Por Li Minqi, traduzido por Leonardo Griz Carvalheira
Prefácio do livro The Rising of China and the Demise of the Capitalist World Economy, NYU Press, 2008 [“A Ascensão da China e o declínio da Economia-Mundial Capitalista”].
Este livro é diferente de muitos dos livros sobre a China hoje. Não é um livro que vai discutir como o crescimento econômico dramático da China e sua crescente influência geopolítica vão constituir uma ameaça econômica, militar e cultural ao ocidente. Nem vai discutir como a China irá ascender para se tornar a próxima hegemonia mundial, qual estratégia a China deveria adotar para esse propósito ou qual modelo econômico e político a China deveria seguir para ser um ator “responsável” na política mundial. Contudo, esse livro vai discutir os processos históricos mundiais fundamentais que levaram ao contexto histórico mundial atual, sobre o qual tanto a percepção da China como uma ameaça ao ocidente quanto a percepção da China como uma ascendente potência mundial benigna tentaram refletir.
Na visão deste autor de que o sistema-mundo existente, o capitalismo, irá acabar no futuro não-tão-distante (possivelmente durante a vida de muitos leitores) e será substituído por outro sistema ou sistemas. Este livro é mais sobre o “declínio da economia-mundial capitalista” do que sobre a “ascensão da China”. Ele discute a ascensão da China na medida em que ela emerge do mesmo processo histórico que contribuiu para o declínio do sistema-mundo existente. A ascensão da China é parte integral desses processos históricos e representa uma grande aceleração desse processo.
O capitalismo (ou a economia-mundial capitalista) é um sistema social baseado na produção para o lucro e na acumulação ilimitada de capital. A operação e a expansão do sistema-mundo existente depende portanto de um conjunto de condições históricas que ajudem a assegurar baixo custo ambiental, baixo custo salarial e baixa taxação. Entretanto, as operações do capitalismo segue certas dinâmicas ou “leis de movimento” que no longo prazo tende a aumentar todos esses custos. Todos esses custos aumentam além de um certo ponto em que o sistema capitalista não é mais lucrativo e a acumulação incessante de capital terá que chegar ao fim.
Historicamente, expansões geográficas têm sido um mecanismo principal pelo qual o sistema trouxe novas áreas de baixos custos que ajudaram a contrapor a tendência secular de aumento de pressão sobre a lucratividade. A China foi uma das últimas grandes áreas geográficas que foi incorporada à economia-mundial capitalista e não participou ativamente na divisão do trabalho do sistema até muito recentemente. Por isso a China funcionou como uma reserva estratégica para a economia-mundial capitalista, e a mobilização dessa grande reserva estratégica sinaliza a iminente crise terminal do sistema-mundo existente.
Como eu cheguei na atual posição intelectual? Eu pertenço à “geração 1989”. Mas ao contrário do restante da geração 1989, eu fiz a incomum trajetória intelectual e política da direita para a esquerda, e fui de um “democrata” neoliberal a um revolucionário marxista. Fui estudante no Departamento de Administração Econômica da Universidade de Pequim durante o período de 1987-1990. Esse departamento tornou-se agora a Escola de Administração Econômica de Guanghua, um importante think-tank neoliberal chinês que advoga pela liberalização do mercado e privatização completa. Na Universidade de Pequim, estudamos microeconomia e macroeconomia neoclássicas padrão, e o que eu aprendi depois que se chamava economia da “Escola de Chicago” – isto é, a teoria de que somente o livre mercado com claros direitos de propriedade e um “governo pequeno” podem resolver todos os problemas econômicos e sociais de maneira racional e eficiente.
Fomos convencidos de que a economia socialista era injusta, opressora e ineficiente. Ela recompensava um estrato de trabalhadores preguiçosos e privilegiados no setor estatal e “punia” (ou ao menos desvalorizavam) pessoas capazes e inteligentes como empreendedores e intelectuais, a quem consideramos ser o creme da sociedade. Portanto, para a China ter qualquer chance de alcançar o ocidente, de ser “rica e poderosa”, tinha que seguir o modelo de capitalista de livre mercado. Empreendimentos estatais eram ineficientes por natureza e deveriam ser todos privatizados. Trabalhadores do setor estatal deveriam ser forçados a participar na competição de mercado e aqueles que fossem incapazes, muito preguiçosos, ou muito burros, deveriam ser abandonados.
Os anos 1980 foram uma década de agitação política e intelectual na China. Apesar de algumas restrições oficiais insensíveis, grandes setores da intelectualidade chinesa eram politicamente ativos e foram capazes de impulsionar ondas sucessivas da chamada “emancipação das ideias” (jiefang sixiang). A crítica intelectual do socialismo chinês já existente ocorreu primeiro amplamente dentro de um discurso marxista. Intelectuais dissidentes pediram mais democracia sem questionar a legitimidade da Revolução Chinesa ou as instituições econômicas do socialismo.
Depois de 1985, porém, reformas econômicas se moveu cada vez mais na direção de um livre mercado. A corrupção cresceu e muitos das elites burocráticas se tornaram os primeiros grandes capitalistas. Enquanto isso, dentre os intelectuais, houve uma forte guinada à direita. A primeira fase maoista do socialismo chinês foi sendo vista cada vez mais como um período de opressão política e fracasso econômico. O socialismo chinês havia supostamente “falhado”, já que perdeu a corrida pelo crescimento econômico para lugares como o Japão, a Coréia do Sul, Taiwan e Hong Kong. Muitos consideravam o próprio Mao Zedong um camponês chinês ignorante e atrasado que se tornou um déspota cruel, sedento por poder, que foi responsável pelo assassinato de dezenas de milhões. (Essa percepção de Mao não é de forma alguma nova, a conhecíamos desde os anos 1980) Os intelectuais politicamente ativos não usavam mais o marxismo em seus discursos. Em vez disso, a economia liberal e neoliberal clássica ocidental, como representada por Friedrich Hayek e Milton Friedman, se tornou a ideologia nova e moderna.
Intelectuais liberais foram todos a favor da privatização e do livre mercado. Mas eles discordavam entre eles sobre a estratégia política da “reforma” (isto é, da transição ao capitalismo). Alguns continuaram a favor de um chamado pela “democracia”. Outros foram além à direita defendendo um neo-autoritarismo, o tipo de capitalismo autoritário que existiu na Coreia do Sul, Taiwan e Cingapura, que negava à classe trabalhadora os direitos democráticos mas dava proteção ao direito (ou “liberdade”) de propriedade. Muitos viram Zhao Ziyang, o então secretário geral do Partido Comunista da China, como aquele que poderia executar o tal “despotismo esclarecido”. Essas eram as condições ideológicas na China antes da emergência do “movimento democrático” de 1989.
Em 1988, eu já era ativo nas atividades de estudantes dissidentes no campus, e no início de 1989, cresceu a inquietação nos campi universitários. A morte de Hu Yaobang (o antigo secretário geral “reformista” do Partido) foi tida como a desculpa pelos estudantes para iniciarem uma série de demonstrações políticas. Àquela altura, havia um certo grau de desejo genuíno por parte de estudantes comuns por alguma forma de democracia; ainda havia muitos estudantes de origens operárias e camponesas frequentando as melhores universidades de Pequim. Assim, havia pressão de baixo empurrando o movimento numa direção mais radical.
Os intelectuais liberais eram a favor de “reformas” de orientação capitalistas. Para atingir esse objetivo, geralmente eles tendiam se apoiar numa aliança com a ala “reformista” do Partido que era liderada por Zhao Ziyang. Mas os liberais também esperavam ganhar apoio de Deng Xiaoping, o líder de facto do Partido. Inicialmente os liberais tentaram conter os protestos dos estudantes, mas sem sucesso. Embora os líderes dos estudantes fossem ideologicamente influenciados pelos intelectuais liberais, eles eram politicamente inexperientes e também muito guiados por suas ambições políticas pessoais.
À medida que crescia os protestos estudantis, trabalhadores em Pequim começaram a aparecer nas ruas em apoio aos estudantes, que ficaram, evidentemente, lisonjeados. Contudo, sendo um estudante de economia, eu não pude deixar de experimentar um profundo senso de ironia. Por um lado, esses trabalhadores eram pessoas que considerávamos passivos, obedientes, ignorantes, preguiçosos e burros. Agora eles estavam vindo em nosso apoio. Por outro lado, poucas semanas antes, estávamos defendendo enfaticamente programas de “reforma” que fechariam todas as fábricas estatais e deixariam os trabalhadores desempregados. Me perguntei: será que esses trabalhadores realmente sabem quem eles estão apoiando?
Infelizmente, os trabalhadores realmente não sabiam. Nos anos 1980, em termos de padrões materiais de vida, a classe trabalhadora chinesa continuou relativamente bem. Havia, no entanto, ressentimentos crescentes por parte dos trabalhadores à medida que o programa de reformas econômicas tomava um rumo capitalista. Administradores receberam cada vez mais poder para impor disciplinas de trabalho de tipo capitalista (como a “administração científica” taylorista) aos trabalhadores. A reintrodução de “incentivos materiais” pavimentou o caminho para a crescente desigualdade de renda e para a corrupção administrativa.
Contudo, depois da falência da Revolução Maoista, a classe trabalhadora chinesa estava politicamente desarmada. Os programas oficiais de televisão, jornais e revistas retratam agora positivamente um capitalismo ocidental materialmente próspero e “dragões” capitalistas altamente dinâmicos leste-asiáticos. Só a China e outros estados socialistas pareciam ter ficado para trás. Dada a colaboração da mídia oficial e dos intelectuais liberais (e certamente auxiliados pela academia e a mídia ocidental convencional), não deveria surpreender que muitos dos trabalhadores chineses aceitariam a percepção convencional de capitalismo inocente e acriticamente. A imagem dominante do capitalismo mudou de superexploração para um sinônimo de democracia, salários altos e políticas de bem-estar, assim como a proteção sindical dos direitos dos trabalhadores. Somente nos anos 1990 que a classe trabalhadora chinesa aprenderia novamente da sua própria experiência o que significava o capitalismo na vida real.
Embora muitos trabalhadores chineses poderiam estar prontos para aceitar o capitalismo abstratamente a partir da sua representação na televisão, na realidade eles certamente entenderam onde estavam seus interesses materiais. Eles gostavam da sua “tigela de arroz de ferro” (isto é, a garantia vitalícia de trabalho e todo um conjunto de programas de bem-estar) e seu apoio inicial dos protestos dos estudantes era parcialmente baseado na crença de que os estudantes estavam protestando contra a corrupção e a desigualdade econômica. Entretanto, uma vez desarmada política e ideologicamente, a classe trabalhadora chinesa não foi capaz de agir como uma força política independente lutando pelos seus próprios interesses de classe. Em vez disso, eles se tornaram ou politicamente irrelevantes ou coagidos a participar num movimento político cujo objetivo último era diametralmente oposto aos seus próprios interesses. A classe trabalhadora chinesa iria aprender uma amarga lição, e pagaria seu preço em sangue.
Em meados de maio de 1989, o movimento estudantil rapidamente se radicalizou, e intelectuais liberais e líderes estudantis perderam o controle dos eventos. Durante a “greve de fome” na Praça da Paz Celestial, milhões de trabalhadores saíram em apoio aos estudantes. Isso escalou para uma situação quase revolucionária e um duelo político entre o governo e o movimento estudantil era tudo menos inevitável. Os intelectuais liberais e os líderes estudantis se depararam com uma decisão estratégica. Eles poderiam organizar uma retirada geral, suspendendo o protesto, embora essa estratégia fosse certamente desmoralizante. Os líderes estudantis seriam provavelmente expulsos das universidades e alguns intelectuais liberais poderiam perder seus empregos. Mas consequências mais negativas e sangrentas seriam evitadas.
Alternativamente, os intelectuais liberais e os líderes estudantis poderiam lutar pela vitória. Eles poderiam aproveitar o momento político existente, mobilizar apoio popular, e dar passos para tomar o poder político. Se eles adotassem essa tática, era difícil dizer se eles seriam bem sucedidos, mas havia certamente uma boa chance. A direção do Partido Comunista estava dividida. A lealdade de muitos comandantes do exército e governadores provinciais ao governo central estava em questão. O movimento estudantil tinha o apoio da grande maioria dos residentes urbanos por todo o país. Para escolher essa opção, contudo, os intelectuais e os estudantes liberais tinham que estar dispostos e capacitados para mobilizar o total apoio da classe trabalhadora urbana. Esse foi um caminho que os intelectuais liberais chineses simplesmente não consideraram.
Então o que eles fizeram foi… nada. O governo não esperou muito para agir. Enquanto os próprios estudantes deixavam pacificamente a Praça Tiananmen, milhares de trabalhadores morreram nas ruas de Pequim os defendendo. Dois anos depois, por ter lido o Luta de Classes na França, 1848-1850 de Marx na prisão, fiquei impressionado com a similaridade entre a pequena burguesia francesa em meados do século XIX e os intelectuais liberais chineses no final do século XX nas suas inaptidões políticas, que era em última instância um reflexo das suas condições sociais de vida e interesses de classe.
Certa noite em junho de 1989, numa rua perto da Universidade de Pequim, dois intelectuais de bicicleta bateram um no outro e começaram a brigar. (Essa era uma cena bem comum em Pequim.) Uma limpadora de rua nos seus cinquenta anos usava uma vassoura para varrer o lixo da rua; ela os abordou e disse: “Sobre o que vocês estão brigando? Nosso país está nessa bagunça. Vocês não poderiam fazer nada melhor?” Os dois ciclistas ouviram, não disseram nada e foram embora. Eu observei isso. Eu não sei se fiquei chocado, ou tocado, ou ambos.
Mao Zedong disse, “Ideias corretas não caem do céu. Em vez disso, elas vêm de três tipos de prática social – a luta pela produção, a luta de classes, e a experimentação científica” (De onde vêm as ideias corretas?, maio de 1963). As ideias da intelectualidade, não diferentes das ideias de todo mundo, são primeiramente reflexos das condições materiais das suas vidas e entorno social. As ideias de um intelectual são, portanto, inevitavelmente limitadas por suas estreitas perspectivas pessoais e enviesadas pelo seu interesse de classe. Uma pessoa que cresceu num ambiente materialmente privilegiado, como eu, não tende naturalmente a entender e considerar os interesses da classe trabalhadora. É somente com a intensificação das contradições sociais do capitalismo, e quando seções da intelectualidade (ou da classe média) são ameaçadas com a proletarização ou com uma mobilidade social descendente, que muitos entre as classes sociais mais privilegiadas começam a tomar uma posição política contra seu próprio interesse de classe e a se identificar com a causa da classe trabalhadora.
No meu caso, pouco depois da derrota do “movimento democrático” de 1989, eu refleti sobre esse fracasso e tentei entender as causas subjacentes. Me tornei de esquerda, socialista, marxista e, finalmente, um marxista-leninista-maoista. Um ano depois, eu fiz um discurso político no campus da Universidade de Pequim, que me custou dois anos de prisão. Entretanto, havia duas vantagens no encarceramento. Pela primeira vez na minha vida, eu tive a oportunidade de viver com pessoas de vários estratos sociais desprivilegiados. Essa experiência foi de um valor incomensurável. Segundo que, na prisão, eu tinha tempo de sobra para ler, um privilégio que eu não tive até então. Eu li os três volumes do Capital de Marx três vezes, somados a muitos outros escritos clássicos de Marx, Engels, Lenin e Mao, o Capital Monopolista de Baran e Sweezy, o A troca desigual de Arghiri Emmanuel, A teoria da história de Karl Marx de G. A. Cohen e História da Filosofia Ocidental de Bertrand Russell.
Para marxistas “depois da Queda”, uma questão inescapável é como avaliar os registros históricos dos socialismos do século vinte. Quando comecei a rejeitar a economia neoliberal e aceitei o marxismo, eu tentei ir além da minha própria perspectiva limitada de classe e reconsiderar muitas questões da perspectiva da classe trabalhadora. Por exemplo, em vez de ver a “tigela de arroz de ferro” como um regime trabalhista paternalista que reprimia a liberdade individual e incentivava a preguiça e a ineficiência, comecei a entender que se tratava de um grande direito histórico conquistado pela classe trabalhadora chinesa pela luta revolucionária e serviu como uma salvaguarda dos interesses básicos dos trabalhadores, protegendo-os contra a exploração burocrática e capitalista.
Comecei a questionar tanto a narrativa oficial do Partido Comunista quanto a dos intelectuais liberais (que era essencialmente a mesma narrativa hegemônica ocidental) da era maoista. Uma questão crítica era como avaliar o período da Revolução Cultural. A versão oficial e a versão liberal eram praticamente a mesma. Mao Zedong, ou por causa da sua sede de poder ou pela sua obsessão com a luta de classes, iniciou sozinho uma massiva perseguição em escala nacional, matou milhões, e destruiu o sistema educacional e a economia. A década da Revolução Cultural era referida tanto pela versão liberal quanto pelas oficiais como os “Dez Anos de Devastação” (Shi Nian Haojie). Os leitores certamente já ouviram falar de livros, romances e filmes que denunciaram a Revolução Cultural por essa linha de pensamento.
Mesmo antes de 1989, li um artigo num jornal intelectual provincial que questionava essas versões convencionais da Revolução Cultural e argumentava que a intenção original de Mao era mobilizar as massas para lutar contra os privilégios burocráticos. Essa foi a primeira vez que eu tinha ouvido que Mao era comprometido com ideais altamente igualitários e democráticos. Em 1992, fui libertado da prisão, e passei os dois anos seguintes viajando pelo país, debatendo com ativistas dissidentes que continuavam liberais; também tive a oportunidade de fazer contato tanto com trabalhadores do setor estatal quando com trabalhadores migrantes empregados no novo setor capitalista.
Nesse meio tempo, conduzi a minha própria pesquisa sobre o desenvolvimento político, econômico e social na China moderna, usando identificação falsa para visitar as bibliotecas provincial e da cidade (muitas bibliotecas chinesas naquela época exigiam documentos de empregado ou estudante para a entrada, embora eu tenha sido expulso da Universidade de Pequim e estivesse desempregado). Eu comecei a ver a China Maoista primeiramente como um legado revolucionário em vez de um fardo histórico para futuros revolucionários socialistas.
Em 1994, terminei um livro: Capitalist Development and Class Struggle in China. Usei uma abordagem marxista para analisar a estrutura de classes e a luta de classes no período maoista assim como nos anos 1980 na China. Celebrei as grandes conquistas sociais e econômicas do socialismo maoista chinês, e apontei que a natureza das reformas econômicas em curso na China era a transição ao capitalismo e que as relações capitalistas de produção já tinham se tornado dominantes no início dos anos 1990. Fiz uma análise marxista do “movimento democrático” de 1989, argumentando que o movimento não era de forma alguma um movimento democrático popular, mas que ele não poderia ser compreendido sem uma análise da tripla relação de classes entre a classe burocrática capitalista dominante, a classe média urbana (os intelectuais liberais) e a classe operária urbana. Os intelectuais liberais e os burocratas capitalistas compartilhavam muitos interesses em comum. Os intelectuais liberais não foram capazes de liderar o “movimento democrático” para a vitória exatamente por causa do seu medo dos potenciais democráticos da classe trabalhadora. A classe operária urbana não foi capaz de lutar conscientemente pelos seus próprios interesses e sofreu uma trágica derrota histórica. Essa derrota, por sua vez, pavimentou o caminho para a transição da China ao capitalismo. Eu refutei a economia neoliberal e o mito de que a propriedade privada é indispensável para a racionalidade econômica. Discuti as contradições inerentes entre democracia e capitalismo, e as condições sociais e materiais que contribuíram para a expansão econômica capitalista da China e especulei sobre as condições para a futura revolução chinesa. Concluí com um capítulo criticando o socialismo de mercado e advogando pelo planejamento socialista democrático.
Em resumo, tive uma ruptura política e intelectual completa com os intelectuais liberais chineses, assim como com seus representantes políticos, e me posicionei firmemente no campo do marxismo revolucionário. Vim para os EUA no dia do Natal de 1994 e depois me tornei estudante PhD em economia na Universidade de Massachusetts. Desde então, uma nova geração da esquerda chinesa emergiu e a redescoberta da própria história revolucionária da China foi uma parte integral e indispensável do crescimento da “Nova Esquerda” [“New Left”] chinesa. Hoje, é praticamente impossível alguém ser um esquerdista na China sem ser algum tipo de maoista (com a única exceção de alguns jovens trotskistas).
É um argumento marxista essencial que todos os sistemas sociais são históricos e nenhum sistema social pode durar para sempre. O capitalismo, enquanto um sistema social, não é uma exceção. Marx e Engels, contudo, nos forneceram apenas algumas pistas sobre como a mudança das condições históricas levaria à derrocada final do capitalismo. Marxistas posteriores não acrescentaram muito aos argumentos de Marx e Engels (sobre a derrocada final do capitalismo) e depois de meados do século XX, a maioria dos marxistas não discutia mais a “crise final” do capitalismo e considerava que isso não era relevante para o nosso tempo de vida. Depois de 1989, para boa parte da esquerda mundial (incluindo muitos marxistas), o socialismo não estava mais na pauta e o melhor que podíamos esperar era algum tipo de capitalismo com condições mais favoráveis para a classe trabalhadora.
Se o capitalismo não é nada além de um sistema social historicamente específico, então quais são as condições históricas sobre as quais depende a sua existência e operação? Como essas condições vão mudar e em que ponto essas condições terão mudado para que o capitalismo não seja mais historicamente viável? Essas questões me ocuparam por anos desde que me tornei marxista. Em janeiro de 2001, preparando para lecionar na turma de inverno de um curso de graduação em economia marxista, pedi o The Capitalist World-Economy [“A Economia-Mundial Capitalista”] de Immanuel Wallerstein. Eu não tinha realmente lido os trabalhos sobre sistema-mundo antes e não era muito bem versado nas conexões e diferenças entre a abordagem do sistema-mundo e a abordagem marxista tradicional. Pensei que daria aos estudantes algumas perspectivas sobre o imperialismo e a exploração da periferia pelo centro.
Então eu li o texto que eu iria usar no meu curso. O título do primeiro capítulo me atraía: “A ascensão e a futura derrocada do sistema capitalista mundial” [“The Rise and Future Demise of the World Capitalist System”.] Sem dúvidas por causa do meu próprio enviesamento político, eu estava muito interessado na questão da “derrocada”. Então eu li o capítulo para descobrir como Wallerstein estabelecia a “futura derrocada” do capitalismo. Obviamente, a abordagem do sistema-mundo de Wallerstein não oferecia respostas prontas à questão. Em vez disso, forneceu pistas importantes, assim como inspirações intelectuais que alguém pode explorar posteriormente.
Inspirado pelos argumentos de Wallerstein, escrevi um artigo em chinês: “Lendo o Capitalist World Economy de Wallerstein – e a questão da China na primeira metade do século XXI”. Essa foi a primeira vez que eu associei a “ascensão da China” à derrocada do capitalismo. Sem o meu conhecimento, o artigo foi depois incluído num volume e considerado uma das peças representativas da Nova Esquerda contemporânea chinesa. Encontrei felizmente meu artigo publicado no Sichao: Zhongguo Xin Zuopai Jiqi Yingxiang (Gong Yang ed., Correntes de Pensamento: a Nova Esquerda da China e Suas Influências, Pequim, China Social Sciences Press, 2003) quando eu o folheava numa livraria chinesa na Filadélfia.
Em 2001, um grupo de pesquisa da Academia Chinesa de Ciências Sociais publicou um estudo sobre os “estratos sociais” da China. O estudo rejeitava a análise social marxista tradicional e argumentava que a China caminhava para se tornar uma “sociedade de classe média”. Acredita-se que o estudo forneceu justificação teórica para a nova teoria do líder do partido Jiang Zemin, que não reivindicava mais o partido como representante do interesse de classe do proletariado e que abriu oficialmente o caminho para a admissão de capitalistas privados no partido. Então o editor de um importante jornal chinês de esquerda me pediu para escrever uma crítica ao estudo. Escrevi “A Estrutura de Classes da China da Perspectiva do Sistema-Mundo”. No rumo do final dessa crítica, incluí uma seção “A ascensão (modernização) da China e a derrocada da Economia-Mundo”. Argumentei que o crescimento econômico da China realmente desestabilizaria muito a economia-mundo capitalista de várias formas e contribuiria para a sua derrocada final.
Baseado nos dois primeiros artigos, escrevi outro – “A ascensão da China e a derrocada da Economia-Mundial Capitalista: Possibilidades Históricas do Século XXI” – desta vez em inglês. O artigo começa pontuando que a ascensão da China como um importante ator na economia-mundo capitalista foi um dos desenvolvimentos mais significativos no início do século XXI e que esse desenvolvimento traz um conjunto de questões de significado histórico-mundial. Como a estrutura social interna da China vai evoluir enquanto a China assume posições diferentes no sistema-mundo existente? Será que o atual regime de acumulação da China vai sobreviver às potenciais pressões que vão surgir de tal transformação? Enquanto a China sobe na hierarquia do sistema-mundo existente, como serão afetados os países periféricos e semiperiféricos? Será que a China vai se tornar a próxima potência hegemônica? Será que o século XXI vai ser o “Século da China”? Mais importante, como a ascensão da China afeta as dinâmicas do próprio sistema-mundo existente?
O artigo, que apareceu na Science & Society (julho de 2005), seguiu fazendo referência a essas questões, argumentando que a chamada “ascensão da China” na verdade reflete – tanto quanto acelera – fortemente a crise estrutural da economia-mundial capitalista que levará à sua derrocada final. Este presente livro é expandido desse artigo e incorpora ideias de alguns outros artigos que escrevi nos últimos anos.
De 2003 a 2006, lecionei cursos de graduação e extensão de economia política na Universidade de York em Toronto, no Canadá. Desde 2006, tenho dado aula na Universidade de Utah. A estrutura atual do livro foi desenvolvida em boa medida por esses anos de professorado. Discuti muitas das ideias que serão apresentadas neste livro em sala de aula e me beneficiei enormemente das trocas vitais e produtivas que tive tanto com estudantes graduandos quanto com graduados da Universidade de York e da Universidade de Utah. Gostaria de agradecer meus colegas da Universidade de Utah e antigos colegas da Universidade de York pelo grande apoio profissional e inspiração intelectual que eles forneceram. Muitas das minhas ideias atuais podem remeter aos meus estudos de graduação e eu certamente devo qualquer coisa que eu conquistar aos meus antigos professores da Universidade de Massachusetts.
Minqi Li
Junho de 2008