Por Cristhian Cecchetti
“Este breve ensaio visa expor as relações sociolinguísticas entre os povos ameríndios do território brasileiro colonial com seus “senhores” portugueses. E em conjunto analisaremos a disposição de supressão sociolinguística dos povos africanos ocidentais trazidos sob a condição de “escravos” do império. Deste modo pretende-se levantar, utilizando o mote do pensamento de Frantz Fanon, as vicissitudes raciais presentes ainda hoje como herança maldita de um passado mudo e mutilado, expressando literalmente como as respectivas identidades de origem sofreram um desvio fundamental como projeto de nação em decorrência do regime de colonização imposto. “
Ainda permanecemos sob uma dualidade incomensurável, reafirmada perante inúmeros eixos de possessão, ao qual insistiremos enxergar uma antiga polarização de classe, uma que nos deixa o indicativo de um passado tanto intragável quanto irresolvido. Esta dualidade se apresenta na forma de um par fundacional, revelando o estigma de uma gestativa nação demarcando os limites de seu território. Portanto, eis a figura: colonizador entre colonizados. Neste cenário a língua corre mais rápido que a mão, a voz ecoa mais longe que a escrita, assim estaria travado um embate mais terrível e acirrado que a conquista territorial, e mais instável que a supremacia de aliança dos povos nativos de Pindorama: a disputa pela linguagem é uma potente realidade de conquista. E esta disputa, defenderemos, perpassa caminhos tão profundos quanto as jazidas de ouro do sertão, que se escavaram à exaustão nos meados do séc. XVII. Possui ramos traumáticos mais entranhados que as diversas atividades de guerra realizadas em nome da manutenção e unidade das terras brasílicas; em suma, a conquista e fabricação de uma unilateralidade linguística talvez seja uma das provas mais violentas e decisivas do projeto de colonização europeu diante de um “Brazil” a se colonizar.
A missão divina da Língua Brasílica:
Enquanto deparavam-se com um montante surpreendente dos habitantes locais, variedades inimagináveis de povos nativos, os primeiros navegadores que aqui fincaram os pés, perceberam desde cedo, que o abismo da fala talvez fosse muito mais vasto que o oceano que haviam cruzado. A inabilidade linguística e o rígido rasgar cuspido dos portugueses não teve, pelo menos inicialmente, muito êxito para comunicarem-se com os ameríndios. A saída até então, era a mimética de suas expressões, as caricaturas indicativas e analogias fonéticas disponíveis nas primeiras formas de contato que suavam para inventar as mais boas desculpas de aproximação. Tenhamos em mente tal cena, criaturas deploráveis, famintas e escorraçadas pela fatigante viagem marítima batendo com seus cascos contra as areias quentes do litoral, cambaleantes e suspirando sons estranhos com uma língua embolada. Assim, os portugueses deixam escapar de suas bocas as primeiras falas de ‘senhores de vossa terra’, contudo não podiam exercer ainda este direito sagrado de posse visto que os senhorios não eram compreendidos. Os honrosos representantes de Camões, aqui encalhados, não foram ovacionados e cobertos de presentes como se esperaria a heróis dos mares. Muito menos seriam proclamados pelos nativos de “superiores”. Até então, os primeiros grupos que fizeram contato, pelo contrário, tiveram que abrigar e cuidar desses viajantes perdidos, e tal qual crianças, passaram a instruí-los em como sobreviver nestas terras. Trazem consigo, portanto, suas próprias imagens num ornado pedestal dourado chamado Civitas, tirando de seu próprio espelho o reflexo do mundo que agora lhes pertence. O espelho português está carregado de uma tramoia clássica, o convidativo olhar refletido neste simbolizaria de antemão um contrato. Este, que poderia ser assinado justamente a partir de uma única mirada em tal artefato, teria sido um marco mítico de tantas outras narrativas fantasiosas que nos contam hoje sobre a primeira chegada dos navegantes europeus nestas terras. Diante de tudo isto, seria mais do que esperado indagar, que o senso de preservação desses povos tenha os impelido, ou a se afastar desse animal doente que acabara de surgir do mar, ou ainda termina-los antes que se achegassem demasiado perto. Por isso, tanto quanto mantermos nutrido essas fantasias românticas de nossos colonizadores, padeceremos de uma certa infantilização histórica.
É mais do que documentado o esforço monumental e calculado das primeiras missões jesuíticas, em formular um meio de transcodificar as diversas línguas nativas da costa numa outra, intermediária, que pudesse servir de meio doutrinário, e ferramenta de conversão dos povos “pagãos”, habitantes imemoriais do território litoral. E é justamente graças a um tronco linguístico em comum, variante arcaica identificada com o Tupi, que foi possível molda-la numa espécie de dialeto aportuguesado de vasto alcance. Este era o projeto de subversão discursiva do Tupi iniciado pelo Pe. Juan de Azpilcueta y Sebastian – apelidado de Pe. Navarro – e posteriormente, aprimorado pelo Pe. José de Anchieta[1], ao qual chamariam de Língua Brasílica. Ainda que diversos colonos tenham adquirido por convivência e proximidade com as línguas locais, alguma fluência, é preciso salientar a fluidez com que certas tribos tinham em trocar e adquirir mais de uma matriz linguística. Nos é relatado, por exemplo, no Tratado Descritivo do Brasil em 1587, que os Aimorés, tidos por Tapuias[2], após perderem os segredos de sua língua para os colonos invasores, inventaram “outra nova que se não entende de nenhuma outra nação do gentio de todo este Estado do Brasil. ” [3] A cunhagem desta língua brasílica, portanto, carrega mais do que uma mera ‘razão de estudos’- Ratio Studiorum– da Companhia de Jesus, era uma ponte de comunicação estratégica que viabilizava a colonização em massa desses povos. Seu objetivo proposto era simples: desenvolver uma representação escrita desta língua costeira, instruir novos intérpretes e fazer com que os nativos pudessem se confessar, despertando-os do “sono do pecado” [4] e aderindo a fé da cristandade.
Em contrapartida, ao passo que os invasores aglutinavam conhecimento da língua da costa, muitos dos nativos iam desenvolvendo outras formas de se comunicar, estratagemas sonoros para se distanciar da semântica da colonização que avançava território adentro. E da mesma forma com que se afastaram das regiões litorâneas, afastavam concomitantemente sua linguagem dessas terras, lançando os segredos da boca de seus ancestrais nas profundezas da mata que os gerou. Os colonizadores, por sua vez, ávidos pela instalação daquela língua intermediária, ferramenta dos primeiros intérpretes aqui aportados, foram retirando dessas aproximações linguísticas suas próprias conclusões. Por exemplo, associaram a ‘falta’ das consoantes F, L e R da língua comum das nações costeiras com a ausência de seus princípios de regimento, “em sinal de que não teriam fé, lei, nem rei ”[5].
Evidenciando um confronto alternativo aos das invasões geográficas perpetradas pelos colonizadores portugueses, corre em paralelo com as missões do sertão e das incursões da costa, uma batalha pela linguagem. Um rebentamento fonético que rivaliza o choque cultural pra além da destruição da terra, e assim estariam postas em tensão as formas milenares desses povos existirem para o outro e para si mesmos. Já que a artificialização de sua identidade perpassa esta recriação da língua Tupi, a substituição da curiosidade pelo estrangeiro sorrateiramente dá o seu bote, tornando-os primeiro esquecidos das falas de seus antepassados, e posteriormente, encobrindo o acesso a seu repertório de vida originário. A cada avanço da língua brasílica subtrai-se da riqueza da língua nativa sua forma de ser, a cada escapada de sons que os Tupinambá soltavam no ar, indo parar no ouvido aguçado do colonizador, surgia assim uma palavra escrita. Portanto, é destas vitórias literalmente silenciosas, das transmigrações tipográficas, que a pena das araras aos poucos passaria de ornamento ao pincel. Sendo desta trincheira linguística que o colonizador, prostrado em sua figura invasora, operaria de dentro de seus sonhos de domínio uma endêmica absorção cultural, duplo jogo narcísico. Ele se isola em seu projeto estrangeiro ao passo que desfigura a vida do colonizado, fechado em sua própria cultura condena todas as outras em que encosta, a um exílio interno, maldição caraíba.
Partindo da alienação de seus próprios mitos, o processo de lusitanização dos nativos encontraria nessa disfonia violenta, uma difícil tarefa. Tarefa essa que os conduzirá a uma imagem da Babel bíblica, pois a Babel[6] que topavam, esta dos trópicos, era ainda mais complexa e variada. Aqui, as línguas se entrecruzam tal qual os cipós das florestas, se destroem na medida que se encontram, puxando os ramos e troncos de centenas de outras línguas junto com os ventos da colonização. É desse significado de “missão divina”, sentido primeiro da subversão linguística das nações ameríndias, que a função da língua geral brasílica, se encontrará atrelada. Seu objetivo seria honrar, desde o antigo testamento, um dever sagrado de unificar as “Babéis” mundo afora, destruindo estes monumentos à polifonia bárbara, convertendo-as numa só língua, servidão sonora a um só deus: o unívoco da fé que conduz à salvação.
Assim, ao longo dos séculos seguintes, com a divisão administrativa do território anexado por Portugal em dois estados, a saber: o Estado do Maranhão e do Grão-Pará e o Estado do Brasil, foi operado a implementação de uma dualidade além de político-geográfica, sobretudo, linguística. O esquecimento sistemático, provocado pela destruição das Babéis bárbaras, também apagou os vestígios de inoculação de duas línguas interétnicas – derivadas daquele projeto de associação jesuítica do Tupi – durante o período colonial: a língua geral paulista (LGP) e a língua geral amazônica (LGA).
“ Os jesuítas sabiam que precisavam de uma língua e apostaram no português. Não por um sentimento nacionalista, pois nos reinos dinásticos não havia essa preocupação […] Portugal queria evangelizar, catequizar, comercializar, ganhar dinheiro. Os jesuítas, por exemplo, perceberam o que hoje qualquer curso de ensino de línguas sabe: uma criança com sete anos tem mais facilidade para aprender uma segunda língua do que qualquer adulto. Eles passaram, então, a apostar nas crianças. O padre Serafim Leite, na História da Companhia de Jesus, descreve esse processo, que foi muito interessante. Ele conta como Portugal fechou um orfanato que tinha umas trezentas crianças (foram os primeiros meninos de ruas a chegar por aqui) e as soltou nas aldeias da Bahia, para que elas ensinassem o português aos índios. Um ano depois, nenhum índio estava falando português, mas as trezentas falavam a língua geral […].
Foi então que os jesuítas descobriram que havia uma língua de filiação tupi que podia ser compreendida por índios de outras línguas, assim como nós, brasileiros, podemos entender o espanhol. Então apostaram nessa língua como língua de comunicação interna da colônia. Nesse sentido, existe uma política de línguas de Portugal bem clara. Uma política de estimular o uso local, interno, da língua geral. […] Havia o português, que era a língua oficial de comunicação para fora, e havia a língua geral, que era a língua de comunicação para dentro. As pessoas aqui falavam a língua geral entre elas. Não escreviam, mas falavam. ”[7]
Deste modo, podemos observar que o projeto messiânico dos jesuítas mesmo sofrendo inúmeras derrotas neste campo de batalha linguística até a metade do século XVII, contudo permaneceu resguardado numa estratégia interna. Pois se em 1560 era possível ouvir através das margens do Rio Amazonas, ou melhor, do Rio Babel, mais de 718 línguas autóctones; duzentos anos depois da inoculação da Língua Geral, encontraremos a massificação do Tupi, inclusive sob a variação manipulada da LGA – Nheengatu –[8], como língua consequentemente dominante em quase todo território. Ou seja, mesmo diante da impossibilidade de penetração da língua portuguesa no início do processo de colonização, o objetivo de esfacelamento da plurilíngue abundância nativa foi, de certo modo, realizado. E com isso, a unificação das Babéis bárbaras foi achando lugar numa das fontes transviada dessas águas faladas.
Entre os caminhos do Mocambo:
Os primeiros povos africanos foram trazidos para estas terras como subprodutos do comércio litorâneo da costa ocidental africana, isto é, eram inicialmente trocados pelas mais diversas especiarias do oriente como alívio de carga extra, servindo de dupla garantia: efetiva mão-de-obra nas terras americanas e lucro premeditado de uma longa rota de mercadorias coloniais. Estima-se através das cartas de Fernão Cardim, que já entre 1583 e 1590, a cidade da Bahia contava de “três a quatro mil escravos de Guiné” ao lado de três mil portugueses e oito mil índios cristianizados nos seus arredores, trabalhando principalmente num dos trinta e seis engenhos locais. [9]
Houve portanto uma extradição violenta da diversidade étnica africana lançada diretamente nas primeiras décadas de colonização brasileira. Podendo se encontrar em plena Pernambuco do início do século XVII, por exemplo, congoleses, guinés, angolanos, nigerianos e moçambicanos nas mesmas atividades de trabalho. Assim, não foi difícil com que se desenvolvesse entre esses povos escravizados uma língua em comum “que, assim como a língua geral criada para fornecer comunicação entre vários grupos de Tupi, houve uma língua negra criada para fornecer entendimento entre os vários grupos africanos. A diferença é que a língua geral indígena foi criada pelos jesuítas, enquanto a língua geral negra foi criada pelos próprios africanos. ”[10] Dispostos então, das línguas francas das zonas costeiras da África controladas pelo comércio escravo, – i.e. o Quimbundo, Nagô, Bantu e Mandinga – esses povos subjugados como colonizados associaram ao panorama sociolinguístico do Brasil, a sua marca definitiva. Faziam correr, muitas vezes em segredo, e em meio a palavras agrilhoadas, sua cultura e herança cujo esforço da colonização tentava extirpar completamente. Essas línguas gerais negras, são induzidas a nascer, portanto, a partir dos traumas da escravidão junto da vontade inapreensível de se comunicar. Podemos imaginar que a dimensão de propagação dessas línguas acompanhava cada um de seus gestos, penetrando fundo na terra como as ferramentas de mineração que os forçavam a utilizar. Pois é desse rapto e imposição estrangeira, que o imperativo gestativo dessa língua encontrará os meios de sobreviver ao lado das cicatrizes, é no fundamento da inumanidade que a fratura cultural da escravidão refundará uma outra possibilidade de origem para os primeiros negros brasileiros.
Seja nas moendas do nordeste ao longo do século XVI, ou nos campos de mineração do interior a partir do XVIII, seja nas lavouras de café do sudeste no XIX, a força de trabalho predominante foi a desses povos escravizados. Não havia sequer um cigarro aceso ou café doce tomado na metrópole que não fosse produto do sangue e suor do trabalho escravo. Somente pelo Cais do Valongo no Rio de Janeiro, estima-se que passaram mais de 38% de todos aqueles trazidos sobre as mortalhas de ferro do racismo colonial, ou seja, aproximadamente 2.3 milhões de pessoas, habitantes continentais de África[11]. Embora em estatutos diferentemente inferiores, a hierarquia forçada do trabalho acabava por igualar os nativos indígenas e os africanos numa teia de valores abomináveis. “A viagem em condições terríveis a que eram submetidos todos os anos milhares de negros africanos transformava a experiência da navegação no momento de passagem para uma nova identidade”[12], ao passo que iam cruzando o Atlântico deixavam de ser humanos, eram assim lançados num processo de bestialização extrema. Arrancavam tudo que se podia deles, seus nomes, familiares, dignidade, o tempo gasto nos porões das caravelas ia corroendo suas lembranças. Destino mais que mortal para os que embarcavam nos navios negreiros. Pois para muitas dessas culturas cruzar o além-mar significava um rito de passagem, o véu das águas salgadas separa mundos, colhe os corpos dos mortos e transmuta a alma dos vivos. Brasil, terras vermelhas não de brasa, e sim do sangue. As lendas sobrevivem em meio a essa realidade mutilada se adaptando como a força que mantém aceso o caminho de volta pra casa. Contudo por mais forte que fosse essa chama-guia das diversas culturas, não tornará a leva-los de volta desse além-mar. A força do chicote do colonizador estala forte na tentativa de expurgar essas raízes culturais e controlar o jugo instável de seus animais trabalhores. Ao negro escravizado dessas terras lhe parecerá mais formidável aquela morte da travessia do que a vida nas lavouras. É dessa segunda morte cultural na chegada, que irá obriga-los a sepultar o cadáver de seus costumes na esperança de uma sobrevida local, afastar-se do inferno colonial de dentro da própria colônia: as fronteiras do sertão.
Através de uma correspondência do Pe. Pero Rodrigues, chegado da Angola na Bahia em 1594, ele nos revela já em 1597 os principais inimigos que o processo de ocupação portuguesa acumulou:
“ Os primeiros inimigos, são os negros de Guiné alevantados que estão em algumas serras, donde vem a fazer saltos e dar algum trabalho, e póde vir a tempo em que se atrevam acometer e destruir as fazendas, como fazem seus parentes na ilha de S. Thomé. ”[13]
Deste modo, temos a dimensão histórica aproximada da formação dos primeiros mocambos, refúgios para os que haviam arquitetado suas fugas do sistema de trabalho compulsório português, o escravagismo colonial. Ao que tudo indica, o Pe. poderia estar se referindo ao Mocambo dos Macacos, um dos mais antigos e datado núcleo de povoamento desses escravos, localizado na Serra da Barriga, antiga Capitania de Pernambuco, atual Alagoas. Que utilizando a vantagem geográfica da Borborema iniciou um vasto e complexo sistema de assentamento, cujo século seguinte nomeará de Quilombo dos Palmares[14]. Ao contrário do que a historiografia romantizada fez crer, os mocambeiros ou quilombolas eram muito mais do que escravos escondidos e isolados à espera de ataques, a dinâmica social estabelecida era tão vasta quanto eram os diversos tipos de quilombos que se formavam colônia e continente afora.[15] Além de variarem segundo o modo de produção econômico local da província, estabeleciam elas próprias sua hierarquia social e suas respectivas organizações econômicas, inclusive rotas interfronteiriças de comércio – i.e. povos das Guianas. Algumas eram semi-nômades, com facilidade de trocar de território de tempos em tempos, outras se estendiam por regiões tão extensas que chegavam a cobrar tributos das cidades coloniais mais próximas. Como ainda, assumiram uma imponente frente no posto da guerra anti-colonial daqueles períodos. Pois do momento que podiam viver mais livremente, reorganizavam-se nos seus regimes culturais de origem, adaptando-os ao novo continente, assim integrando com suas características próprias a malha e herança sociolinguística do país.
Conclusões:
A partir dessa variabilidade geopolítica, bem como a dimensão histórica da influência cultural afrocentrada dessas primeiras nações surgidas no interior do processo de colonização, é que pode-se entender certa “Amefricanização”[16] como molde referencial de identidade étnica subsequente dessa disputa sócio-política. Derivada tanto do fator de interação desses povos deslocados e unificados pela pressão de dominação do colonialismo europeu, quanto pelo reconhecimento de domínio relativo a que se designa comumente a posse territorial com somente para as sociedades da “civilização”. A Améfrica se enraizou de seu próprio sangue coagulado, e a partir do esforço genocida secular do europeu, lutou para dali nutrir uma outra forma de existir social e politicamente. Este “sistema etnogeográfico de referência”[17] deve, enquanto título inegável do que hoje entendemos falar por brasileiros, contribuir para a assimilação de uma identidade inconsciente nacional, isto é, desapercebida e presente sobretudo na estrutura linguística, do jeito de “fazer-se-fala” com o português brasileiro. A contínua segregação estratificada entre a polarização de classe, senhor e escravo, acha novo paralelo de atualização no Brasil dividido entre patrão e desempregado, cujos respectivos vocabulários também não conversam muito bem, estes que de tão separados parecem não fazer parte do mesmo país. Aqui a linguagem sofre uma clivagem pra além da classe, ela condiciona como sintoma o embate socioeconômico do racismo colonial para dentro dos limites interpessoais, reestruturando-se como autoimagem do universo simbólico da psique enquanto reflexo externo da identidade do Ego. Por exemplo, o falar como gramática seria sintoma de instrução escolar, condicionamento arquetípico associado na atuação histórica dos grupos jesuítas em função do processo de colonização – ainda em curso, e associado a concentração de poder das classes dirigentes pelo grau de alienação imposto através da forma de comunicação padrão. Logo é usualmente tida por domínio comum de falantes que se autodeclaram brancos. Efeito somático de constrangimento vocabular. Enquanto a fala corrente, solta e desapreciada que corre entre a maioria dos grupos e presente nas mais diversas situações, flui sem dificuldades em “fazer-se-analfabeta”, e na medida em que esteve associada com as populações negras e pobres, constituem o campo de embate da disputa sociolinguística em que aparecem à vontade, desinibidas. As corruptelas gramaticais não são a exceção da língua, são ágeis motores linguísticos de perpetuação histórica, são inclusive a dupla prova da sobrevivência cultural amefricana: compõe de um lado os ditos descontraídos e livres dos esteios daquela semântica de colonização e por outro demarca-se como violenta fronteira linguística dessas relações raciais. Deste modo, vê-se como o fazer-se-fala é crucial para compreender a conexão entre a identidade de polarização racial da colonização e o fenômeno da linguagem. É esta a mesma força político-econômica desse antigo regime-colônia, que ainda atinge um país, alienado de sua contraparte histórica, que se considera igual. Quando em realidade, na própria fala o brasileiro ingênuo de seu passado, (e geralmente recalcando sua inconsciência racista) pega-se mordendo a própria língua, quando não se justifica numa piada geralmente associada ao seu objeto parcial predileto, portanto símbolo sexual da cultura: a bunda.[18] O conto muito bem ornado da “democracia racial” Freyreana tem servido simultaneamente como recalque e analgésico cultural do racismo, embalando com as ilusões sensuais de suas mucamas da boa consciência histórica, um passado que literalmente foi posto em branco. Tudo isso reforça-se na tese fanoniana, a saber, de que “falar é existir absolutamente para o outro”, e que nesta alteridade existencial, “falar […] é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização”[19], fundando conjuntamente das dicotomias linguísticas, as dicotomias sociais. Assim, se esta civilização encontra-se cindida por este recorte racial, ainda que o dissimule para si, se a nossa sociedade denega seu racismo, promulgando corretamente pela gramática, a igualdade miscigenada do caldeirão das raças, é porque sobre essa máscara da linguagem, essa fantasia narcísica do falar se retroage como alienação racial: “o branco fechado em sua brancura, e o negro em sua negrura. ”[20]
“ Todo povo colonizado – isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural – toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. ”[21]
Portanto, dado a breve exposição da sociogenia dos processos de inferiorização racial no Brasil colonial, constata-se que “existe uma assunção em massa de um complexo psicoexistencial.”[22] Este complexo inicia-se pela configuração econômica de uma certa estrutura social, para desembocar como efeito psicopatológico do processo de colonização, este enquanto fenômeno evidenciado na linguagem própria que se construiu. Isto é, trauma violento da fala em que foi feita instrumento de colonização, forçada a ser modo de existência histórica de um determinado processo de ruptura cultural.
Referências
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LEWIS, Liana – Raça e uma nova Forma de Analisar o Imaginário da nossa Comunidade Nação. Da miscigenação freyreana ao dualismo fanoniano. In: Civitas, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 1-10, jan.-abr. 2014.
[1] Cf. ANCHIETA, José de – Arte de Grammatica da Lingua mais usada na costa do Brasil, Ed. Antonio de Mariz, Coimbra: 1595. [domínio público]
[2] Vocábulo apropriado do Tupi que se ressignificou na boca dos colonizadores para se referir aos povos nativos do sertão como “bárbaros fugidos”.
[3] SOUSA, Gabriel Soares de – Tratado Descritivo do Brasil em 1587. In: Em que se declara quem são os aimorés, sua vida e costumes; xxxii, pp. 78-79.
[4] LEITE, Serafim – Novas Cartas Jesuíticas, Ed. Nacional, São Paulo: 1940. In: Cartas Avulsas, II, Carta do P. João de Azpilcueta Navarro aos Irmãos de Coimbra, de Porto Seguro, 19 de Setembro de 1553. pp. 154-159.
[5] BRANDÃO, Ambrósio Fernandes – Diálogos das Grandezas do Brasil (1618). Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letra, 1930, p.266.
[6] Cf. VIEIRA, António – Sermão do Espírito Santo
[7] BESSA-FREIRE, José Ribamar – Nheengatu: a outra língua brasileira. In: História Social da Língua nacional. Org.: Ivana Stolze Lima, Laura do Carmo – Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2008; pp. 127-138.
[8] “Ela não foi produzida nas aldeias, mas foi sistematizada e difundida a partir delas. Os povos indígenas que a desconheciam, denominados genericamente de ‘tapuias’, aprendiam-na logo ao serem descidos para os aldeamentos. O ‘Nheengatu’, a ‘fala boa’ dos povos Tupi, foi se tornando, dessa forma, a língua franca dos intercursos entre brancos e índios ou mesmo entre as diferentes nações indígenas. “ QUADROS, E. G. – A Luta pela Língua. In: História: Questões & Debates, Curitiba, n. 35: Ed. UFPR, 2001. p. 212.
[9] CARDIM, Fernão – Tratados da Terra e Gente do Brasil. Ed. J. Leite & Cia – Rio de Janeiro: 1925. In: Narrativa Epistolar de uma Viagem e Missão Jesuítica, p. 288.
[10] RODRIGUES, José Honório – A Língua Portuguesa no Brasil Colonial. In: Empire in Transition: The Portuguese World in the Time of Camões. Org.: Alfred Hower, Richard A. Preto-Rodas. University of Florida Press – Florida: 2018; Tradução livre, p. 47.
[11] Comparado às estimativas totais de 5.848.266 entre 1501 e 1866, consultado a partir do Viagens: O Banco de Dados do Tráfico de Escravos Transatlântico. Disponível em: <https://www.slavevoyages.org> Acesso em: 14 de jun. de 2019.
[12] MARCOCCI, Giuseppe – Escravos ameríndios e negros africanos, uma história conectada – Teorias e modelos de discriminação no império português (Ca. 1450-1650). In: Tempo. Vol. 15, jan-jun, 41-70, 2011. p.48.
[13] BIBLIOTECA NACIONAL. Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro (Vol. XX). Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger, 1899. p. 255
[14] Nome dado pelos portugueses a toda região distrital do interior que, longe das cidades costeiras e em regiões montanhosas, davam-se florestas de palmeiras.
[15] Cf. GOMES, Flávio dos Santos – Mocambos e Quilombos: Uma história do campesinato negro no Brasil – 1ª Ed, – São Paulo: Claro Enigma, 2015. In: Cap. I, ’ Fenômeno Hemisférico’.
[16] Cf. GONZALEZ, Lélia – A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, Nº. 92/93 (jan./jun.). 1988b, pp. 69-82.
[17] Ibid. p.77.
[18] Trocadilho psicanalítico que a antropóloga Lélia Gonzalez explica através da assimilação cultural e deslocamento simbólico da palavra “bunda” e sua origem vocabular derivada de um grupo étnico banto de Angola que se classificavam como bundos. Cf. Ibid. p.71.
[19] FANON, Frantz – Pele negra, máscaras brancas. Trad.: Renato da Silveira – Salvador : EDUFBA, 2008. p.33.
[20] Ibid. p.27.
[21] Ibid. p.34.
[22] Ibid. p.29