Por Julia Ferry
“Estar em análise” é implicar-se em um lugar de abertura para o mundo e para a experiência social. Antes de descobrir uma verdade dos enigmas de si, algo que pudesse explicar as suas neuroses, o ato analítico abriria para os sujeitos outras formas de se narrar, sonhar, e porque não, de se inventar.
Contracriação do sentido, alguns lampejos de beleza
Imagens cinematográficas e as imagens oníricas
Impressiona que o diálogo entre cinema e psicanálise, tão fecundo e contundente, não tenha sido aperfeiçoado por Freud, embora tenham surgido no mesmo momento da história.
É possível interpretar que se Freud não estimava o campo cinematográfico, é porque avaliava as imagens com desconfiança. Compreendia que antes de revelarem ou representarem um sentido, uma imagem mais serviria à esconder, deturpar ou mascarar a verdade, assim como se fazem presentes em um sonho.
Curioso que o mesmo Freud, em “Interpretação do sonhos”, inaugurou uma conceitualização à despeito das imagens oníricas, articulando para a desconstrução de uma relação direta entre o que se vê e o que pode vir a ser interpretado. Ou seja, no que envolve as imagens de um sonho, não haveria uma coincidência entre a sua estética e a interpretação analítica.
Se o sonho é narrado como uma sequência do nonsense, de imagens sem conexão, onde lhes faltam os conectivos explicativos de causa e consequência, a linguagem seria o operador que exploraria esse espaço enigmático. A direção cinematográfica poderia ser esse fazer que articularia uma imagem à outra, construindo um sentido narrativo para as sequências imagéticas, sentido que lido freudianamente, se limitaria em resolver a dimensão de opacidade que lhes constituem.
Há então uma leitura freudiana em que aposta na pretensão do cinema em se restringir a intencionar uma representação imagética totalizante e fiel de uma verdade. Ocorre que as formas estéticas caminharam desde então. Sobretudo no cinema pós-guerras, algumas inquietudes se fizeram presentes nos debates das estéticas visuais, em uma problematização do modo de representar a relação entre o que é visto e o que é dito. Houve uma série de cineastas que exploraram essa tensão, construindo filmes em que explicitam a dimensão essencialmente vestigial e lacunar da representação. Para além de intencionarem uma honestidade intelectual e moral em relação ao espectador daquilo que é mostrado, procuravam provocar e estimular um exercício ativo e político da imaginação.
Jonas Mekas. Cinema pode fazer sonhar?
Jonas Mekas foi um cineasta lituano, reconhecido pela sua trajetória no cinema experimental e underground estadunidense. Militante pelo cinema independente, gesto presente nos seus filmes-diários, em que são filmados com sua câmera Bolex, cenas cotidianas marcadas por imagens fugidias, sequenciadas sem relação de causalidade e linearidade.
Considerados filmes-diários da própria vida, penso que assisti-los é antes testemunhar as memórias de Mekas, mas como acompanhar a deriva dos seus sonhos. Ao utilizar uma série de signos como imagens, escritos, voz e música, em um entrelaçar enigmático, seus filmes proporcionam uma experiência quase sensorial. As cenas do inverno nova-iorquino cobertas pela neve e pelos galhos secos, acompanhados por uma música instrumental, e a voz de Mekas que diz pouco além de alguns substantivos fugidios, é como fizesse o corpo experimentar o frio. Ou então o verão, as árvores, as flores, piquenique, as pessoas, trazem a experiência de uma sensação de familiaridade e estranhamento, nesta tensão entre a beleza e a melancolia que é visitar algumas reminiscências do passado.
A narração que acompanha as imagens, não apresentam a função de legendá-las ou explicá-las. Pelo contrário, há cenas em que Mekas diz não saber sobre a intenção dos seus gestos, as impossibilidades do que se pode representar, embaralhando as noções da memória e da ficção, do vivido e do sonhado. Ou seja, são filmes que colocam as suas próprias condições de construção em questão. Assim como em um sonho, no que envolve o trabalho psicanalítico de “interpretá-los”, sabe-se que o analista não tem acesso às imagens sonhadas, apenas à fala do analisante. Ocorre que nem mesmo o “autor” do sonho as tem, tudo o que resta são algumas reminiscências daquilo que se consegue colocar em palavra. O sonho leva ao limite a ausência de uma imagem, embora se sustente no paradoxo de ser uma memória imagética aliada a uma tentativa de narrá-lo. E é na não coincidência entre imagem e narração que a interpretação psicanalítica atua.
Os filmes de Jonas Mekas exploram essa não sincronia entre o olhar e o dizer, do modo que mais te fazem experienciar a sensação de uma imagem. “Filmo porque existo, existo porque filmo”, diz em voz-over em “Walden” (1968). São representados uma celebração da vida e do gesto de filmar, em que seus filmes fazem pensar o que é o cinema, o que é uma imagem, ou o que pode o cinema e uma imagem.
Há uma forte provocação sarcástica como efeito de estilo em que se intenciona quebrar com um efeito de uma “grandeza poética”. O “rabbit shit” diz do que se encontra no “fim do túnel”, provocando um efeito irônico em contraposição à um sentido afinado, destacando a graça do ordinário. Mekas constrói um registro da despretensão, ou ainda, uma performance da desambição.
O cinema de Mekas é construído nessa criação da não intencionalidade, ou seja, esse paradoxo que seria a construção de uma contracriação da vida. As imagens não estão lá para testemunhar uma verdade de um vivido, para fazer lembrar o que passou, como documentos que operariam em uma recordação congelada. Ao contrário, as imagens construídas naquele conjunto estético, inventam o passado e criam a vida. São como registros de uma presença que é sempre faltante, sem a pretensão de totalizá-la, explorando esse limite angustiante e bonito, como pequenos lampejos de beleza.
Há uma despretensão temática e formal, um gesto de apreço pela contingência e um abraço com a banalidade. Tais trabalhos artísticos marcados por essas escolhas estéticas, faz pensar a psicanálise, enquanto prática analítica, na sua possibilidade de apostar na transformação e deslocamentos subjetivos aliada à potência política da imaginação.
Se uma análise é, entre muitas coisas, um exercício com a palavra, seria no próprio movimento de narrar a sua história, que o analisante construiria algo de si, em um gesto de se dizer, sempre atravessado pela contrariedade e estranhamento. O/a analista, quase um apostador de enunciados, procura nas brechas discursivas, provocar contradições nestes enunciados que se fecham em verdades enclausuradas, repetições neuróticas e definições limitadoras. Neste sentido, uma análise seria também um processo que procuraria desconstruir as verdades, provocar um furo naquilo que “é assim e me faz se sentir assim”, sustentando possibilidades de abertura para reposicionamentos e deslocamentos daquele/a que fala.
Como colocou Calligaris quando interrogado sobre o papel da psicanálise na vida das pessoas, respondeu que de forma geral, percebe que os sujeitos contam de suas vidas de uma forma chata, e que uma análise pode ser esse operador que faria com que encontrassem outros jeitos de se contar, que ao menos sejam mais divertidos. Ou ainda, no que envolve o trauma, poder colocar ali a palavra, ou inventar algum dizer possível para o que ficou na ordem do silêncio, do indizível e da dor.
“Estar em análise” é implicar-se em um lugar de abertura para o mundo e para a experiência social. Antes de descobrir uma verdade dos enigmas de si, algo que pudesse explicar as suas neuroses, o ato analítico abriria para os sujeitos outras formas de se narrar, sonhar, e porque não, de se inventar.
Se o horizonte do processo analítico seria fazer cair algumas verdades, reproduções sintomáticas, ideais limitadores, a autonomia que se ganha em relação à própria neurose passa também por uma negociação que é quase uma brincadeira com o próprio sintoma. Como se no final das contas, o que suspeitava encontrar algo muito extraordinário ou horripilante, é tão ordinário quanto “rabbit shit”. E talvez nisso, possa ser explorado a sua graça e efeito.
Ou ainda, com Kobayashi Issa, poeta japonês do século XVII:
O mundo de orvalho é, sim,
um mundo de orvalho,
mas mesmo assim…