Abordagem clínica do sujeito em Fanon

Por Olivier Douville, via Revista Vie Sociale et traitements, traduzido por Alessandra Canappele

A pergunta que este artigo se propõe a ilustrar, em relação às ressonâncias atuais que a obra e a herança de Frantz Fanon adquirem, é a seguinte: “como a prática clínica pode ser iluminada pelos pacientes cuja história, a sua própria ou aquela de seus antepassados, é marcada por violências maciças de assassinato da humanidade quebrando os fios das gerações que a compõem? »

Não vou abordar esta questão como um especialista da história pessoal da Fanon. Outros são biógrafos e historiadores muito mais legítimos, principalmente Alice Cherki com seu livro publicado em 2000 pela Seuil Frantz Fanon portrait. Particularmente eu tentarei identificar a atualidade que as teses psiquiátricas e antropológicas de Fanon tem na prática clínica de hoje, quando esta prática é dirigida aos descendentes dos contemporâneos das lutas de independência e das violências ligadas ao colonialismo, no seu conjunto. Transporei, a nível clínico, a intuição expressa por Dacy Elo que, em 1986, reuniu sob o título “Atualidade de F. Fanon” os anais de um colóquio realizado em Brazzaville.

Não cabe ao clínico produzir um saber universitário indo interpretar ou reduzir os outros saberes que constroem as outras ciências humanas, mas, de seu lugar e a partir de seu ato clínico, compreender a necessidade cultural e subjetiva de autenticar que a perda real de uma herança humana e simbólica efetivamente se produziu como resultado das situações escravagistas e coloniais. Assim não evitamos introduzir em nossa rede de conceptualizações a noção de identidade afetada pela história. Frantz Fanon foi, nestes pontos, um pioneiro cuja obra estava essencialmente preocupado com as incidências psicológicas da alienação colonial. Na medida em que Fanon refletia – e militava também – para tirar o sujeito desta alienação, sua obra não é senão mais do que atual.

Frantz Fanon (Fort-de-France, 1925 – Washington, 1961), psiquiatra martinicano (Antilhas Francesas), morto argelino e enterrado de acordo com seus desejos em terra argelina, foi o responsável do hospital psiquiátrico de Blida Joinville, na Argélia. Ele também foi, é mais conhecido, um militante político na luta contra a colonização, na Argélia primeiro, depois também na África subsahariana, com, notadamente, o atual presidente argelino Bouteflika, com quem ele trabalhou para a Argélia em Mali, em conexão com Mobido Keita. Fanon foi um homem tão engajado que podemos ver só este aspecto de sua pessoa e de sua carreira. E esquecer que ele também foi um clínico excepcional, um pioneiro que tentou teorizar isso com o que ele, como psiquiatra, trabalhava: as incidências subjetivas das situações coloniais tanto sobre os colonizados quanto sobre os colonizadores.

Em 1953, na Argélia, ele encontra os antagonismos entre minorias e, sobretudo, o racismo comum dos europeus; ele então se dá conta das consequências subjetivas causadas pelo esmagamento político e cultural dos argelinos colonizados. Ele entra para a FLN na primavera de 1957, depois de ter denunciado e teorizado a violência física e cultural perpetrada pelo colonialismo. Ele assumirá funções de informação e representação muito importantes junto ao Governo provisório da República Argelina (ele será embaixador do G.P.R.A em Accra, no Gana, e acariciava a esperança de unificar uma forma de resistência africana à colonização).

Em sua vida, dois textos, Peau noire masques blancs (1957) e Les damnés de la terre (1961), se impõem como os dois principais marcos de um pensamento que leva em conta a dimensão atual, política e estratégica do chamado “Terceiro Mundo”. Fanon experimentou o racismo, a esperança fraterna, a traição, a tensão histórica, a revolução. Seu pensamento em movimento não podia jamais se reconhecer na descrição de um mundo fechado no seio do qual cada oposição, como essa do branco e do preto, então do colonizador e do colonizado, devia ser tomada como essencial, mesmo eterna. Seu sentido do trágico nunca o levou a sentimentos de fatalismo, nem a nostalgias crepusculares.

A repressão contra a luta pela independência aumenta. Expulso da Argélia, Fanon deixa Argel pela França e Clermont de l’Oise. A federação FLN na França e Francis Jeanson organizam sua partida para Tunis. É então pela África que ele parte como embaixador itinerante para a Argélia em guerra. No final de dezembro de 1960, Fanon está doente: uma leucemia mielóide, doença com um prognóstico fatal na época. Os argelinos o enviam a Moscou para tratamento. A atividade de Fanon ainda é bastante intensa. Ele continua suas atividades políticas, se aproxima do exército de fronteira, dá cursos aos oficiais da A.L.N. e escreve seu último livro, Les damnés de la terre (Os condenados da terra). Ele concorda em ir para os Estados Unidos para se submeter a novos tratamentos. Morto em Washington, D.C., ele é enterrado em terra argelina ao final de uma cerimônia sóbria, recolhida e digna.

ATUALIDADES

Para os clínicos, psicólogos, psiquiatras, que se voltaram para a prática psicanalítica, ler Fanon traz ainda alguma coisa essencial. Durante muito tempo o silêncio se fez – e ele ainda hoje cala – sobre as violências da história colonial e sobre as consequências psíquicas, transmitidas de geração em geração, dos traumas e do desmantelamento das referências e das genealogias, praticadas e sofridas durante as páginas mais sombrias desta história colonial – em particular, a guerra argelina. Hoje, na noite de 23 de fevereiro de 2005, o Parlamento desertificado de uma França de direita, descomplexida e ofensiva, vota uma lei que preconiza a apologia do período colonial nos manuais escolares [2]. Os poucos deputados presentes, por ideologia ou por grande cansaço, cederam calma e totalmente à pressão dos partidários da “nostalgérie“, como a ADIMAD (Association amicale pour la défense des intérêts moraux et matériels des anciens détenus et exilés politiques de l’Algérie française) – a associação protetora dos veteranos do OAS [3]. Ao votar a favor do artigo 4 da lei sobre os repatriados, estes deputados deram recomendações específicas à Educação Nacional: “Os programas de pesquisa universitária dão à história da presença francesa no exterior, particularmente no Norte da África, o lugar que ela merece, e dão à história e aos sacrifícios dos combatentes do exército francês desses territórios o lugar de destaque a que eles têm direito.” Raramente a burrice deu tanto uma mão à perversão. Quem poderá então falar dos massacres em Sétif, que, em 8 de maio de 1945, segundo o capitão da gendarmaria Tubert, resultaram em quase 15.000 mortos, com a força aérea e a marinha bombardeando cidades? Quem poderá evocar as repressões assassinas dos tumultos em Madagascar, dos quais até mesmo um progressista como Althusser declarará a seu amigo Gerard Althabe que, na medida em que estes insurgentes ainda não eram proletários, estes tumultos não contavam para a história revolucionária [4]? Quem, então, poderá falar aos estudantes sobre a tortura na Argélia, ou ainda sobre aquelas dezenas de soldados africanos, todos franceses, todos nossos compatriotas, massacrados no campo de Thiaroye, no Senegal, pelo exército francês, quando eles reivindicavam seus devidos [5]! Eu sei que eu também escrevo este artigo nesse contexto.

Nós, clínicos, ouvimos e encontramos, em nossos consultórios e ainda mais em nosso trabalho em instituições nas chamadas áreas suburbanas, as incidências subjetivas destas violências coloniais nos descendentes, herdeiros sem herança e que não encontram, devido ao silêncio que se opera no social, pontos de apoio para se deslocar, se traduzir e se transmitir de outra forma.

Se a noção de uma dívida de existir é essencial para compreender o que permite a tomada da história pelo sujeito prometido ao futuro, existem circunstâncias históricas e políticas nas quais a dívida de existir torna-se insolvente. Menciono aqui aquelas circunstâncias pelas quais a vida não se sustenta mais senão em um desafio sacrificial extenuante. Então, o que faz pacto entre vivos e mortos não mais existe, e se erode igualmente o que liga a singularidade e a particularidade do sujeito a ser compreendido em uma identidade aberta, em si e como fora de si, como prometido ao imprevisto, ao encontro. Assim que são violadas as referências de linguagem e genealógicas, os ancestrais duplicam em ferocidade, e os contemporâneos amedrontam. Aqui toco nas consequências psíquicas e sociais que são induzidas a partir do momento em que vemos se separar o direito da lei, em uma perversão do direito. Esta perversão pode ter sido ligada à peculiaridade do movimento colonizador ocidental quando este último, que consiste em criar um Estado longe de sua casa, procede necessariamente pela desqualificação do que teria podido existir como pensamento e como exercício político já presente e ativo no seio das populações conquistadas.

Aos povos autóctones, transformados em “indígenas”, é negado o status de membro da cidade. É supostamente impossível que eles tenham o privilégio de estar entre aqueles que participam do jogo político, entre os que deliberam, porque desta forma eles poderiam até mesmo defender seus próprios interesses quando da tomada de decisão. Tal processo é um cerceamento estratégico que vai se legitimar pelo cientificismo, como veremos com a escola de psiquiatria de Argel. Notemos apenas que a analogia entre o indígena e a criança (ou o primitivo) tanto não o faz um sujeito do político quanto um sujeito do direito. Ele é um objeto que será tratado e determinado enquanto tal pela política e pela lei, mas nada além disso. A mascarada ritual cientificista que, psicologicamente, faz do argelino, do atirador senegalês ou do guerreiro rebelde queniano Mau-Mau um sujeito psicologicamente e cerebralmente subdesenvolvido isola aqui a categoria de sub-cidadão que se lhe é concede, às pancadas, frequentemente, antes de o trancafiar em um “villageoisisme” forçado (defendido por um tempo por Mannoni, constantemente por Carothers). Aos colonizados, as assinalações de residenciais fechadas, reservas protegidas, ou de guetos, ou mesmo de acampamentos. Aos colonizadores, as apropriações hegemônicas e expansionistas da história. O colonizador não é apenas um possuidor do espaço e dos territórios anexados, ele é também o mestre do tempo histórico. Compreende-se, então, no campo das ciências humanas atuais, quais questões epistêmicas cobrem e mascaram (para dizer a verdade, bastante mal) as ideologias coloniais. A psiquiatria colonial e sua atualidade etnopsiquiátrica continuam a ter a geografia dos povos e das mentalidades por paixão, e a história por horror. Assim, o migrante tratado pela etnopsiquiatria francesa será na maioria das vezes uma amostra representativa de sua suposta comunidade aldeã e, muito raramente, um sujeito preso aos tormentos da história, esmagado por sua situação administrativa e situado em relação às dificuldades reais que ele encontra aqui, neste mundo cruel marcado por uma conjunção entre a economia e e morte. Nestas condições, nada então pode justificar a participação do “indígena” neste nível elementar da política, a polis grega, ou seja, a um “viver-conjunto” possível.

O que os textos de Fanon e seu engajamento trazem de volta à noção de direito em um mundo colonial? O que é importante para Fanon é contextualizar o humanismo. V. Permal o ressaltou com clareza no colóquio CEMÉA sobre Fanon realizado na Martinica em abril de 2005. Não é, pois, uma essência do homem que importa para Fanon, mas uma situação. Uma situação precisa, estabelecida pela história e codificada pelo direito. Ora, em um mundo colonial, a quem se dirige o direito? Em qual situação tal direito se encontra? O direito, e sobretudo o direito do homem, deve se dirigir a um além de nós mesmos, a uma essência que é essa do ser pela liberdade e que, por aí mesmo, ao apreender esta essência, se liberta de suas designações e definições estritas. O direito supõe um universal do direito que se dirige ao que é próprio ao tema do direito, o qual não é mais definido por sua particularidade, mas por sua universalidade. A perversão do direito em um sistema colonial provém do fato de que ninguém, como sujeito, está sujeito a uma lei comum que o ultrapassa. Se numerosas conquistas foram feitas em nome de um apelo universalista (basicamente, no início da colonização, era muito mais a esquerda do que a direita que se preocupava em levar alhures os bens e virtudes do Ocidente), a perversão colonial, rápido, se instala posto que o olhar colonial, longe de querer o universal, não podia se tornar senão um olhar policial, visando reduzir, estigmatizar e apagar a opacidade do outro. De modo que o sujeito do universal vira o colonizador; um tal sistema não podia reduzir por “bondade civilizatória” o colonizado a uma assimilação mimética ao colonizador quando este o julgasse apto a tal. Por que, nas Índias Ocidentais, no Magrebe ou na África, quando um orador começa a falar de colonização, com o risco de ofender as sensibilidades, nós nos sentimos tão implicados? É sem dúvida porque, além da necessária reapropriação da razão e do patrimônio histórico, este tema nos agita, e porque a violência colonial pressupõe um estrangulamento da dimensão do semelhante. E é muito doloroso na medida em que impede também o diálogo consigo mesmo e com suas alteridades, quem quer que sejamos.

Permitam-me aqui um ocorrido. Eu recebo, em meu consultório psicanalítico, às vezes em um centro de consulta para adolescentes ligado ao hospital psiquiátrico onde trabalho, jovens de origem africana ou caribenha. Esses jovens são os atores de uma nova diáspora. Ao contrário de seus pais, estes jovens não estão mais apostando em um retorno ao país, posto que, quando aí retornam, eles se sentem pouco integrados e pouco integráveis às ilhas caribenhas ou à África. Contudo, eles estão longe de se sentirem inteiramente franceses, mesmo se alguns deles têm a nacionalidade – o que é uma justiça elementar. A consciência de fazer parte de uma diáspora mal estabelecida como tal não abre para esses jovens nenhuma identidade geograficamente estabelecida e sentida como legítima. A geografia não fornecendo uma base, argumento e abrigo para o narcisismo, o sentimento do lugar se corroendo e se desdobrando em um sentimento de exclusão, é ao tempo e à história que é confiada a tarefa de significar a identidade, a filiação, as “raízes”. Em outras palavras, pareceu-me muito claro que os adolescentes africanos, e especialmente do Caribe, interrogavam, mais do que nunca, os efeitos da violência na fundação de linhagens, de filiações e de genealogias. Daí seu interesse em desenterrar, e depois transformá-lo em um mito atual, as realidades do tráfico de escravos do Atlântico, as histórias dos “marrons”, o que testemunham numerosas produções de “rap”. Sim, eles estão cansados de mentiras e negações. Abrir sem complacência o “arquivo” sobre a abolição da escravidão, aí estaria um ato que não poderia senão ter incidências fortes e estruturantes na psique desses jovens à deriva, mas portadores de questões verdadeiras. Sem reduzir tudo a evocações comemorativas, que, embora necessárias, restam insuficientes para fazer viver o passado, ou seja, para mover e inquietar nossa relação com o passado. De minha parte, algumas pesquisas modestas sobre a primeira abolição, publicadas na revista Cahiers des anneaux de la mémoire [6], me levaram a sublinhar a lacuna observável entre a data da primeira Declaração dos Direitos Humanos e a desta primeira abolição [7]. Sem negar o significado simbólico essencial desta abolição, também é necessário sublinhar a grande porção de oportunismo que se encontrou satisfeita por esta decisão. É bem no momento no qual o autonomismo colonial está pronto para se aliar ao inimigo que a extensão da cidadania francesa aos habitantes das colônias foi reconhecida como necessária. Por outro lado, o impasse que alguns entre os mais prolixos teóricos da cidadania puderam criar em relação à situação humana política, concreta, dos escravos salta aos olhos em numerosos escritos e discursos. A escravidão como instituição antiga e bárbara é totalmente condenada quando era praticada nos tempos antigos, entre os gregos e romanos, ou mesmo entre os assírios. “O povo romano se aplicava em perpetuar a escravidão, o povo francês cuidará dos meios para perpetuar a liberdade universal”, escreve A. Cloots em suas Bases constitutionnelles de la République du genre humain. Por outro lado, os escravos insurgentes que lutam nas colônias francesas com armas nas mãos pela sua liberdade, pela liberdade proclamada, não são mencionados pelos Cloots, nem por muitos outros.

Com Guadalupe retomada em 29 de setembro de 1794 por Victor Hugues, depois Santa Lucia, Dominica, São Domingos e a Guiana Francesa poderiam finalmente se beneficiar desta medida abolicionista.

Por mais deslumbrante que seja a tentativa de revisão do longo período que separou a Declaração dos Direitos Humanos deste decreto de abolição, não se pode deixar de concluir que o grande ator desta história foi de fato o escravo lutando por sua liberdade, enquanto pouquíssimos políticos se atreveram a conceber uma contemporaneidade entre a abolição do tráfico de escravos e a abolição da escravidão. Era também necessário canalizar a luta dos escravos para proteger os bens coloniais e as oligarquias, e os grupos de interesse econômico que ali governavam soberanos [8]. Em resumo, a abolição não é o signo da grandeza de alma de uma República generosa preocupada com o bem-estar de seus filhos de cor; ela foi tardiamente arrancada pela luta, e os republicanos, muito tímidos e bem próximos de seus interesses econômicos, só a concederam para conquistar uma paz civil, um retorno à calma garantidora da perpetuação das explorações locais.

Generalizemos pensando nos descendentes das guerras de independência: as crianças de hoje herdam dessas violências e desses ocultamentos um peso redobrado. Na adolescência, eles tentam se colocar em face e com esses pais quebrados, humilhados, às vezes traidores estigmatizados demais, às vezes heróis discretos demais. Na cidade de hoje, eles tentam amarrar estes fragmentos de histórias, estes objetos de memória, estas vergonhas mal e muito rapidamente bebidas, estas raivas retornadas ou estas apatias anônimas, em feixes de representações que finalmente contariam como o alter é por sua vez afetado pelo passado e pelos traços deste passado.

Certamente, resta a precisar ainda como psiquismo e história se articulam, de outra forma que guiado pelo par nocional memória e esquecimento. O esquecimento não é a antítese da memória; às vezes ele é dela uma condição maior. O que é esquecido, reprimido, pode retornar, precisamente. O contrário da memória é a destruição do traço da memória, sua aniquilação (nadificação). E é bem contra esta perversão destrutiva que resistem também certas formas de loucura. Na condição, porém, de que essas loucuras possam ser acolhidas e ouvidas. Para alguns pacientes, esta produção se faz com seus meios rudimentares e obstinados, que emergem em suas enunciações. Que se atualizam cada surgimento em sua fala destes trechos de histórias sem romance, às vezes sacrificam sua razão, esses que vão sacrificando às vezes sua razão, sua postura genealógica para colocar em ação e em figuração insensata, no quebra-cabeça de seus distúrbios, ou mesmo de seus delírios, as derivas e as violências insuportáveis ao simbólico das quais eles foram reféns, os peões e frequentemente, muito frequentemente, as últimas testemunhas.

Neste sentido, o que Fanon trouxe, lá onde ele ocupou plenamente as responsabilidades institucionais como médico psiquiátrico, faz parte das horas mais felizes e mais tônicas da história da instituição psiquiátrica, e permanece profundamente ligado à forma como uma sociedade aceita conviver com o enigma da loucura. E talvez de conviver, ainda mais, com a ligação profunda que a loucura mantem com a memória desta história comum e singular que não entra nisso que aí pode restituir as repressões, as censuras e os consensos próprios ao discurso dominante, que era neste caso aquele da violência colonial. Negar a dignidade da loucura e negar o trabalho de memória no coletivo é, basicamente, a mesma coisa. Em resumo, não é porque a memória não se prescreve que é conveniente de se mostrar desenvolto diante das tentativas de destruição disso que a torna plausível, plural e viva. E é ainda uma vez importante lembrar que nunca foi por artifícios da prescrição de uma identidade cultural que Fanon acolhia este sujeito às voltas com o atual da história.

FANON, O ENCONTRO COM SAINT-ALBAN

Já na França, Fanon tinha sido, em Saint-Alban e com Tosquelles, um dos atores na ativação de uma política institucional do tratamento da loucura, que supõe: a) que a instituição cuida dos modos de vida e do tempo compartilhado entre cuidadores e cuidados, e b) que ela possa favorecer a ativação de dispositivos, de cenas, a fim que se reatualize, se represente o que foi mal atuado ou mesmo não foi sequer atuado. A loucura é ouvida em suas ligações com a alienação social; Fanon também a ouvirá em suas ligações com o cultural, na forma histórica concreta e conflituosa que ele assume em momentos de grandes conflitos políticos.

Parece-nos importante recordar aqui a história dos postulados fundamentais sobre os quais se repousam todas as experiências que se afirmam como psicoterapia institucional.

O contexto do surgimento deste movimento foi o registro de tomadas de consciência fortemente ligados aos acontecimentos da história. François Tosquelles é um psiquiatra e psicanalista de origem catalã. Em 1927, Tosquelles iniciou seus estudos de medicina; ele tem 15 anos de idade. A Espanha era então um reino e, desde 1921, sob a ditadura de Primo de Rivera. Os catalães são frequentemente rebeldes e sua vida política é animada pela luta contra a ditadura. Uma aliança composta e quebradiça reúne os anarquistas da CNT e da FAI, a Frente Comunista Catalã-Bailarina e sua emanação clandestina, o BOC, Bloco Operário e Camponês, ao qual pertence Tosquelles e que desenvolve já um comunismo estranho à linha oficial da PCE. Em seus anos espanhóis, de prática psiquiátrica durante a Guerra Civil Espanhola, Tosquelles testemunhará muito mais tarde, em 1991: “A lei do desenrolar surrealista da guerra é que há sempre algo imprevisível, algo inesperado; ou seja, algo que, precisamente, não é suscetível de ser alocado na ciência. A ciência é uma desordem comportamental de certos tipos que estão obcecados com ela; eles querem controlar tudo através da ciência. A guerra é incontrolável. Mas, como diriam os surrealistas, aí aparecem cadáveres requintados, ou seja, o imprevisível, que não são puramente fantasistas, elas são mais reais que o real. Falemos da guerra. Eu insisto no fato de que não se tratava de uma guerra qualquer, mas de uma guerra civil. A guerra civil, ao contrário da guerra de uma nação contra uma outra nação, tem a ver com a não-homogeneidade do eu. Cada um de nós é feito de pedaços contra-postos, com uniões paradoxais e desuniões. A personalidade não é feita de um bloco. Isso se tornaria uma estátua, nesse caso. O que eu fiz em Aragão? Eu não tinha muitos doentes; eu evitava que eles fossem enviados a duzentos quilômetros da linha de frente; eu os tratei lá onde as coisas tinham estourado, a menos de quinze quilômetros, de acordo com um princípio que poderia se assemelhar àquele da política do setor. Se você envia um neurótico de guerra a cento e cinquenta quilômetros da linha de frente, você faz dele um caso crônico. Você não pode cuidar dele senão junto à família onde estão as desgraças [9].

Refugiado na França no final da Guerra Espanhola, ele trabalhou a partir de 1940 no hospital de Saint-Alban, em Lozère. A partir de 1940, Saint-Alban tornou-se o ponto de referência do movimento de transformação dos asilos, depois o lugar de desenvolvimento teórico e prático da psicoterapia institucional. Esta última se propõe a tratar a psicose inspirando-se no pensamento freudiano da alienação individual e na análise marxista do campo social. Tosquelles envolveu-se muito jovem na luta antifascista, antes e durante a Guerra Espanhola, e depois na Resistência Francesa.

O destino da psiquiatria em tempos de guerra cruzará o de Tosquelles. O hospital de Saint-Alban, confrontado com as restrições que causaram várias dezenas de milhares de mortes nos asilos franceses, decidiu, sob a responsabilidade de D. Balvet, seu médico-diretor, de espalhar os pacientes nas famílias camponesas da vizinhança. Além disso, este hospital protegeu e abrigou personalidades exiladas e combatentes da resistência, entre as quais Paul Eluard, que falará a Tosquelles sobre a tese de Lacan e o faz decidir publicá-la.

Psiquiatria, como um todo, foi tomada por um sentimento de horror face ao insuportável desses pacientes mortos de fome nos asilos psiquiátricos durante a Segunda Guerra Mundial. E se a liberação dos povos no dia seguinte à guerra parecia poder ser acompanhada de um movimento semelhante no setor psiquiátrico, é também porque, durante a Segunda Guerra Mundial, a fome levou à morte quase metade da população dos hospitais psiquiátricos franceses, nos quais as restrições alimentares não puderam ser contornadas. Algumas instituições foram alvo de intensos bombardeios, causando a evacuação de muitos doentes. Quando a paz voltou, os médicos, incluindo L. Le Guillant, procuraram os pacientes esquecidos e dispersos; este psiquiatra constatou que quase um terço destes pacientes evacuados tinham sido acolhidos e tinham conseguido se readaptar a certas atividades rurais sem apresentar sérios problemas de comportamento. Alguns pacientes, é verdade, tinham encontrado na catástrofe e na experiência de fim do mundo que provoca a guerra uma atmosfera conforme ao mais intenso caroço de aniquilação abrigado no seio de seu delírio, isso que frequentemente equilibra. A catástrofe suscita às vezes a eclosão de condutas sobre adaptadas nos psicóticos. Esta constatação de um relativo bem-estar dos pacientes saídos abruptamente do cenário asilar interrogou efetivamente os psiquiatras sobre os fundamentos para a manutenção de alguns pacientes no hospital.

Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, tornou-se claro que o asilo, em sua antiga concepção, tornava-se um lugar que colocava em impasse a vida psíquica e social dos pacientes. Desde o início, houve uma mistura de utopias e de renovações das utopias humanistas e anti-alienistas do século XIX (lembramos das posições anti-asilo de um político como Léon Gambetta). A ideia não veio como uma inspiração celestial. Ela exigia o risco de pensar e teorizar a função instituidora das instituições cuidadoras. Seus pressupostos ancorados em uma consciência política e militante eram, pelo menos, dois: combinar o espaço do cuidado com o da cidade, e ceder, no que concerne o exercício do acolhimento e do cuidado, a dimensão política à dimensão clínica.

PSICOTERAPIA INSTITUCIONAL

Na França, antes das leis de setorização, mas prefigurando um movimento que as viu seu nascer, os movimentos de psicoterapia institucional teorizaram as práticas e as experiências, o que não deixou de ter efeito sobre a relação dos psicanalistas com suas teorias e seus dispositivos. A ligação entre a decolagem de um pensamento psicanalítico do grupo e da instituição e as práticas inovadoras na instituição de cuidado não precisa ser demonstrada. Recordemos de Bonneter e outras experiências (La Borde). Evocaremos ainda estes patchworks referenciais onde o kleinismo de um E. Jacques se combinava com a noção de transitoriedade, retirada de Winnicott, em uma insipiência progressiva, é verdade, com empréstimos ocasionais de idéias lacanianas do “sujeito do inconsciente” e de discurso. A instituição é, a partir destas invenções de dispositivos de cuidado e de fala, teorizada e posta em prática enquanto um sistema que, para além do objetivo manifesto de estabilizar, ou mesmo de curar, tem por função social permitir a troca pela introdução de mediações (Wayang e Pasquier).

A loucura, de novo, podia atuar e se endereçar. E, pelos escapes contemplados e levadas a sério, a fala da loucura pôde encontrar seus lugares e seus tempos, sem ser mortificada por uma atribuição a um saber estabelecido que consertaria o que o sujeito exprime nos seus sintomas ou seus signos. O paciente, longe de ser reduzido ao modelo atemporal de um quadro clínico, era também um ser portador de uma história singular e coletiva. E se o projeto é então duplicar o cuidado imediato por uma reconstrução possível das subjetividades sociais, então percebemos nitidamente que as culturas fenomenológicas e psicanalíticas tinham direito à morada nesta política e nesta estratégia de cuidado.

A nova doutrina da psicoterapia institucional tinha como primeiro efeito um questionamento dos modos comuns de atendimento nos estabelecimentos psiquiátricos, que foram então comparados aos tipos de relacionamentos e relações próprios ao universo afim ao de um campo de concentração.

Um outro fator de abertura da vida asilar encontra-se no desenvolvimento de agrupamentos comunitários (albergues da juventude, escoteiros, CEMÉA …) de antes da guerra, que já traziam a base de uma possível nova organização social do ambiente hospitalar.

Enfim, deve-se ressaltar que a psicoterapia institucional (cujos pioneiros são Sivadon, Daumézon, Bonnafé, Chaisneau, Oury [10] …) se assenta, nessa segunda metade do século XX, no encontro da psicanálise freudiana e do engajamento marxista. Alguns de seus pioneiros, reunidos notadamente em torno de Oury e Guattari, repensam a instituição com os conceitos formalizados por Deleuze de “tendência” (“A instituição é um sistema de meios indiretos e sociais para obter uma tendência”) e com esses do Lacan da matriz antropológica que propõe a tripartição Real, Simbólica, Imaginária e as teses sobre o coletivo, que não é, segundo ele, “nada mais que o sujeito do indivíduo”. E isso se faz em um momento em que também as artes emergentes – incluindo o que resta do surrealismo orientado em suas opções políticas pelos seus debates com Trotsky e os vários movimentos centrados em torno da arte bruta – lançam uma nova luminosidade sobre a face sombria do vínculo social. Eles trazem à luz a dignidade da loucura, de seu discurso e de suas criações. Em outras palavras, a psicoterapia institucional, da qual Fanon será um importante ator e continuador, e que encontra no CEMÉA a oportunidade de afirmar sua política, repousa sobre um tríptico que combina engajamento político, engajamento clínico e abertura à cultura e à literatura. Frantz Fanon encarna estes três modos de engajamento combinados, e ele os defende e os ilustra no mais intenso de sua subjetividade e de sua existência concreta.

AS TRÊS POSTURAS

Portanto, se devemos insistir no fato de que Fanon tenta unir três posturas – o ativista, o clínico, o escritor – é também porque a linguagem e a escrita que Fanon inventa nos puxa para fora em uma extraterritorialidade doutrinária.

Isto sem dúvida porque Fanon é um dos autores menos “psicológicos” que existe, o que é um grande mérito seu. Uma dimensão insiste e transcende: a do sujeito reduzido ao silêncio ou à dignidade possível da loucura quando ele é capturado por uma realidade opressiva que o nega. Fanon aposta na renovação, mesmo no nascimento, de novas expressões estilísticas e culturais, menos preocupadas em respeitar a forma correta do que em dar à luz novas formas. Ele é, se me permitem a expressão, um “push-for-style”, na medida em que ele se solidarizava com as apostas nas exigências “militantes” de estilo as quais, no mínimo, tinham como efeito iniciar novos modos de expressão escrita ou oral. Seria necessário saber se, atualmente, os escritores argelinos ou da Índia Ocidental dão algum valor ao que Fanon dizia e pensava, se eles reconhecem uma dívida de gratidão para com ele. Então, uma última observação: este anacronismo entre o cavalheiro do Iluminismo e a criança do século é completamente atual, completamente coerente com a época e, sem dúvida, com a nossa. Sim, foi bem próprio ao contexto intelectual contemporâneo as trocas Mannoni/Fanon que oscilavam entre ideais, racionalidades, versões “clássicos” e “pós-modernos” da história. Ora, o rompimento com o Iluminismo foi executado sem remissão e sem qualquer reconstrução utópica ou dialética possível, pelos genocidas, em nosso século. Aí foram quebrados os textos dogmáticos que sustentavam os espelhos do humano. Na falha muda e analfabeta desses espelhos quebrados, se esgotam as raças/corridas por auto-imagem, identidade e nome. Como o ser humano nestes contextos de saqueio de suas referências repropõe sua própria montagem na dimensão da fala? Que isso seja, no mínimo, um problema, é o que ignoram as culturas psicológicas do meio, sendo a contrapartida desta cegueira a predominância dada a uma leitura e a um tratamento psicopatológicos dos êxtases transitórios, das violências como desafios dos limites, as adolescências sacrificadas.

Fanon é um escritor contrabandista que desenvolve incansavelmente conversas, invenções de desvio e fidelidade com as tradições e movimentos da negritude e do pan-africanismo, com o que pode ser uma matriz para a diáspora africana, mas também com as teorias econômicas de Marx, filosóficas de Sartre, históricas e fenomenológicas de Jaspers, psicanalíticas de Freud e Lacan. Nas dobras e no ritmo de sua escrita, o escritor acomoda também, meticulosamente, as falas em sofrimento das línguas esquecidas, das línguas amordaçadas e reclusas sob o peso da indignidade, da vergonha. Essas línguas que o colonizador persegue com a destinação arriscada aos périplos do contrabando, ou, mortífero, ao esquecimento. Não que o estilo de Fanon se folclorize, se creolize ou que ele se adorne com preciosidades orientalistas. Não se trata de expor o latente sob a preciosidade do pitoresco, o que equivale a escamotear a análise dos processos históricos de criação deste latente, resistente à opressão cultural. Não esqueçamos que o colonizador aprecia o pitoresco que o colonizado, quase que sob medida, lhe mostra. A cultura viva que se torna um problema e um projeto o desconcerta e ele a teme. Mas o estereótipo cultural o encanta e às vezes o excita. Ele o consome até a indigestão. Muito além de qualquer afetação literária que, em tempos de apaziguamento, pode ter seu charme, o objetivo de Fanon é fazer brotar em sua escrita uma virulência, uma violência construtiva, que hospeda os gritos daquelas e daqueles que se encontram duplamente excluídos: os loucos colonizados. É também, por extensão, a um trabalho de reintrodução da vida psíquica dos colonizados que Fanon se atrela com determinação e, na batalha, um sentido de trabalho coletivo pouco comum. É assim: seu trabalho de escrita não pode ser separado de sua luta constante contra a alienação social e colonial do sujeito chamado de “louco”.

O TRABALHO COM A LOUCURA, PRIMEIRAS ETAPAS

Debruçar-se sobre a loucura leva a escrever. Inventar um lugar para a fala do louco incita a uma responsabilidade pelos estratos de testemunhos dos quais a escrita se faz a confidente e o eco. A fala fura a evidência dos mundos fechados, a escrita reúne os fios e testemunha isso que na fala acontece como um evento. E toda acolhida da fala supõe uma instituição. Se alguns ingênuos partiram da psicoterapia institucional para reduzir a compreensão da loucura a uma sociogênese, incorrendo no perigo de confundir a supressão do asilo com a supressão da própria loucura, Fanon, mais sutilmente, se debruça sobre a capacidade da loucura testemunhar o contexto “humanicida” global no qual ela inscreve sua particularidade, sua história, seu sotaque.

Fanon de fato redobra as linhas de construção sociogenética da psicoterapia institucional porque ele trabalha em um mundo que ainda não é liberto, ao contrário do mundo “livre” após a Segunda Guerra Mundial, e que é o mundo colonial. Indexar a loucura a uma sociogênese, sem assim a reduzir a ela, tem por efeito quase imediato deslocar os campos de intervenção clínica e a organização da instituição. O que acontece quando a dialética necessária entre o institucional e o subjetivo se apresenta como projeto em um país colonizado? Aqui e ali, toda psicoterapia institucional combate em três linhas de frente que são tanto seu território quanto sua razão ética: a não-segregação, a luta contra a alienação, o objetivo anticoncentracionário. De que forma estes três eixos permitem a Fanon, no contexto de sua prática em um país colonizado, acentuar o alcance de seu diálogo com a psicanálise e a antropologia?

De fato, se desta vez a instituição descansa em uma teoria da cultura e que ela não se confunde mais com o corpo do edifício de hospitalização, então ela presume que, como toda organização antropológica de base, ela seja regulada pela troca da qual ela é tanto a cena como a garantia. Em outras palavras, o cuidado psíquico institucional não poderia se limitar a colocar limites e distâncias reputados bons (ou os melhores possíveis), mas ele avança pela referência e pelo respeito à função do campo que estrutura a existência humana: ou seja, a troca. Ora, a situação colonial é essencialmente uma situação na qual é achincalhado o que está na base das trocas inter-humanas: a possibilidade de reciprocidade, ou seja, da tradução recíproca da língua do outro, tradução que permite viver as diferenças, salvaguardando os enunciados e garantias genealógicos. No hospital Blida-Joinville, o que a instituição vai mediar serão os espaços corporais, mas também desqualificados. Além disso, a relação entre a instituição e a demanda social ou política global se fará de uma maneira desviante enquanto não for reconhecido o lugar do conflito como crucial na construção da pessoa e de sua identidade. Em resumo, o colonizado aparece como um sujeito privado de sua língua, de sua genealogia e, para dizer de forma extrema, de seu”morrer”. A loucura nos lembra constantemente a necessidade absoluta de um lugar onde possa se ler a relação entre os vivos e os mortos. Parece-me importante sublinhar a dificuldade e a audácia próprias ao projeto de Fanon, insistindo sobre o que torna impossível a edificação ou o respeito a um tal lugar, que frequentemente sobrevive na clandestinidade. [11]

Além disso, e para sublinhar o paradoxo que há em implantar a psicoterapia institucional em um país no auge da imposição da ligação social colonial, como era a Argélia então, é importante insistir sobre a dimensão conflituosa da troca alocada no princípio mesmo dessa estratégia de cuidado cada vez que ela se mostrava. A troca precisa de um engajamento na fala e na dialética do reconhecimento. Assim, Fanon pôde escrever: “Fica entendido que falar é existir absolutamente para o outro…”, o que sinaliza um afastamento da psicanálise que supõe sempre um resto às operações da fala. É verdade que a dimensão do reconhecimento sobre a qual Fanon se concentra é a que, na França, tanto o existencialismo ateu quanto o existencialismo cristão têm insistido. A troca não se reduz ao escambo, mas pressupõe uma cena onde diferentes sujeitos são portadores de desejos, de demandas e de historicidade desiguais. A totalidade institucional se encontra aí descompletada, ou se, como Oury, amamos seguir Sartre, diremos, com o filósofo, que ela se encontra destotalisada.

Fortalecido nesta cultura filosófica e institucional, Fanon foi capaz de se opor firmemente a toda a corrente da psiquiatria colonial que estava centrada na noção racista do “primitivismo do muçulmano indígena” (Porot; depois, apesar de suas idéias menos reacionárias, Sutter). Deve-se entender que foi a partir de sua invenção da socioterapia que Fanon conseguiu desenvolver suas principais linhas de pensamento sobre os efeitos subjetivos das violências coloniais.

O problema da implantação da psiquiatria nas colônias havia sido colocado como um todo pelo relatório de Reboul e Régis no 22º Congresso de Alienistas e Neurologistas, de 1912, em Tunis. Dedicado à assistência dos loucos nas colônias, este congresso pode ser considerado como o fundador de uma psiquiatria colonial; ele recomenda o treinamento de psiquiatras coloniais civis e militares, bem como a suspensão da transferência dos loucos dos países colonizados para os asilos franceses (como tinha sido o caso até então).

Na Argélia, foi preciso esperar até 1932 para que, sob o impulso do General Lasnet e Porot, uma assistência psiquiátrica fosse ativamente iniciada. Um decreto de 14 de março de 1933 regulamentou o recrutamento de médicos para serviços psiquiátricos na Argélia, chamando médicos da área metropolitana. Duas instruções, datadas de 10 de agosto de 1934, regulamentam o funcionamento dos serviços psiquiátricos na Argélia. Um serviço de primeira linha será instalado em Argel, Oran e Constantina e um hospital psiquiátrico será aberto em Blida. Os serviços de linha de frente foram definidos pela fórmula do serviço aberto e de observação, enquanto o hospital psiquiátrico de Blida deveria funcionar de acordo com os termos da lei de 30 de junho de 1838 [12]. Entretanto, se levarmos em conta que o hospital de Blida-Joinville era planejado para 1.200 pacientes, mas que o congestionamento progressivo dos serviços o priva de sua eficiência porque dificilmente se chega a uma cama por 7.000 habitantes, podemos medir as dificuldades que aguardavam Fanon [13].

Fanon minou radicalmente o consenso racista da psiquiatria colonial. Ele critica ferozmente as teses de Porot sobre o primitivismo do indígena muçulmano “erigindo o racismo biológico à altura de uma antropologia da doença mental”… Resumamos e lembremos ao leitor que tudo isso está claramente detalhado no livro de A. Cherki mencionado acima. Sutter, o estudante de Porot, que defende sua tese em 1938, foi co-autor com ele de um artigo, em 1939, sobre o “primitivismo dos indígenas norte-africanos e suas incidências na patologia mental [14]. Sua descrição do nativo faz dele um ser primitivo cuja vida é passivamente e imutavelmente comandada por montagens instintivas e estreitamente dependente da estrutura do sistema nervoso caracterizado por “seu diencéfalo …, uma disposição peculiar da arquitetura, pelo menos da hierarquização dinâmica dos centros nervosos”. Primitivo, o indígena é perigoso e propenso à mentira. Claramente, qualquer estudante de psicologia entenderia hoje a intensa projeção pela qual se atribuia aos nativos duas tendências dominantes da relação do colonizador com o colonizado: a violência e o blefe. No entanto, esta tese da impulsividade criminosa dos argelinos do Norte permanece em tranquila sintonia com as teses antropológicas ou medicais que definem o colonizado em termos unicamente arquetípicos da ordem da etnia ou da raça. O medo e tão pouco a violência do colonizado podem aqui se explicar pela violência da colonização. Da mesma forma, no Quênia, de acordo com Carothers, os Kikuyus são sujeitos violentos, desconfiados e pouco seguros de si mesmos, mas eles não são nunca tomados como sujeitos às voltas com o atual da história política, sua situação recente de camponeses espoliados e reduzidos a uma proletarização forçada e acelerada não tendo merecido absolutamente qualquer atenção da parte do etnólogo. À nosologia se atribui o que se explica pela miséria. Só uma frustração neurótica dá conta, para Carothers, da revolta, que, por conseguine, não poderia ser objeto de qualquer análise política.

Porot e Sutter vão mais longe, o diagnóstico deles sobre a impulsividade e a imaturidade rígida do norte-africano é brutal e o torna incapaz de ‘desfrutar’ dos supostos benefícios que a ‘civilização’ aporta; o verniz humanista da colonização recha de todos os lados; assim “esses primitivos não podem e nem devem se beneficiar do progresso da civilização europeia”. Eles estão, dizem os dois compadres, incapacitados de apreciá-los e qualquer tentativa de lhes concedê-los não pode senão perturbá-los seriamente. Alice Cherki sublinha que esta tese perseverará insidiosamente, pois ela é reiterada na edição de 1975 deste manual escrito pelos membros da escola de Argel, manual que foi, até a publicação do tratado de Henri Ey em 1959-1960, a única obra em língua francesa acessível aos estudantes e apreciado por eles.

PERPLEXIDADES E ABERTURAS

Fanon se questionou reiteradamente se a aplicação mecânica da psicoterapia institucional não podia trazer tantos problemas quantos parecia resolver. Não era uma forma de favorecer a assimilação? Não era intensificar a ilusão de uma utopia igualitária em um mundo que nada tinha de igualitário e que não mostrava nenhuma vontade dominante de vir a sê-lo? Do ponto de vista colonial, que, especialmente na Argélia, nega que o indígena precise ser situado e compreendido em sua densidade e sua originalidade de língua, de crença e de civilização, e defende a substituição, o quanto antes, da cultura encontrada localmente pela de importação, cabe ao indígena fazer o esforço de assemelhar-se ao modelo que o colonizador lhes propõe, de assimilá-lo de maneira mimética. A assimilação, neste caso, não é em nada tradução de uma realidade vinculada, ou uma promessa de um inédito futuro comum. Ela rejeita o desafio dos encontros e repudia toda oportunidade de troca, privilegiando o trágico da intolerância ao cômico do mal-entendido.

Fanon insistirá ao longo de sua obra sobre a instrumentalização da linguagem pelas modalidades do discurso colonial a fim de exercer o poder. Além disso, pelos efeitos do discurso se produz uma prescrição de identidade pelicular e atribuída e, correlativamente, uma total destituição dos lugares da alteridade e do estrangeiro interno, o que arruína a ligação à linguagem, em sua eloquência, sua surpresa, sua metaforicidade. É necessário, então, Fanon proporá, que aqueles que cuidam, eles também, ressintam o peso desta violência colonial e que eles recusem este aprisionamento domiciliar aí no lugar onde o outro os produz, os define, os enquadra. A psicoterapia institucional não poderia ser realizada senão por “contrabandistas”, homens e mulheres que tivessem realizado um trabalho de subjetivação da des-subjetivação que implica a submissão ao controle colonial. Clínica e política não poderiam, sob estas condições, senão se fertilizar, se estimular. Não se trataria de as ligar em nome de uma ética insípida e superficial. Se tratar é cuidar das figuras da alteridade, então tratar é se insurgir contra aquilo que prejudica tais alteridades em um determinado espaço social e político. Sobre a problemática do reconhecimento, Fanon denunciará como patógena a instrumentalização e a confiscação da linguagem pelas modalidades do discurso colonial. Sua hipótese sobre a “personalidade colonizada” não se apoiará em nenhuma psicologia étnica. Muito pelo contrário, repudiando toda explicação dessa “personalidade” pela categoria equivocada do primitivo ou do infantil, a tese de Fanon – desenvolvida, por exemplo, nesta adição de psicopatologia ao livro essencialmente político que é Les damnés de la terre – promove uma concepção da personalidade que faz dessa um conjunto de relações sociais, como um coletivo ao singular. Mas também um modo de construção de si no qual se repercutem, até a anomia, as desqualificações da alteridade. A personalidade colonizada não é, então, redutível a uma personalidade dominada ou explorada, ela se torna o caldeirão de uma dramática desqualificação da pessoa, em sua subjetividade e em sua historicidade. O que coloca em perigo a ligação de cada um ao corpo e à linguagem.

Neste sentido, a experiência ousada por Fanon tem por efeito dar consistência a figuras de alteridade destinadas a assumir a fala. A apreensão da pertinência da fala do sujeito, em defasagem e em loucura, estava condicionada à redefinição das bases institucionais da psiquiatria. Como poderia tal projeto, na Argélia colonial e massivamente racista da época, ter surgido sem constituir, em seus efeitos, um verdadeiro ato de insurreição contra as segregações sociais, étnicas e culturais que eram majoritárias então na Argélia?

Para Fanon, nada pode ser separado de sua paixão pela psique e pela loucura de sua coragem humanista para renovar a instituição psiquiátrica, de sua luta política, que nunca cedeu às sereias do identitarismo ou do retorno à origem. É exatamente a partir desta convergência que nós podemos mais uma vez precisar o que foram para Fanon o lugar e a aposta de sua escrita.

Muitas vezes ele faz uma creolização dessas influências, com idas e vindas, tributos e dívidas reconhecidas e depois, às vezes, destratadas, especialmente para com a psicanálise. Assim, esta frase em Peau noire, masques blancs sobre sua análise dos sonhos de africanos: “[…] as descobertas de Freud não têm qualquer utilidade para nós […]”, o que se pode tomar por uma denegação; ou ainda esta passagem sobre Lacan (que, aliás, aparece nada menos que três vezes em Peau noire, masques blancs) na qual Fanon escreve: “Nós trazemos uma crítica violenta da noção de constituição. Aparentemente [15], nós nos distanciamos de suas conclusões [as de Lacan], mas nossa dissidência será compreendida quando se recordar que à noção de constituição, no sentido que a entendia a escola francesa, nós substituímos essa de estrutura [16]. O que é certamente mal ler Lacan, mas expor muito bem a dialética sartreana do reconhecimento e da estrutura do diálogo a mim-outrem.

FANON E A GUERRA

Muito já se insistiu sobre a relação ambivalente de Fanon com a psicanálise para que eu sublinhe a que ponto os escritos sobre a clínica dos traumatizados de guerra fornecem peças adicionais que, mais uma vez, desprende Fanon dessa posição de resistente à psicanálise à qual é tão fácil reduzi-lo. A colonização, sublinha Fanon em Les damnés de la terre, se apresentou como uma grande fornecedora de distúrbios mentais. Era difícil curar uma pessoa colonizada, ou seja, torná-lo homogêneo de ponta a ponta a um ambiente social do tipo colonial, ou seja, um ambiente no qual reina uma negação acelerada do outro. Consequentemente, a questão da identidade é um ponto nevrálgico, exacerbada em um mundo de relações de força que exclui a dialética do reconhecimento.

E, observa Fanon, a colonização calma, não contestada pela luta armada, lota eficazmente os asilos, as posições defensivas dos colonizados se fragilizam, até mesmo se erodem. Mas estes efeitos patogênicos interessam pouco aos clínicos.

Fanon argumenta que a guerra de libertação é, em razão de seu caráter de totalidade, um terreno favorável à eclosão de distúrbios mentais. Na introdução, inédita na época, das duas primeiras edições de L’an V de la révolution algérienne, Fanon assinalava que toda uma geração de argelinos banhados no homicídio gratuito e coletivo, com as consequências psicoafetivas que isso implica, seria a herança humano da França na Argélia.

É no momento em que Fanon aborda a dolorosa questão das repercussões psicológicas e psicopatológicas da tortura e do terror que as repressões assassinas perpetravam que ele operará uma outra ligação ao corpus freudiano. Tendo planejado falar sobre a tortura e a consequência dos assassinatos e evitar qualquer discussão semiológica, nosológica ou terapêutica, ele elabora um quadro de fato composto no qual se reúnem casos:

– impotência em um homem argelino após o estupro de sua esposa;

– pulsões homicidas indiferenciados em um sobrevivente de uma chacina coletiva;

– psicose de ansiedade com o tema de perseguição noturna, depressão e encontro com sua vítima. Um policial europeu deprimido encontra em um ambiente hospitalar uma de suas vítimas, um patriota argelino que sofre de estupor;

– um inspetor europeu tortura sua esposa e seus filhos;

– o evento desencadeante é a atmosfera de guerra total que reina na Argélia: psicoses puerperais.

Ao apresentar um caso de “psicose de ansiedade grave do tipo de despersonalização após o assassinato de uma mulher”, Fanon recorre ao Freud de Luto e Melancolia: “Após saber que sua mãe havia morrido, que ele amava muito, que nada poderia consolá-lo desta perda – a voz consideravelmente se abafadou naquele momento e algumas lágrimas apareceram -, eu conduzo a investigação para a imagem materna. A perseguidora obsidiante é então descrita como alguém que este paciente conhece muito bem, posto que foi ele quem a matou. Surge então a questão de saber se estamos na presença de um complexo de culpa inconsciente após a morte da mãe, como Freud descreveu em Luto e Melancolia. O paciente nos conta do seu sangue que se esvazia, que se derrama, de seu coração que falha. Duas tentativas de suicídio desde sua chegada. É de fato uma melancolia delirante, sem dúvida ligada a uma ausência de “sepultarização” do corpo maternal, o que faz do sujeito o objeto de uma censura incessante por parte do desaparecido, que sobrevive nas assombrações alucinatórias na forma de cadáver danificado e eternizado. O pavor está efetivamente presente na clínica de trauma de guerra que Fanon encontra – clínica que, ainda hoje, nos aparece com a força de uma verdadeira atualidade. Nós que recebemos, seja em nossos centros de tratamento, ou no relativo segredo dos consultórios privados, homens e mulheres às voltas com as feridas e as violências da história e do político, nós somos os contemporâneos de Fanon. Ele nos traz a uma clínica do Real. Com ele abre-se à compreensão esta passagem entre o momento no qual um indivíduo exposto “puxou a cortina” e o momento no qual ele é tomado pelo terror. No primeiro tempo, esse da ação específica face ao perigo, o sujeito não hesita, ele não se intimida. De modo que o trauma que sobrevêm em um segundo tempo pode vir a agarrar aquele que se comportou de forma ad hoc e que assim conseguiu sobreviver ao ambiente de destruição. Em situação de extremo perigo, tendo se tornado como um peão hiperadaptado às orientações do Real, o sujeito tomba então diretamente para fora da janela do fantasma. Em um mundo no qual a ordenação lógica está completamente desconectada das densidades imaginárias (há muitos testemunhos de soldados que contam que devem sua sobrevivência à abolição da sensibilidade, ou mesmo da consciência de serem mortais), o indivíduo faz o que for preciso para se defender, ou mesmo para atacar. Será muito tempo depois, submetido à intervenção de uma necessidade de integrar estes estados inauditos da relação com o corpo e a linguagem, que o paciente se decompõe, ele finalmente desperta. Através deste despertar, ele imagina, então, o que é a pulsão da morte. É bem essa a discórdia que traumatiza: é toda a dor ao retornar ao mundo das evidências naturais que irrompe e amarra o sujeito às entranhas. O corpo não aspira mais então a uma inteira e plena consciência do momento, desprendido de toda densidade imaginária. Mais precisamente, é tarde demais. O velho exposto à morte não pode certamente mais se instalar nesse registro aplanador do imaginário que antes fora necessária para a sobrevivência. O corpo, rendido ao trabalho de sua memória, quer retornar ao mundo da fala humana. Este tempo do retorno significa que este corpo subjetivo do ser falante pode ser novamente marcado por seu adormecimento e sua recomposição significante nas linhas do sonho e nas leis da fala. E isto não é óbvio. De ter em “um golpe” se tornado um corpo, o sujeito sofre ao encontrar a necessidade antropológica e moral de ter, de novo, um corpo.

Fanon se aproxima ao máximo do sujeito, se deixando questionar por ele, não no momento agudo do surgimento da violência, mas no momento chave da subjetivação dessa violência, essa inevitável reversão. Da mesma forma é inevitável a recriação de uma densidade corporal do significante. Mas que dor insana, que escândalo também! Hoje, o clínico comete um erro ao perder de vista o fato de que o trauma é uma elaboração. Os traumatizados de guerra, tal como eles foram observados e tratados por Fanon, perderam o uso dos traços mnemônicos que permitem fazer da perda algo que não seja um abismo hemorrágico. A melancolia no trauma é, sem nenhuma dúvida, o signo desse momento no qual essa armadura que os traços de memória trazem se torna inoperante, imóvel e inacessível. Esses sujeitos se determinam então a partir de um lugar vazio, mudo, que nenhuma palavra saberia animar ou aconchegar. Exatamente essa melancolização do trauma faz com que o sujeito se desanime de encontrar de novo um outro em quem confiar, um outro que o possa tranquilizar sobre o valor de pacto e de boa fé que carregam nelas e com elas as falas plenas. Em outras palavras, é a função de mediação da linguagem que é afetada, o real distorcido até os limites do humano, insistindo no terror.

CONCLUIR…

Ler Fanon nos permite reconsiderar as tentativas de diálogo entre antropologia e psicanálise. É fácil lançar o olhar de um etnógrafo sobre os sujeitos tomados pelas violências econômicas e psíquicas que todas as situações de colonialismo e pós-colonialismo geram. É então possível “psicologizar” abusivamente e reificar situações humanas concretas em termos de personalidade básica ou de personalidade cultural. É aqui que a negação do político não pode senão desembocar em ideologias culturalistas, as quais têm a geografia por paixão e a história por horror. Elas ditam que os segmentos de personalidade são inteiramente governados por estruturas culturais localizadas fora do tempo, da troca ou da luta. A psiquiatria e o psicologismo coloniais caminham, na maioria das vezes, de mãos dadas. Mais ou menos na mesma época em que Georges Balandier decidiu examinar fatos etnográficos, não mais como expressão de um fundo mítico e simbólico desde sempre existente, mas enquanto mergulhados nos contextos históricos e políticos atuais, Fanon começou a usar a psicanálise para melhor situar as incidências subjetivas que tais contextos têm sobre os pacientes que ele recebe.

“No mundo onde eu me encaminho, eu me crio interminavelmente”, “mas eu não tenho o direito de estar ancorado, eu não tenho o direito de admitir o menor território em minha existência”[17]. Vemos, através destas frases extremas e extremamente fortes, até que ponto a noção de identidade em Fanon se opõe a todo insípido desbotamento identitário. A construção fanoniana da psique do colonizado foi muitas vezes interpretada no sentido de uma modelização culturalista. Sim, algumas passagens de Peau noire, masques blancs podem ser lidas rapidamente, pois elas contêm as incertezas e as simplificações próprias a todo trabalho que se apressa em forma de manifesto. Elas se prestam facilmente à crítica ou à leitura redutora desde que se admita que a teoria do psiquismo do colonizado exalte uma articulação do cultural e do psíquico que reduz a luta do colonizado a uma reconfiguração da mais violenta da cultura tida como tradicional. Um social patógeno e uma cultura ontologizada ao fundo, vejam bem os pontos de referência que Fanon assume e que poderiam fazer que um leitor apressado não visse mais nele mais um culturalista, mais um etnopsiquiatra. Assim, o conceito de personalidade colonial proposto em Les damnés de la terre parece, em mais de um ponto deste livro, unificar e uniformizar um conjunto de sujeitos sem mais referências à sua realidade social ou cultural. Não há necessidade de calar aqui as perplexidades que podemos encontrar. As mencionar também faz parte da homenagem. Penso que, muitas vezes, o Fanon militante se mete a produzir noções que servem a causas e causas da libertação. No entanto, o grandioso clínico que Fanon era é mais sutil, mais matizado. E ele observa bem, já nos anos 60, assim como um Balandier postula por Brazzaville, que o recurso a práticas ocultas, a forças supostas tradicionalmente mágicas, em detrimento da subjetivação das ações, também é uma forma de regressão. Em resumo, assim que Fanon volta a ser um clínico, ele designa o sujeito sofredor o mínimo possível por um padrão tradicional, independentemente da estima ou da fascinação que ele sente face aos artifícios arcaicos e às supostas violências ancestrais.

Se, pois, se cessasse, mesmo que fugazmente, de considerar como natural e normal a imposição de um monolingüismo do Outro, então certas reinvindicações de retorno às fontes se iluminariam. Elas não buscam idealizar um passado soberano, um modo de origem a reencarnar em seu próprio ser e em sua própria soberania, mas elas buscam conservar uma força, uma virulência e uma autoridade para línguas e memórias vivendo em contrabando, se mantendo tanto perto quanto contra os modos de imposição de des-subjetivação característicos dos discursos imperialistas e colonialistas. Não se trata para Fanon de exaltar um passado com o qual a reconciliação total valeria como uma libertação total, mas de se recusar a envergonhar e silenciar os usos e as palavras e, sobretudo, os pontos de endereçamento, os quais permitem, a um saber do corpo martirizado, se figurar. O apelo à uma desalienação não se desdobra em nostalgias: uma confiança no saber do corpo o tece. Que corpo? Não o corpo culturalizado, constituído e suportados pelas técnicas e os usos do corpo característicos dos processos ancestrais. A antropologia cultural não é o parceiro político e epistêmico procurado.

“Não devemos tentar fixar/consertar o homem, pois seu destino é ser frouxo”, lembra-nos Fanon, sem dúvida aqui muito mais sartriano do que freudiano [18]. Este saber do corpo, verdadeiro motor da figuração da condição humana, deve-se encontrar e manter como tensão. A partir daí, o que poderia ter dado ao leitor apressado a sensação de se encontrar, ao final de Peau noire, máscaras blancs, diante de um novelo de contradições, ganha força e direção. Não, não há incoerência na sucessão de proposições tão fortes como: “Eu, o homem de cor [19]” e “O Negro não é. Também não o Branco [20]”. Há apenas, e isto é decisivo, uma busca obstinada e feliz do que cria para as alteridades a oportunidade de chegarem. Também é um total contrassenso reduzir Fanon a um culturalismo; suas bases doutrinárias essenciais eram fenomenológicas, jasperianas e sartrianas; a psicanálise e a psiquiatria às quais ele recorreu, com suas ambivalências e suas ignorâncias, não estavam de forma alguma inscritas do lado do culturalismo – demonstrei isto, seguindo outros autores, entre os quais Alice Cherki e Guillaume Suréna.

Quanto mais eu releio Fanon hoje, repensando, associando a certos tratamentos de pacientes triturados pelas violências e os assassinatos da história, mais eu situo como determinante esta dimensão da enunciação que deve segurar o tranco, resistir. Esta boa fé deve ser testada e reconhecida ao preço de um engajamento na transferência no qual o clínico não tem que se fazer o tempo todo de morto, não tem que silenciar para o paciente a impressão que ele sente que naquele momento da cura se decide uma guerra travada e não perdida contra a fala. Diante de tais pacientes, nós sentimos como a desesperança se traduz em ataques (formas de expectativa) em direção ao acontecimento que cria a música, as escanções e o poder de evocação da fala humana.


Notas

[1] Publicado no número DOMINATION ET RÉVOLTE – FRANZ FANON da Revista “Vie sociale et traitements” (ERES / VST 2006/1 no 89 | pages 43 à 64)

[2] É justo ressaltar que imediatamente a Liga dos Direitos Humanos e das sociedades científicas de antropólogos e historiadores lançaram petições que, todas, tiveram um inegável sucesso, mas que deveria ter tido ainda mais amplitude.
[3] Meditaremos também sobre as palavras do deputado UMP Lionel Lucas: “Devemos escrever a história e ensiná-la para que as crianças saibam que a França não era colonialista, mas colonizadora e que ela transmitiu valores republicanos às elites que hoje lideram o povo.” Abster-me-ei de citar contra-exemplos para não sobrecarregar o editor com o volume deste texto.
[4] Cito as palavras feitas por Gerard Althabe em minha presença e que ele quis ver publicadas na revista Psychologie clinique, volume 15, “Anthropologie et clinique: recherches antillaises”: “O problema desses antropólogos marxistas não era o de romantizar e encontrar um contra-modelo para o capitalismo na economia primitiva. Sua abordagem era guiada pelo desejo de destacar a natureza do apoio interno que permitia a estas economias “primitivas” uma articulação com o capitalismo. Eles tentavam explicar como o capitalismo penetrava neste tipo de sociedade e tentavam objetivar a natureza do que o capitalismo encontrava nesta sociedade e que lhe permitia se desenvolver. Como resultado, uma outra ideia deles, que era uma ideia marxista na época na França, a de Louis Althusser em particular, era de que tudo o que acontecia como movimentos insurrecionais na África ainda não tinha ainda importância histórica. Como disse Althusser certa vez: “Vamos esperar que eles se tornem proletários para então falar…”. Quando voltei de Madagascar em 1971 e ainda estava cheio de imagens de uma revolta rural que havia ocorrido e que resultou na morte de 3.000 pessoas, eu fiz a esposa de Althusser rir, e o próprio Althusser, que me retrucou que “tudo isso são jequices camponeses que não tem qualquer sentido”. Nunca mais lhes dirigi a palavra desde então. Os antropólogos marxistas não conseguiram construir uma autonomia intelectual que lhes teria permitido continuar para além dos anos 70…”.
[5]A Segunda Guerra Mundial não havia ainda terminado quando o governo provisório de De Gaulle, oficialmente reconhecido desde outubro de 1944, envia para a suas casas os batalhões dos “atiradores senegaleses”, muitos dos quais haviam sido prisioneiros em campos de concentração nazistas. Ao retornarem ao Senegal, muitos desses soldados foram amontoados no acampamento de Thiaroye, nos arredores de Dakar, para aguardar sua desmobilização. Eles foram maltratados. Os subsídios de desmobilização e outros bônus de guerra, que foram dados aos outros combatentes sem demora, foram pagos em atraso e senão muito parcialmente. Levados ao limite, estes homens finalmente se revoltaram; em 30 de novembro de 1944, eles sequestraram o general francês encarregado do campo e só o libertaram após obterem a promessa de que suas reivindicações seriam atendidas. Na noite mesma de sua libertação, os tanques franceses atacaram os fuzileiros desarmados, matando várias dezenas e ferindo outros tantos, embora nunca tenha havido qualquer reconhecimento oficial ou uma contagem exata do número de vítimas. O campo foi completamente destruído e os mortos foram enterrados apressadamente pelos sobreviventes. A maioria dos sobreviventes foi condenada por “insubordi-nação” a penas de dois a três anos de prisão, sentenças que só foram anistiadas em abril de 1947, durante um tour pelas colônias francesas na África Ocidental do Presidente Auriol.
[6] Uma revista da qual, com J. M. Masseault, L. Abenon, A. Bara Diop, C. Coquery-Vidrovitch, eu fui um dos fundadores.
[7] O decreto nº 2262 da Convenção Nacional, de dia 16, chuvoso, segundo ano da República Francesa uma e indivisível abole, por proposição de Levasseur, Danton e Lacroix, “a escravidão dos negros nas Colônias”. Está escrito da seguinte forma: “A Convenção Nacional declara que a escravidão dos negros em todas as colônias é abolida; consequentemente, ela decreta que os homens, sem distinção de cor, domiciliados nas colônias, são cidadãos franceses, e gozam de todos os direitos garantidos pela Constituição. Ela remete ao Comitê de Saúde Pública, para que se faça um relatório sem demora sobre as medidas a serem tomadas para garantir a execução do presente decreto. Aprovado pelos inspetores, assinado Auger, Cordier e H. E. Monnel. Cotejado ao original por nós, Presidente e Secretário da Convenção Nacional. Paris, o 22º germinal, segundo ano da República Francesa, uma e indivisível. Assinado Amar, Presidente, A. M. Baudot, Monnot, Ch. Pottier e Peyssard, Secretário. »
[8] Cf. este outro aspecto do discurso de Chaumette: “Mas o que eu vejo? … homens negros! … a flecha homicida em suas mãos! … Em breve ela vai, sinal de guerra, atravessar todas as casas da região; o sangue fluirá novamente … Pare, guarde esta flecha para o Gesler II inglês ou espanhol que tentará vos escravizar. Pare, não há mais mestres no país em que vós viveis, não há mestres duros a punir, nem escravos à entrega; vós sois todos iguais. »
[9] Em Chimères, No. 19, outono de 1991.
[10] Antes deste movimento, ocorreram preocupações humanistas na psiquiatria e a História da Loucura de Foucault aparece de muitas maneiras caricata. Cito por exemplo: em 1838, Esquirol, desenvolve o primeiro modelo de instituição terapêutica na Real Casa de Charenton. Bouchet, em 1848, enumera os princípios de ocupação dos doentes, ele menciona em um livro de memórias “a individualidade social deve desaparecer e fundir-se na vida comunitária, que constitui a base atual do tratamento dos alienados…”. Ou ainda, no início do século, Hermann Simon, um psiquiatra alemão que insiste na importância de envolver os doentes do asilo Guttersloch na melhoria de seu ambiente de vida. Ele rejeita a doutrina da irresponsabilidade do doente mental e postula que, a partir do momento no qual o homem é considerado como responsável de suas atividades, ele pode compartilhá-las com outros, e com os outros compartilhar o peso de seus atos.
[11] Deve-se lembrar a este respeito que, durante a guerra do Vietnã, o estado maior americano utilizou os trabalhos dos etnólogos sobre os rituais de luto: para evitar ao máximo possível a restituição dos cadáveres a seus inimigos, advertidos que estavam, por esses trabalhos, dos impactos psicogênicos que o impedimento de um luto tinha sobre a população daquele país.
[12] Os doentes mentais foram objeto de uma lei de proteção: a lei de 30 de junho de 1838. O objetivo do legislador era proteger a sociedade das “ações dos alienados”, evitar os confinamentos arbitrários e, ao mesmo tempo, prover o tratamento e os cuidados aos loucos.
[13] Dekker et al. 1955, página 1108.
[14] Em Medical and Surgical South, abril de 1939.
[15] Sublinhado por nós.
[16] Peau noir, masques blancs, p. 65.
[17] Ibid, p.186.
[18] Ibid, p. 187.
[19] Ibid, p. 187.
[20] Ibid, p. 187.

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