as ligações entre certas representações geográficas e determinadas práticas ideológicas.
“A geografia serve – ainda e principalmente hoje – para fazer a guerra”
Por que a questão dos diques provoca um mal-estar na opinião pública?
É importante indagar sobre qual era, durante todos os anos nos quais a imprensa e a televisão procuraram evocar em nós, através da exibição de todas as formas de matar, de queimar, de atirar, de destruir, de aniquilar (e a visão que a mídia transmitia dos métodos mais destruidores e sofisticados impressionou bem menos o espectador do que um enforcamento ou qualquer outra forma mais tradicional de matar), a razão do bombardeio dos diques ter sido, sem dúvida, um dos métodos de guerra que mais perturbou a opinião pública nos Estados Unidos e em muitos outros países. Essas reações e perturbações, quase instintivas nas pessoas e amplamente retomadas pela imprensa, fizeram com que o problema dos diques fosse um dos temas mais delicados para o Pentágono e para os governantes dos Estados Unidos. Contudo, durante toda a guerra do Vietnã, o Pentágono jamais procurou dissimular – muito pelo contrário – o caráter assassino das armas e métodos de guerra que levava a cabo quotidianamente: como, por exemplo, a utilização sistemática do napalm, de diferentes tipos de armas “anti-pessoais”[1] e os gigantescos bombardeios “em tapete”[2].
A opinião pública que via o espetáculo pela televisão e pelo cinema do maior dilúvio de ferro e fogo nunca antes visto em toda a história, comportou-se como um público inerte. Esta relativa acomodação acabou assim que a imprensa escrita (em 1965, 1966 e 1967) relatou as informações relacionadas aos ataques aéreos sobre a rede de diques do Vietnã do Norte e os protestos do governo de Hanói repercutiram. Mas é só em 1972, após a retomada dos bombardeios sobre o Norte (suspensos desde 1968), que a questão dos diques assumiu uma proporção maior: com a multiplicação dos protestos norte – vietnamitas, grandes figuras internacionais, como o secretário geral das Nações Unidas, Kurt Waldheim, e até mesmo o papa expressaram preocupação. O assunto assumiu tamanha importância, que o presidente dos Estados Unidos, pessoalmente, considerou útil condenar (30 de junho de 1972) e deplorar publicamente que tais figuras pudessem ser tão facilmente enganadas pela “propaganda comunista”. O testemunho do embaixador da Suécia em Hanói, Jean-Christophe Oberg (1º de julho de 1972), negava as informações do Departamento de Estado que a imprensa americana reproduzia em bom tom, sustentando uma argumentação que dizia corresponder à realidade. Os jornais apenas traduziam a atitude da opinião pública americana (e agiam como partidários de Nixon e de sua política de guerra), que recebia com inquietude e indignação a ideia de que os bombardeios pudessem ser operados com tais objetivos: “os bombardeios sim, mas não sobre os diques…”.
Se tentarmos um raciocínio cínico, não veremos com precisão o motivo dessa opinião que aceitava que os homens, as mulheres, as crianças fossem queimadas vivas com napalm ou fuziladas com centenas de balas (de borracha para que o cirurgião não pudesse arrancá-las com ajuda do raio-x) se ressentisse com o afogamento que ameaçava essas mesmas pessoas. Morrer afogado é, apesar de tudo, um fim menos agressivo do que agonizar corroído pelo napalm ou pelo fósforo. Certamente, antes mesmo de ter uma ideia dos dados geográficos do problema (antes de compreender que os diques têm uma importância essencial, pois os rios, que naturalmente produzem inundações terríveis, correm exatamente numa planície formada sobre depósitos aluviais), a opinião pública sabia que se tratava do destino de centenas de milhares de homens e que, pela sua magnitude, essa hecatombe seria um problema. Na imprensa, as conseqüências do bombardeio dos diques eram, com freqüência, comparadas aos efeitos que tinha a explosão de muitas bombas atômicas sobre o delta do rio Vermelho. Mas era destruição em termos quantitativos que provocava o mal-estar da opinião? Os comentários sobre o uso de força nuclear tinham, de fato, conotações muito diferentes daqueles diziam respeito ao bombardeio dos diques, pois evocava o sedutor problema que era tudo o que se relacionava com a “natureza”. Nixon lembrou (27 de julho de 1972) sobre isso que os bombardeios sobre Dresden (onde houve mais vítimas que em Hirsohima), sobre Hamburgo e sobre Berlim, ordenados por Eisenhower durante a Segunda Guerra Mundial, fizeram centenas de milhares de vítimas, sem com isso provocar indisposição de consciência e que, portanto, ele, Nixon, afirmara que não bombardeou e não bombardeará os diques Qual motivo dessa clemência, dessa “moderação” de que Nixon se orgulhava (30 de julho de 1972)? Porque ele sabia muito bem que a opinião americana, que já havia oscilado sobre esse assunto todas as vezes foi evocado entre 1965 e 1967, não aceitaria “facilmente” tais bombardeios.
Função ideológica e função estratégica da geografia
A opinião pública americana tinha consciência que se tratava de uma nova forma de guerra? Ela havia, mesmo assim, aceitado os desfolhantes – que se tornaram um dos meios mais clássicos de um tipo de guerra que chamamos de “ecológica” – a partir do momento em que a mídia transformou a ecologia discurso da moda.
Podemos nos perguntar se o mal-estar e as reações manifestas, sobretudo em 1972, quanto ao bombardeio dos diques (o que para a maior parte da opinião pública norte-americana não passava de uma calúnia vil que se devia rejeitar), não deve ser considerado em relação a profundos motivos ideológicos: como se o agressivo combate no qual os homens estavam envolvidos devesse permanecer totalmente separado da luta que devem conduzir contra as forças da natureza. O mal-estar da opinião pública e o embaraço dos governantes teriam sido, sem dúvidas, ainda maiores, caso tufões, terremotos e erupções vulcânicas acometessem a população. Ainda recentemente, as manchetes do France-Soir (de 18 de junho de 1975) traduzem (e exploram) esse mal-estar da opinião pública quanto à “guerra meteorológica”, sobre a qual debatem os governantes das grandes potências. Por milênios, conscientemente ou inconscientemente, os homens vêem a marca de Deus e do Destino nos fenômenos naturais e mais ainda nas catástrofes naturais, e ainda hoje as manifestações voluntárias das “Forças da Natureza” aparecem confusamente como uma “feitiçaria”[3]. Na consciência das pessoas, os diques em questão são indissociáveis dos rios, de suas inundações, do clima, das montanhas de onde descem, da planície que atravessam, ou seja, um conjunto de ideias que faz sentido chamar de “geográficas”. O mal-estar provocado pelo assunto dos diques é, de qualquer modo, um revelador da função ideológica das representações geográficas. Isso é mais explícito nas religiões animistas, mas, ainda hoje, e mesmo nos discursos de cunho marxista, não é necessário muito esforço para encontrar uma certa ideia de Deus sob as descrições geográficas mais prosaicas. E os filósofos, inclusive aqueles que afirmam seu materialismo da forma mais convicta, e mesmo aqueles que atribuem como tarefa para si desmistificar o saber, são reservados ao fazer considerações sobre a geografia.
Evocar as razões ideológicas profundas do mal-estar da opinião pública quanto ao problema do bombardeio dos diques não tem apenas um interesse epistemológico: permite não somente compreender a amplitude do escândalo, mas também a estratégia e a tática escolhidas pelo Estado-Maior americano. O Pentágono se esforçou em várias ocasiões para obter um determinado resultado: a aniquilação, na planície do Rio Vermelho, de centenas de milhares de pessoas (talvez algo próximo de dois milhões de pessoas, de acordo com algumas avaliações), tudo com o máximo cuidado a fim de poder negar o caráter deliberado dessa tentativa e de tornar impossível a demonstração de que fora tentado de fato um genocídio.
Em agosto de 1972, pude demonstrar, a partir de um conjunto de raciocínios e análises que são especificamente geográficos, sem cair em contradição, a estratégia e a tática que o Estado-Maior americano havia aplicado contra os diques. Se é no âmbito da geografia que foi possível desmascarar o Pentágono, isso se deve ao fato de que sua estratégia e sua tática partiam essencialmente de uma análise geográfica. Foi minha tarefa reconstituir, a partir de conhecimentos eminentemente geográficos, o raciocínio elaborado por outros geógrafos (se “civis” ou militares, pouco importa) para o Pentágono.
Ao invés de apresentar, como foi o caso em agosto de 1972, as conclusões das observações que pude fazer sobre o terreno (em missão – oficial – para o governo da República Democrática do Vietnã, RDVN, como membro da Comissão internacional de investigação de crimes de guerra, que publicou meu relatório em outubro de 1972), penso que seja útil descrever as diferentes fases dessa investigação, a formulação de sua problemática e as dificuldades que ela precisaria superar. De fato, além da questão do bombardeio dos diques, que é essencialmente militar e que aparece doravante no passado, é importante mostrar a forma bem mais geral de como é possível discernir a partir de uma análise geográfica a estratégia (não apenas militar, mas também econômica, urbana…) que um adversário está colocando em ação, após tê-la elaborado mais ou menos secretamente.
As origens da questão dos diques
Para entender as diferentes etapas da investigação sobre o bombardeio dos diques é preciso primeiramente retraçar sua evolução a partir de 1965. Com efeito, é a partir da primavera de 1965 que o governo da República Democrática do Vietnã começou a considerar os numerosos ataques aéreos sobre a rede de diques e das obras hidráulicas (barragens, eclusas, canais). No ano de 1965, o governo de Hanói contabilizou mais de quinhentos desses ataques, quase mil no ano de 1966, e denunciou vigorosamente essas agressões que poderiam ter consequências catastróficas. Um relatório foi produzido pelo ministério de assuntos hidráulicos para a Comissão de investigação de crimes de guerra da RDVN.
As autoridades americanas negaram. Nos depoimentos que muitas testemunhas fizeram no Tribunal Russell, em Estocolmo, ao retornar do Vietnã do Norte, em novembro de 1966, muitos se referiam aos bombardeios de diques e obra hidráulicas, como no relatório do doutor Behar e sobretudo no do professor japonês Tsetsure Tsushima[4], que se alinha com os documentos produzidos pelo governo da RDVN.
Em 1967, o professor Jean Dresch, diretor do Instituto de geografia de Paris, recebeu de M. Maï Van Bo, então delegado geral da RDVN na França, uma documentação sobre os bombardeios que ele me comunicou (pois não poderia tratar sozinho do mesmo) dizendo: “Veja o que você poder fazer!”. Não que eu fosse especialista em países do sudeste asiático, nem que meu papel fosse notável na campanha contra a guerra do Vietnã. Porém, eu já tinha feito minhas primeiras pesquisas como geógrafo estudando a geomorfologia da planície de Rharb no Marrocos, cujo relevo se assemelhava ao das planícies do Vietnã do Norte: em ambos, os rios correm sobre elevações aluviais acima do nível da planície. A semelhança terminava aí, pois na planície de Rharb dificilmente se encontrava diques, dado que é pouco povoada. Enquanto geógrafo parecia evidente que a importância primordial dos diques para o povo vietnamita estava no fato de que os rios, e principalmente os tributários do rio Vermelho na região do delta, corriam aproximadamente entre cinco e dez metros acima de uma planície densamente povoada.
Contudo, os diferentes relatórios (franceses ou vietnamitas) publicados até então sobre o problema dos bombardeios dos diques não mencionavam essas elevações aluviais, embora seja um dado geográfico e, portanto, essencialmente estratégico. Além disso, nesses relatórios, os problemas dos diques, que na região do delta envolvem e acompanham as margens do rio para evitar o derramamento e as enchentes no terreno imediatamente abaixo, foram confundidos com o problema dos canais e com os diques das barragens construídas fora da planície, nas regiões das colinas ou das montanhas, que por sua vez servem para represar a água usada na irrigação durante a estação seca. Esse conjunto diverso de alvos bombardeados, tendo em comum estarem ligados à infra-estrutura hidráulica, mas situados em condições geográficas muito distintas, acabou por ocultar ainda mais a estratégia da Força aérea dos Estados Unidos.
A documentação entregue a mim por Jean Dresch era abundante, mas continha muitos inconvenientes: ela indicava muitas informações relativas a datas (e até mesmo aos horários) das incursões feitas em muitas ações, mas se tratava de exemplos julgados particularmente excepcionais (bombardeios de diques, seguidos de incursões sobre as massas de trabalhadores reunidos para reparar os danos às pressas). Era especialmente difícil identificar em um mapa os pontos que foram bombardeados. Na posição de geógrafo, eu não poderia inferir muitas coisas dessa documentação tão fragmentária, e que era dedicada em particular a fornecer dados precisos sobre a localização dos fatos no momento em que ocorriam, além de indicar o lugar em que ocorriam.
Entretanto, a precisão das informações relacionadas à cronologia dos bombardeios me permitiu fazer duas constatações: a primeira (que eu não indiquei em meu relatório contido nos anexos da publicação do Tribunal Russell) era que uma grande parte dos bombardeios sobre os diques foram realizados durante a primavera e no início do verão, ou seja, antes da estação das águas, como se o Estado-Maior americano evitasse ações diretas no momento das inundações, a fim de melhor esconder sua responsabilidade. Se os diques, danificados pelas bombas, rompessem durante uma forte inundação, seria melhor para o Pentágono se isso parecesse não ter relação direta de causa e efeito com o bombardeio; era necessário que os ataques fossem operados antes, mas não tão antes, para que os trabalhos para reparar os diques não tivessem tempo suficiente de ser concluídos. A estratégia diante dos diques não era direta.
A segunda constatação permitiu uma conclusão diferente: muitos ataques nos diques situados na costa foram executados imediatamente antes da chegada de um tufão, isso se repetiu em quatorze oportunidades, na região de Haiphong, de 27 a 31 de julho de 1966, no momento em que os ventos do tufão Ora empurrava a água do mar para o interior, o que poderia inundar os arrozais e destruir a produção agrícola. Esse caso de sincronia entre a chegada do tufão e o bombardeio (existem outros exemplos desse tipo) permitiu provar que centenas de ataques sobre os diques foram uma estratégia deliberada, mas esse caso ainda não era suficiente para demonstrar o empreendimento de destruição por completo.
A grande ofensiva sobre os diques no verão de 1972
De 1968 a 1971, a questão dos diques não foi um problema de destaque devido a suspensão dos bombardeios americanos sobre grande parte do Vietnã do Norte (com exceção da 4ª zona). Mas, no mês de abril de 1972, com a retomada dos bombardeios, o assunto voltou ao primeiro plano com uma gravidade maior que antes. Nos meses de abril, maio e junho os ataques sobre os diques foram mais numerosos e mais graves que no mesmo período dos anos de 1965 a 1967. Em junho, publiquei no Le Monde um artigo no qual explicava, de um lado, que na planície do Vietnã do Norte, os rios correm sobre as elevações aluviais que estão acima do nível da planície e, por outro, que esses diques, uma proteção vital para milhões de pessoas, poderiam se romper durante uma inundação mesmo sem terem sido abertos, mas devido a fissuras provocadas por explosões de bombas lançadas nas duas imediações. Concluí da seguinte forma: “É preciso divulgar desde agora que, se os diques se romperem nesse verão, a responsabilidade desse genocídio deve pesar sobre o presidente Nixon, da mesma forma que se ele tivesse autorizado o lançamento de uma bomba atômica”. Como me diria um tempo depois, em Hanói, o primeiro ministro Pham Van Dong, esse artigo veio a cumprir um papel enorme na campanha contra o bombardeio dos diques; ele foi reproduzido amplamente na imprensa americana, embora não contivesse nenhuma informação sensacionalista; o artigo destacava tão somente esse dado geográfico essencial: a existência de elevações aluviais, mas que não havia sido apresentado até então, mesmo sendo um dado estratégico fundamental.
No meio do mês de julho, recebi, para minha surpresa, um telegrama com um convite, feito por sugestão do governo de Hanói, para integrar uma “Comissão de investigação sobre crimes de guerra”, organismo coordenado principalmente por suecos e presidido pelo grande economista Gunnar Myrdal. Pouco tempo depois, graças à extrema diligência das autoridades soviéticas, eu fui para Hanói em uma delegação composta por sete membros (o americano Ramsay Clark, antigo ministro de Johnson, e o irlandês Sean MacBride, presidente da Anistia Internacional, eram as figuras mais conhecidas), cada um se dedicando, em certa medida, a preocupações particulares. Quanto aos diques, que eram a minha ocupação prioritária (que eu dividi com o engenheiro Daniel Mandelbaum), o perigo se tornou uma grande pressão, pois os ataques americanos, longe de diminuir, como em 1965, 1966 e 1967, na proximidade da estação das chuvas e das grandes inundações, foram intensificados e o pior poderia acontecer muito em breve.
Hipótese de pesquisa a partir da produção de um mapa
Era preciso então estabelecer as provas que indicassem que os bombardeios dos diques compunham um plano deliberado com o propósito de criar uma catástrofe. Era evidente, do meu ponto de vista, que constatar que um dique havia sido efetivamente bombardeado num determinado lugar não constituía prova suficiente para a opinião pública americana, porque Nixon e o Pentágono insistiam em dizer (29 de julho de 1972) que esses ataques não tinham por alvo os diques, mas faziam parte de um objetivo militar específico. O semanário Time não publicou uma grande fotografia aérea, que apesar de não ter localização, mostrava um comboio circulando sobre as rotas construídas sobre os grandes diques? Isso pareceu legitimar a tese defendida pelo Pentágono.
Minha hipótese de trabalho era a seguinte: sem dúvida, a aviação americana não tem a possibilidade de atacar todos os diques (de fato, tendo em vista o mal-estar da opinião pública, o Pentágono não poderia arriscar ter que assumir a responsabilidade de uma operação massiva, dado que esse era o momento da enorme batalha de Quang Tri, quando a aviação americana efetuava um número recorde de incursões, e portanto não seria fácil aumentar o número de ataques sobre os diques, pois não havia nem pilotos nem aeronaves disponíveis); o Estado-Maior dos Estados Unidos deve então escolher então bombardear a rede de diques em um determinado número de lugares, aqueles em que a destruição pode desencadear os efeitos mais graves para a população no momento das inundações. Esses lugares estratégicos deveriam ser escolhidos em função de critérios; mas eu sabia, após ler atentamente a obra de Pierre Gourou Os camponeses do delta de Tonquim (1937), que os diques formam uma rede bem estruturada e hierarquizada e que o delta do rio Vermelho não é um espaço uniforme, mas, ao contrário, muito diferenciado, tanto do ponto de vista das formas do relevo, quanto do povoamento. Eu poderia então pensar que, se os ataques aos diques demonstram um plano deliberado e sistemático, esse plano deveria partir da análise de um mapa, de modo a estabelecer os pontos precisos a destruir, considerando a estrutura da rede de diques e a configuração geográfica do delta. Era preciso então que eu reconstituísse esse plano para poder demonstrar sua existência. Essa reconstituição só poderia ser feita através de certos indicadores, como a localização precisa dos pontos de bombardeio sobre os diques. Era necessário produzir um mapa com esses pontos o mais rápido possível.
Esse mapa apenas poderia ser desenhado pelo ministério dos assuntos hidráulicos após um acordo com as autoridades da RDVN. Contudo, a produção de um mapeamento durante uma guerra tem inúmeros problemas: é preciso ter em conta as preocupações militares que não gostariam de divulgar certos documentos. Eu precisaria convencer meus interlocutores que já tinham a tendência de afirmar que todos os diques foram atacados e que era de responsabilidade dessa comissão de investigação um testemunho suplementar sobre qualquer observação mais específica. O êxito de minha abordagem estava sobre o fato de que contava com um militar de grande experiência como interlocutor, figura de qualidades eminentes, o coronel Há Van Lau, que aceitara minha hipótese de trabalho e facilitou seu desenvolvimento.
Mas a confecção desse mapa indicando os pontos bombardeados no delta do rio Vermelho demandaria dias de trabalho aos engenheiros hidráulicos, que precisariam reunir informações precisas; estes já se encontravam nesses pontos bombardeados, onde ficavam dia e noite, a fim de coordenar os reparos após cada bombardeio nas obras hidráulicas, em condições muito arriscadas e perigosas, porque a aviação americana atacava regularmente com muitas armas anti-pessoais as áreas dos diques bombardeados para tentar retardar os trabalhos de terraplanagem; além disso, um grande número de bombas de efeito retardado foi lançado e permaneceram soterradas no solo, onde explodiam horas, dias ou até semanas depois; as bombas de estilhaços faziam muitas vítimas, principalmente mulheres, que eram majoritariamente as responsáveis pelo transporte terrestre, usando as cestas duplas suspensas por uma vara.
Todo dia eu pedia por meu mapa, sabendo do trabalho extra que ele acarretava para os outros, mas ao mesmo tempo era um elemento essencial. Aguardando sua produção, pude fazer um certo número de observações em campo e reunir informações indispensáveis. Com qualquer membro da comissão de investigação eu poderia ir aos setores onde os diques eram bombardeados: no distrito de Nam-Sach, no sul da província de Thai-Binh e na província de Nam-Ha.
Análise em pequena escala[5] dos pontos de bombardeio no delta
Enfim, podendo dispor do mapa produzido pelos engenheiros hidráulicos, foi possível constatar que ela confirmava minha hipótese. Com efeito, no mapa os pontos de bombardeio sobre os diques não estavam disseminados de modo uniforme, mas se dividiam bastante considerando a diferenciação geográfica no interior do delta do rio Vermelho.
De 16 de abril a 31 de julho de 1972, os diques foram atacados em cinqüenta e oito pontos (cada pondo poderia corresponder a uma seção de dique de umas poucas centenas de metros de comprimento, e podia ter recebido centenas de bombas).
Examinando o mapa, uma primeira constatação: quase todos os pontos (54 de 58) estavam na parte oriental do delta, do distrito de Nam-Sach, ao norte, a província de Tai-Binh, no centro, até as regiões de Nam-Há, Nam-Dinh e Ninh-Binh, ao sul. Quatro pontos de bombardeios sobre as obras hidráulicas estavam fora desse espaço: dois próximos a Hanói e dois na eclusa de Phuly no rio Day.
Era preciso compreender porque, de acordo com o plano elaborado pelo Estado-Maior americano, os bombardeios estavam concentrados em apenas uma parte do delta. A descrição clássica de Pierre Gourou, quarenta e cinco anos antes, permitiu entender esse problema (note que sua tese fora traduzida pelos japoneses em 1942, depois pelos americanos nos anos cinqüenta, o que mostra o interesse dos Estados-Maiores nessa pesquisa).
Pierre Gourou divide esquematicamente o delta em duas partes bastante diferentes: à oeste, no alto delta, os rios que vêm dos vales montanhosos carregando grande quantidade de material aluvial, formando, antes do sistema de diques, um grande número de depósitos aluviais, pois os rios não raramente mudavam seus cursos exatamente devido a essa deposição de aluvião. Por outro lado, na parte leste do delta, no baixo delta, os rios transportam uma quantidade menor de aluvião (pois nessa parte os aluviões se depositam) e fluem sobre um terreno menos alto. Esses rios se separam no seu caminho para o mar, formando algo semelhante às raias de uma roda. Assim, grandes extensas superfícies de inundação se prolongam entre os bancos de aluvião, como mostra Pierre Gourou.
Alto (oeste) e baixo (leste) delta:
Essas diferenças de configuração entre o alto e o baixo delta têm importantes conseqüências para a localização topográfica dos vilarejos: no oeste, no alto delta, a maioria dos vilarejos é construída acima das áreas de inundação, sobre os depósitos aluvionais, que são, como veremos adiante, numerosos e emaranhados. No leste, região do baixo delta, a maioria dos vilarejos se encontra situada abaixo do nível dos rios, exatamente nas áreas que ficariam submersas em caso de rompimento dos diques.
É justamente na parte oriental do delta, onde está a maior parte dos vilarejos suscetíveis de inundação, onde ocorreu quase todo o bombardeio. Nessa primeira constatação que buscava provar a existência de um plano sistemático de destruição dos diques em áreas onde as conseqüências seriam mais graves, a análise atenta permitiu uma segunda conclusão que reforçava a hipótese. Com efeito, no leste do delta, os diques não eram atacados uniformemente: os diques situados à montante de Haiphong, à leste do distrito de Nam-Sach, não foram bombardeados entre abril e julho de 1972. Contudo, esses diques se encontravam em uma região com muitos alvos, como rodoviários, industriais e militares que eram já bastante bombardeados.
O exame do mapa e a tese de Gourou permitiram compreender essa exceção: de fato, nessa parte da planície, os rios não correm sobre as elevações aluviais (grande parte do aluvião foi depositado à montante) e começaram a ficar ligeiramente abaixo do nível médio da planície. Nessa área, a ruptura dos diques não ameaçaria os vilarejos, dado que não estão abaixo do nível dos rios, e por isso os bombardeios não foram feitos sobre esses diques.
Os diques que margeiam esses rios à montante de Haiphong têm por principais funções reduzir a propagação do leito maior e sobretudo conter as marés nas tempestades, quando os ventos pressionam as águas do mar para o interior. Como esses tufões ocorrem geralmente no outono, o bombardeio dos diques nesse setor no verão não tinha interesse.
Assim, o mapa dos pontos de bombardeio sobre os diques no delta revelava enormemente o plano do Estado-Maior americano. Se, como queria o Pentágono, os diques eram danificados involuntariamente devido a sua proximidade de alvos militares, o mapa indicava o contrário: é na região de Hanói e de Haiphong onde os diques eram mais danificados. Mas esse não era definitivamente o caso: a foto aérea publicada pelos jornais americanos indicando a passagem, no topo de um grande dique, de uma rota repleta de comboios militares é a mesma do único bombardeio de diques em Hanói. Essa foto corresponde à exceção e não à regra.
Os diques foram atacados quase que exclusivamente na parte oriental do delta, precisamente onde está a maioria dos vilarejos abaixo das elevações aluviais, onde a maioria dos homens pereceria em caso de ruptura dos diques. Na parte ocidental do delta, a parte alta, os diques não foram bombardeados (com apenas uma exceção), porque nessa área os vilarejos estão construídos sobre os bancos de depósitos aluviais e, portanto, ao abrigo das inundações.
Desmascarado pela análise do mapa em pequena escala, a estratégia do Pentágono foi demonstrada, no nível de sua aplicação tática, com o uso de grande escala em certos setores e por observações em campo.
Investigação no distrito de Nam-Sach[6]
Nam-Sach é inteiramente composta por diques e forma, de fato, quase que uma ilha cercada por uma rede hidráulica complexa. Ao norte se encontram muitos rios, Thuong, Luc Nam, Cau e Duong, que num determinado ponto confluem, dando origem ao rio Tai-Binh. Este, pouco depois, se divide em dois, Tai-Binh e Kinh-Thay, que se estende por todo o distrito. Os diques do distrito de Nam-Sach foram danificados em seis pontos diferentes.
-Ao sul, os diques foram danificados em 10 e 24 de maio de 1972, próximo dos vilarejos de Aiqoc e Nam-Dong; esses dois pontos se situam próximos à grande rodovia Hanoi-Haiphong, e podemos, rigorosamente, considerar que os diques talvez não fossem o alvo visado pelos ataques (mais de cento e cinqüenta bombas).
-Os diques foram danificados próximo aos vilarejos de Nocti e de Minh-Tank em 9 de julho de 1972. Nocti está numa depressão côncava de um meandro, ou seja, num ponto onde a pressão da corrente do rio será mais forte durante as inundações. Em Minh-Tanh vinte e quatro bombas destruíram o dique de uma seção de trezentos metros de comprimento (foi preciso deslocar mais de mil metros cúbicos de terra para fazer o reparo). A escolha do ataque nesse ponto se explica pelo fato de que aí os trabalhos de retificação dos diques são especialmente mais lentos, dado que seus arredores são formados por extensões de pântano muito baixas, onde dificilmente se acha outra coisa a não ser terra encharcada, imprópria para fazer compactação.
-Os diques do distrito de Nam-Sach foram danificados principalmente na parte norte, próximo aos vilarejos de Hiep-Cat e de Nam-Hung, em 9 de julho de 11 de julho de 1972. Os motivos da escolha desses pontos pela aviação americana são evidentes, pois se trata de onde as águas dos rios que irão confluir chegam quase que perpendicularmente nos diques, exercendo assim uma forte pressão. Em caso de uma ruptura nesse ponto, a corrente se tornará apenas uma, destruindo tudo à sua frente e submergindo todo o distrito e as cem mil pessoas que nele vivem.
Vale destacar que o dique situado próximo ao vilarejo de Nam-Hung já havia sido atacado devido a importância que executa no sistema hidráulico, em julho de 1967. Esse não é o único exemplo provando que os ataques perpetrados sobre a rede de diques ocorrem nos pontos bombardeados entre 1965 e 1968.
Visitei os diques de Nam-Hung e de Hiep-Cat em 9 de agosto de 1972. Pude constatar o grande número de crateras nos dois lados do dique, que fora reparado. Durante minha presença nesses lugares, fui testemunha (o doutor Aarts, de Amsterdã, também foi) de uma explosão de uma bomba de efeito retardado (9 de agosto de 1972 às 10 horas e 15 minutos) que estava próxima do vilarejo de La-Doi, a meio caminho entre Hiep-Cat e Nam-Hung. Essa bomba era um dos seis dispositivos de efeito retardado lançados em 11 de julho: três explodiram durante o mês de julho, um em 9 de agosto, os outros dois não haviam explodido até essa data.
Investigação no sul da província de Thai-Binh[7]
Essa região se encontra limitada ao sul pelo curso do rio Vermelho e, ao norte, por um de seus tributários, o rio Traly. Esses dois cursos d’água, que correm ambos sobre depósitos aluviais, delimitam uma espécie de calha longa que se abre sentido leste para o mar. Colocar em questão essa calha, onde vivem hoje mais de cem mil pessoas, foi possível quando os diques foram construídos ao longo do rio Vermelho, do rio Traly e da costa; esses diques costeiros evitam a invasão das águas marinhas. Mas é necessário, na maré baixa, drenar as águas da chuva que caem nessa grande calha, e isso cabe à eclusa de Lan.
Os bombardeios visavam os pontos mais essenciais dessa complexa organização hidráulica e, em primeiro lugar, a eclusa de Lan. Entre 24 de maio de 1972 e 6 de agosto, ela foi atacada doze vezes, e isso mesmo após sua destruição logo na segunda incursão. A implacabilidade da força aérea dos Estados Unidos sobre essa obra já destruída, e que se situava distante de outros alvos, se justifica pela preocupação em tornar inviável seu reparo ou de se construir um sistema de bombeamento. Assim, as águas, não podendo escorrer para o mar, ficam acumuladas nos arrozais onde uma parte significativa da colheita é perdida.
Visitamos a eclusa de Lan em 3 de agosto, e nós pudemos constatar que ela estava longe de qualquer outro alvo em potencial, longe dos lugares habitados, entre os vários mangues costeiros e os grandes arrozais. Essa eclusa, que cumpre uma função essencial, já havia sido atacada em 1968. Nós teríamos enfim uma ideia do caráter sistemático e global da ação dirigida contra o sistema hidráulico do Vietnã do Norte quando acabamos por saber que a usina Nha-May-Gho-Khi (próxima a Hanói), que fornecia o material necessário para o reparo de eclusas e outras obras hidráulicas, foi destruída em 5 de outubro por um bombardeio particularmente intenso e preciso.
Além disso, os bombardeios ocorreram sobre os grandes diques do rio Traly, atingidos em quatro pontos, e sobre os diques do rio Vermelho, atingidos em três pontos diferentes.
Pudemos visitar em 3 de agosto, no rio Traly, o setor de diques atacado em 21 de julho, próximo ao vilarejo de Vu-Dong (distrito de Kien-Xong): onze bombas criaram crateras próximas aos diques (menos de cinqüenta metros), que resultaram na formação graves fissuras numa seção de duzentos metros do dique. Esse bombardeio que alcançou moradias rurais nas imediações dos diques causou a morte de nove pessoas e deixou outros nove feridos. No momento de nossa visita, o essencial dos danos havia sido reparado, mas as seções dos diques que precisaram ser retificadas eram perceptíveis.
Em 4 de agosto de 1972, foi possível observar as avarias provocadas nos diques do rio Vermelho, próximo ao vilarejo de Vu-Van (distrito de Vu-Thu). No ataque de 31 de julho, vinte bombas foram lançadas sobre dez pontos localizados, com aproximadamente quinhentos metros entre um e outro: o primeiro, próximo a uma escola que foi parcialmente destruída (o diretor foi morto), o segundo, nas proximidades de uma colônia de leprosos, a segunda mais importante da RDVN. Mil e cem leprosos estavam na colônia no momento do bombardeio. Cinco morreram e dez ficaram feridos. A edificação dessa colônia, antiga e forte, com quatro grandes edifícios rodeados por três grandes igrejas, é notável, e podemos pensar que o ataque ao dique nesse ponto preciso indica a preocupação de provocar dificuldades durante os trabalhos de reparo. A população vietnamita teme uma contaminação de lepra.
As bombas visavam particularmente os diques nas partes côncavas dos meandros, ou seja, nos pontos onde ocorrem as maiores pressões d’água nos momentos de inundação. Cabe dizer que em outros dois pontos bombas de efeito retardado foram usadas (como em vários outros lugares). Quanto as quatorze bombas lançadas em 14 de julho sobre o dique do rio Vermelho, próximo do vilarejo de Tan-Lap, treze delas explodiram em intervalos diferentes (algumas seis horas depois, outras entre vinte horas e um dia).
Assim, a “operação” na parte sul da província de Thai-Binh pode ser resumida da seguinte forma: de um lado, provocar danos nos diques, em pontos tão sensíveis que, apesar dos reparos, podem se romper no momento das inundações (é realmente muito difícil fazer perfeitamente a compactação usando uma terra que já contém muita água em razão das chuvas de verão; os pontos retificados nos diques se tornam mais frágeis); por outro, interromper o funcionamento da eclusa para impedir a evacuação das águas para o mar. Uma parte dos arrozais já está inundada e a subsistência de seiscentas mil pessoas está perdida.
Notas:
[1] Armas e quaisquer tipos de engenhos utilizados para causar danos em pessoas e não em veículos, aeronaves, centro de abastecimento, etc.
[2] “O bombardeio de tapetes, também conhecido como bombardeio de saturação, é um bombardeio de grandes áreas feito de maneira progressiva para causar danos em todas as partes de uma área selecionada de terra. A frase evoca a imagem de explosões cobrindo completamente uma área, da mesma maneira que um tapete cobre o chão” (https://en.wikipedia.org/wiki/Carpet_bombing).
[3] O grifo da tradução (Nota do Tradutor). A ideia de Lacoste é identificar a condição de sujeito que se atribui à natureza como forma de fazer crer que certas populações são “naturalmente” destinadas à condenação e, por conseqüência, “naturalizar”suas condições objetivas.
[4] Cf. Tribunal Russell, Rapport, Gallimard, 1967 (N.A)
[5] Vale lembrar, mesmo para os geógrafos, que caem com frequência nessa confusão, que quando dizemos que a escala de mapa é “pequena” isso significa que ela representa um espaço maior, e que quando o mapa é “em grande escala” a superfície representada é restrita e mais detalhada.
[6] Texto de meu relatório à Comissão internacional de investigação sobre os crimes de guerra (Estocolmo, 1972) (N.A.).
[7] Texto de meu relatório para a Comissão de investigação (N.A.).