Por Phillipe Augusto Carvalho Campos
“(…) as obras da cultura de massa não podem ser ideológicas sem serem, em certo ponto e ao mesmo tempo, implícita ou explicitamente utópicas: não podem manipular a menos que ofereçam um grão genuíno de conteúdo, como paga ao público prestes a ser tão manipulado. (…)Nossa proposta sobre o poder de atração das obras da cultura de massa defendia que tais obras são incapazes de administrar angústias sobre a ordem social, a menos que primeiro as hajam revivido e lhes tenham conferido alguma expressão rudimentar; agora procuraremos sugerir que angústia e esperança são duas faces da mesma consciência coletiva, de tal modo que as obras de cultura de massa, mesmo que sua função se encontre na legitimação da ordem existente – ou de outra ainda pior – não podem cumprir sua tarefa de desviar a favor dessa última as mais profundas e fundamentais esperanças e fantasias de coletividade, às quais devemos reconhecer que deram voz, não importa se de forma distorcida (JAMESON, As Marcas do Visível).”
Uma peculiaridade interessante do Batman é pensar no fato de o Bruce Wayne combater o crime que ele mesmo causa em Gotham, Wayne é o sujeito mais rico da cidade e, enquanto tal, digamos, tira dinheiro da circulação, e em condições normais de temperatura e pressão do atual capitalismo financeiro, acumula e não reinveste. Dinheiro acumulado é sinônimo de empobrecimento social, empobrecimento social, por sua vez, é sinônimo de criminalidade. A HQ talvez nos faça crer que o vórtice de criminalidade e corrupção no qual a cidade foi mergulhada é fruto de um empobrecimento moral, de um desrecalcamento da loucura ou deformidade inerente à alma humana. Ora, ao se fazer um estudo da distribuição de renda da cidade, talvez encontremos indícios sociológicos bem consistentes indicando que o fato do Batman encontrar um assaltante em cada beco de Gotham se deve a uma estrutura social deformada pela má distribuição de renda – daí a boa pergunta kantiana que serve pra (quase) tudo: quais as condições de possibilidade de alta criminalidade ou deformação moral em Gotham? A existência de um conglomerado empresarial que suga a energia viva (o “trabalho vivo”) daquela sociedade. Digamos que esse elemento econômico (“estrutural” para dizer como os velhos marxistas) é exatamente aquele que é mascarado, recalcado ou anulado pela alegoria do universo “Batman”.
Mas isso é apenas um lado da história. Naquele primeiro momento, Wayne suga a economia da cidade, num segundo, Batman gera um novo tipo de criminalidade com dinâmicas próprias e, de certo modo, descolada dos ladrões de becos, gera o Coringa e outros vilões do seu universo. Eu disse “gera” porque foi o Coringa que disse isso, e ele entendeu muito bem o fascínio libidinal ensejado por um justiceiro mascarado fantasiado de morcego coberto de gadgets. No filme Batman: O Cavaleiro das Trevas na cena do interrogatório o Coringa diz inicialmente:
Esses mafiosos otários querem que você se vá para que tudo volte a ser como antes. Mas eu sei a verdade: não há retorno. Você mudou as coisas para sempre.
Batman: “Então porque você quer me matar?”
E o Coringa, explodindo em risos: “Eu não quero te matar! O que eu faria sem você? Voltaria a enganar mafiosos: não, não, não… Você me completa.”
Duas coisas: 1ª, o Batman é tragado pelo universo que ele criou, composto não mais por criminosos comuns, mas por criminosos equivalentes, aparentados a ele (o Homem Morcego é seguido pela série: Homem Pinguim, Homem Coringa, Homem de Gelo, Mulher Plana e outros criminosos tão estilizados quanto ele). 2ª, não haveria essa série de criminosos sem o inaugurador da série, o próprio Batman, e o Coringa sabe muito bem: o Batman o completa, dá sentido ou lastreia a vida do Coringa (um ponto curioso, a biografia da maioria de seus inimigos é entrelaçada à existência do próprio Batman/Wayne; na HQ, o Coringa é criado quando o Batman o joga no caldeirão de ácido; Bane vai para Gotham atraído por sua fascinação pelo justiceiro mascado; Máscara Negra era amigo de Wayne e se torna vilão quando se sente humilhado por este etc). Um co-responde ao outro. A gente pode se perguntar, aqui: porque que o Brasil não é inimigo do Nepal, ou porque que o Flamengo não é inimigo do Quinze de Piracicaba? Porque o inimigo deve estar perto, corresponder ao agente; assim, escolhemos, sempre alguém próximo, alguém disposto a entrar ou compartilhar do nosso universo simbólico, precisamente, esse é conceito do rival.
O propósito de contar essa historinha do Batman é que ela se baseia numa forma de pensamento, num modo de organizarmos nossa vida libidinal, fantasia (pra dizer com Freud) ou num modo de organizar nossa vida social, ideologia (pra dizer com Marx). Tanto a fantasia quanto a ideologia são maneiras de filtrar elementos da realidade e coloca-los numa cena, numa narrativa que nos satisfaça de algum modo. Ideologia e fantasia são dois modos de vislumbrar a tal separação entre significado e significante, se quiser, entre representado e representante: tudo se passa como se, nos dois casos, o fulcro sexual e/ou pulsional, bem como o fundamento tautológico do Capital e/ou luta de classes só viessem à tona, só se tornassem conscientes com a condição de uma “distorção” no próprio ato de materialização ou expressão no representante. E qual é a forma-ideologia-Batman?
A forma-ideologia-Batman começa lá atrás quando a gente busca na nossa história uma orfandade. Tomaremos orfandade como uma metáfora para a ausência ou perda de balizas simbólicas, ideais ou amparo externos ao indivíduo; no caso da orfandade literal perde-se os pais, no caso da social, perdem-se ideais comunitários ou embasados na tradição. A partir da percepção dessa perda, o sujeito sai em busca da reconstrução do seu ego, de uma nova identidade ou novos ideais e essa atividade não é empreendida sem o ato de tomar a perda para si, sem um engajamento – o que quero dizer é que o engajamento é de certo modo artificial, criativo, impulsivo ou pulsional, o engajamento surge no momento em que a perda eclode ou se realiza, em que a pasmaceira, a bobice cotidiana, a estabilidade, se foram. Não à toa todos os super-heróis são órfãos (ao menos não me lembro de nenhum que não seja). Lacan vai dizer que o um homem viril é uma metáfora de si mesmo; os super-heróis são todos uma metáfora de si mesmos, Batman de Wayne, Homem-Aranha de Peter Parker etc.
A forma-ideologia-Batman envolve a transposição de um ambiente economicamente devastado, de uma sociedade produtora de criminalidade, para uma gramática simbólica, isto é, questões de ordem econômica são percebidas como questões de ordem moral: a nossa tendência mais espontânea é pensar numa pessoa ladrona ou fanática como tendo desvio de caráter e não no que causou aquele desvio. A forma-ideologia-Batman, operando nessa gramática moral, cria os atores dispostos a operar nesse dispositivo moral estabelecido. Num primeiro momento tal gramática simplesmente etiqueta os inimigos e também os aliados, num segundo, os próprios atores se etiquetam a si mesmos, tomam para si tais rótulos ou lugares sociais. Quando o Coringa diz que o Batman o completa ele está dizendo algo como, a existência de um justiceiro lúdico clama, abre um espaço simbólico, para existência de um criminoso igualmente lúdico. É típico da adolescência se entranhar cada vez mais num papel odiado pelos pais, exatamente para encenar uma conflituosidade latente. Outrossim, no cenário atual, é como se a esquerda se radicalizasse à medida que a direita se radicaliza, a esquerda, por vezes, tende a encarnar o papel fictício do revolucionário temido pela direita e a direita encarna o papel da figura autoritária temida pela esquerda. Ou seja, numa gramática fundamentada pela perda da tradição, a gente cria opositores que ferem a tradição, por sua vez, tal como é percebido do outro lado, numa gramática fundamentada no preconceito, a gente cria opositores que são preconceituosos e é essa uma espécie de linguagem da co-respondência.
Por fim, a forma-ideologia-Batman se torna numa espécie de circuito fechado infeccioso. Circuito fechado porque a co-respondência é alçada ao centro do campo de batalha e infecciosa porque ela tende a se espalhar, infectar o corpo social com sua lógica lúdica de combate, se tornando uma espécie de verdade, realidade, engendrada por um fundo de mentira ou lúdico. Em Batman já não se trata de discutir os problemas daquela sociedade, mas de discutir os problemas gerados pela teia simbólica que veio a recobrir aquela realidade – ou seja, os problemas relativos ao campo da representação em detrimento daqueles do campo do representado –; esta teia simbólica, é claro, é o próprio Batman em conflito com seus inimigos, esses conflitos como que tornam Gotham uma refém, a todo momento a massa policial e Estatal deve ser mobilizada, num verdadeiro estado de exceção, para lidar com a cidade sitiada pelos maléficos intentos dos vilões. Uma gramática não referida e afastada do espaço literal – concentração de renda – que operou como condição de possibilidade primitiva. Na medida desse afastamento, generaliza as categorias ou os títulos aprendidos na esfera da rivalidade e da moral.
Assim, teríamos: um nível zero, literal, o capitalismo, o qual não possui mediação, não se tem no mundo nenhum mecanismo de desconcentração de renda, nada que controle a besta-fera ou o impulso tautológico do Capital, ou, como é mote hoje em dia, os países devem servir aos mercados e não o contrário; ao mesmo tempo em que, dessa matéria primitiva, não sai nenhuma emanação de significado, como se ela fosse a própria matéria infinitamente plástica que Lacan designou no início de seu ensino por Real. Um nível alegórico, no qual cria-se um significado pra literalidade precedente, no caso, a narrativa da perda, seja das raízes familiares, seja da sociedade corrompida. Devemos notar que “alegoria” é um modo de significação forçada, que não emana das próprias coisas; quando as coisas perderam um significado genuíno, isto é, adquirem uma plasticidade infinita, a alegoria é a operação de significação por excelência; Jameson nos diz:
“Pois a alegoria é precisamente o modo predominante de expressão de um mundo no qual as coisas, não importa por que motivo, divorciaram-se completamente dos significados, do espírito, da genuína existência humana (JAMESON, Marxismo e Forma).”
E não à toa, uma alegoria se refere com frequência a uma perda, ela nos narra a experiência de um mundo pela metade, alienado. No terceiro momento, temos o nível moral e político, a operação de que se trata, aqui, é de tirar uma lição de moral da alegoria previamente estabelecida, o produto é o Bem e o Mal, e o subproduto são bonzinhos e os malvados. Por fim, segundo Jameson, temos um nível anagógico, classicamente definido como o sentido espiritual de uma interpretação, refere-se à narrativa do juízo final, quando as forças da luz lutarão contra as forças das trevas; ora, no nosso caso, é o próprio cenário autônomo e infeccioso da ludicidade maniqueísta – ou ainda, da Sociedade do Espetáculo, é nesse ambiente artificioso e midiatizado (e mediatizado) que se dá a batalha jornaleira de protonarrativas impregnadas por si mesmas, de correspondência circular entre os atores em cena. Poderíamos chamar esse momento, também, de autonomização do político ou da ideologia – algo como se a superestrutura ganhasse uma (quase)vida própria ou fosse ligada por um extenso e tênue neurônio motor à literalidade. Teríamos, assim:
ANAGÓGICO: Sociedade do Espetáculo – Universo Batman
MORAL: Justiça x Criminalidade – Batman x Vilões
ALEGÓRICO: Sociedade Corrompida – Orfandade
LITERAL: Concentração de Renda (Capital) – Wayne se apropria da mais-valia
Os teólogos da idade média definiram esses quatro sentidos como os quatro métodos de interpretação das Escrituras, Jameson (Allegory and Ideology) sugere substituirmos as escrituras pelo próprio mundo, a perda de textos referência ou clássicos como característica do período contemporâneo, sendo assim, a própria vida moderna é um texto a ser interpretado, e o é segundo esses quatro métodos. E não se trata aí de uma escolha, qualquer um que tome uma via unilateral de interpretação erra o alvo.
1. Digamos que um marxista muito ortodoxo diga que nada dessa coisa de política identitária vale, que o que importa é o Capital e a luta de classes, ora, o que esse sujeito perde de vista é como as outras dimensões se expressam como Capital e como, por outro lado, o Capital se expressa nos outros níveis, ainda que recalcado. Bem como a verdade ou os efeitos deletérios presentes nos outros níveis.
2. Digamos, agora que um psicanalista muito ortodoxo, diga que o Batman ou heroísmo advêm de um trauma infantil, se a gente põe o cara no divã ele para com essa doidera de herói mascarado, o que a gente perde, nesse caso, por sua vez, é que o mundo segue precisando de uma moralidade, segue sua dinâmica de destruir vidas humanas, segue desempregando pessoas, com as quais, é perfeitamente legítimo se compadecer.
3. Mas, vejamos o lado da pura ética. Suponhamos que a gente seja, agora, um bom moralista, isso é super verdade, tem gente ruim no mundo, que não vale nada, mas isso nos mascara para outras valências da vida, para o fato de a sociedade corromper as pessoas, para o fato de ela empurrar gente pra marginalidade etc.
4. Por fim, temos o nosso camaradinha que aposta nas intervenções lúdicas, para serem midiatizadas, reproduzidas no Fabebook, na TV, que aposta no barulho, no grito, no panelaço… Isso tudo é verdade! Afinal, devemos comunicar nossos pensamentos e um modo rápido e sintético são as ações lúdicas midiáticas, mas, novamente, isso nos mascara para as dimensões referentes à correlação de forças, por vezes atacamos quem não merece, somos despudorados (o que mais nos afasta do povo do que nos aproxima), esquecemos de mirar em alvos corretos…
Então, é tudo verdade, esse modo de pensamento ou de leitura nivelada em quatro não é somente pensamento, mas, talvez, é a forma como a própria realidade nesse mundo capitalista, desterritorializado, imoral e midiático se organiza.
Uma atitude crítica que ousasse deixar de fora algum desses aspectos perderia seu alcance ou amplitude e a matéria deixada de fora do escopo está sempre a postos para dar o troco – talvez o maior pecado da dialética seja a unilateralidade. Ao mesmo tempo, não depende da crítica escolher quais operadores devem ser motricializados, é a realidade quem diz isso, a realidade nos informa o que ganha e o que perde, o que engaja as pessoas, onde as pessoas empregam sua força de trabalho mental ou libidinal. Como diriam antigamente: são as massas que nos informam o caminho correto; insistir no que nos é caro é, por essa via, reafirmar a solidez da realidade e solidez da derrota que agora nos assomou. Por fim, a tarefa crítica (que antigamente predicariam “radical”) não é brindar o mundo com seu realismo esclarecido, que apenas diz ao mundo tudo que o mundo já disse de si – precisamente o que Hegel chama de “explicar” –, mas amanteigar a realidade com a utopia, que se encontra enclausurada (remeto à epígrafe) na alegoria que é a forma-realidade, ou seja, vitaminar ou promover sinapses desde aquele neurônio longo e tênue que atravessa os quatro níveis da forma-realidade… Como diria o velho Williams “ser verdadeiramente radical é tornar a esperança possível e não o desespero convincente”.
E como começamos com o Batman e o Batman é uma fórmula de sucesso. Aqui vai meu exercício:
O Batman descobre, perseguindo, o Pinguim que os esgotos de Gotham são uma rota de tráfico de armas, investiga e descobre coisa maior, essas armas são ultratecnológicas e são produzidas, obviamente, pelas indústrias Wayne, com o objetivo de armar um exército insurgente no Oriente Médio. O Batman retira a máscara de um bandido do Pinguim e sob ela se esconde um garoto, ao interrogá-lo, obtém o relato de um pobre garoto do subúrbio que aceitou o serviço porque seu pai morrera recentemente, por não ter dinheiro para bancar um tratamento de hipertireoidismo. Isso leva Wayne a refletir. Movido por sua justiça infinita, ele inicia um mega-projeto de economia solidária, mas logo esbarra com a queda das ações das indústrias Wayne, o conselho da empresa tenta afastá-lo da direção… sem se abalar, Wayne começa a uma rotina de estudos incessante (sabemos o quão disciplinado ele é) e se torna um militante contra o lóbi empresarial nos EUA. Por outro lado, Batman, passa a mirar somente milionários que fogem do fisco, lavando dinheiro ou sonegando impostos. Nesse meio tempo, o Batman descobre que o Mr. Freeze utiliza como ogiva energética de seu canhão de gelo uma tecnologia inovadora baseada em células fotovoltaicas e sugere a seu inimigo que funde uma companhia de energia solar popular. Freeze recusa, e Batman num arroubo inusitado o mata, o que estava em jogo não era Freeze, mas energia renovável. Como líder da Liga da Justiça, ele faz um puxadinho em seu nome: “Liga da Justiça Social” e os heróis impõem uma ditadura fiscal sobre o mundo, obrigando uma taxação massiva sobre os super-ricos. De início, os super-ricos, criam super-vilões para explodir a Liga da Justiça Social, mas com a taxação massiva de seu lucro, seu programa articulado morre de inanição.
Phillipe Augusto Carvalho Campos é psicanalista e mestre em teoria psicanalítica
1 comentário em “A forma ideologia-batman: a utopia não é um exercício de livre imaginação”
Muito boa reflexão. E a analogia com o Batman.