Dialética da natureza

Por Friedrich Engels, via Boitempo Editorial, traduzido por Nélio Schneider

Excerto das páginas 54-58 fraternalmente enviado pela editora.


[…]

Com o ser humano ingressamos na história. Os animais também têm história, a de sua ascendência e desenvolvimento gradativo até o seu estado atual, mas essa história é feita para eles e, não obstante eles próprios dela participarem, ela transcorre sem que saibam e queiram. Os humanos, em contraposição, quanto mais se distanciam do animal em sentido estrito, tanto mais eles próprios fazem sua história, com consciência, tanto menor se torna a influência de efeitos imprevistos e forças não controladas sobre essa história, tanto mais precisamente o desfecho histórico corresponde ao fim anteriormente estabelecido. Mas, se aplicarmos esse critério à história humana, inclusive à dos povos mais desenvolvidos do presente, descobriremos que ainda existe uma desproporção colossal entre as metas propostas e os resultados alcançados, que predominam os efeitos imprevistos, que as forças sem controle são muito mais poderosas do que as que foram postas em movimento de acordo com um plano. E isso não poderá ser diferente enquanto exatamente a atividade histórica mais essencial dos humanos, aquela que os alçou da animalidade à humanidade, aquela que constitui a base material de suas outras atividades, a saber, a produção que visa suprir suas necessidades vitais, ou seja, hoje em dia a produção social, estiver sujeita às vicissitudes de interferências não intencionais de forças sem controle e cumprir sua finalidade apenas excepcionalmente, realizando com muito mais frequência exatamente o seu oposto. Nos países industrializados mais avançados, dominamos as forças da natureza e as coagimos a servir aos humanos; assim, multiplicamos ao infinito a produção, de modo que agora uma criança produz mais do que antes produziam cem adultos. E qual é a consequência disso? Aumento de sobretrabalho e aumento da miséria das massas, e a cada dez anos uma grande quebradeira. Darwin não se deu conta da sátira amarga que escreveu sobre os humanos, e especialmente sobre os seus conterrâneos, ao demonstrar que a livre concorrência, a luta pela existência que os economistas celebram como conquista histórica suprema, constitui o estado normal do reino animal. Somente uma organização consciente da produção social, na qual se produz e se distribui de acordo com um plano, poderá alçar os humanos também em termos sociais acima do resto do mundo animal, como a produção em geral fez com os humanos em termos específicos. O desenvolvimento histórico torna tal organização diariamente mais incontornável, mas também diariamente mais possível. A partir dela se datará uma era histórica em que os próprios humanos e com eles todos os ramos de sua atividade, principalmente também a ciência da natureza, receberão um impulso que porá em densas sombras tudo o que se conseguiu até agora. [46]

Entretanto, “tudo que vem a ser é digno somente de perecer”. [47] Milhões de anos poderão se passar, centenas de milhares de gerações poderão nascer e morrer, mas implacavelmente se aproximará o tempo em que o calor do Sol morredouro não será mais suficiente para derreter o gelo que avançará a partir dos polos, em que os humanos se apinharão cada vez mais em torno da linha do Equador e, por fim, ali também não encontrarão mais calor suficiente para viver, em que aos poucos o último vestígio de vida orgânica desaparecerá e a Terra, uma esfera extinta e congelada como a Lua, girará em escuridão profunda em órbitas cada vez mais estreitas em torno de um Sol igualmente extinto e acabará por cair dentro dele. Outros planetas a terão precedido e outros a seguirão; em lugar de um sistema solar harmonicamente estruturado, brilhante e cálido, uma esfera fria e morta seguirá seu caminho solitário pelo espaço cósmico. E o que acontecer com o nosso sistema solar cedo ou tarde acontecerá com os demais sistemas da nossa ilha cósmica, acontecerá com as inúmeras outras ilhas cósmicas, inclusive aquelas cuja luz nunca chegará à Terra enquanto viver nela um olho humano capaz de recebê-la.

E o que acontecerá então, depois que um sistema solar como esse tiver cumprido o curso de sua vida e sofrido o destino de tudo o que é finito, a morte? O cadáver solar rodará por toda a eternidade pelo espaço infinito e todas as forças naturais de outrora, diferenciadas em multiplicidade infinita, se dissolverão em uma única forma de movimento, a atração? “Ou”, como pergunta Secchi (p. 810), “haverá forças na natureza capazes de reconduzir o sistema morto ao estado inicial de nebulosa incandescente e redespertá-lo para uma nova vida? Não sabemos”. [48]

Todavia, não o sabemos do mesmo modo que sabemos que 2 × 2 = 4 ou que a atração da matéria aumenta ou diminui na proporção do quadrado da distância. Porém, na ciência teórica da natureza, que na medida do possível elabora sua concepção da natureza na forma de uma totalidade harmônica, e sem a qual hoje em dia mesmo o empírico mais descerebrado não avança nem sequer um milímetro, temos muito frequentemente de contar com grandezas não totalmente conhecidas e, em todos os tempos, a coerência do pensamento teve de suprir a falta de conhecimento. Ora, a moderna ciência da natureza foi obrigada a adotar da filosofia a tese da indestrutibilidade do movimento; sem esta, ela não consegue mais subsistir. Pois o movimento da matéria não é só o movimento mecânico grosseiro, a mera mudança de lugar, mas também calor e luz, tensão elétrica e magnética, composição e decomposição químicas, vida e, por fim, consciência. Dizer que, durante toda a sua existência temporalmente infinita, a matéria teve apenas uma única vez e, em comparação com a sua eternidade, por um tempo infimamente breve a possibilidade de diferenciar seu movimento e, desse modo, desdobrar toda a riqueza desse movimento, e que antes e depois disso ela ficou e ficará eternamente restrita ao mero deslocamento espacial, significa afirmar que a matéria é mortal e que o movimento é transitório. A indestrutibilidade do movimento não pode ser concebida apenas em termos quantitativos, mas deve sê-lo também em termos qualitativos; uma matéria, cujo deslocamento espacial puramente mecânico carrega em si a possibilidade de converter-se, sob condições favoráveis, em calor, eletricidade, reação química, vida, mas que não tem condições de gerar essas condições a partir de si mesma, tal matéria foi privada do movimento; um movimento que perdeu a capacidade de converter-se nas diferentes formas que lhe cabem ainda possui dýnamis [potência para atuar], mas não tem mais enérgeia [eficácia] e, desse modo, foi parcialmente destruído. Porém ambas as coisas são impensáveis.

O que se tem como certo é isto: houve um tempo em que a matéria da nossa ilha cósmica converteu tal quantidade de movimento – até agora não sabemos de que tipo – em calor e que a partir daí puderam desenvolver-se sistemas solares pertencentes (segundo Mädler) [49] a pelo menos 20 milhões de estrelas, cuja extinção gradativa é igualmente certa. Como se processou essa conversão? Não sabemos, do mesmo modo que o padre Secchi não sabe se o caput mortuum [resto mortal] futuro do nosso sistema solar algum dia voltará a ser transformado em matéria-prima para novos sistemas solares. Nesse caso, porém, temos de recorrer ao Criador ou somos forçados a concluir que a matéria-prima incandescente dos sistemas solares da nossa ilha cósmica foi gerada pela via natural, por meio de transformações do movimento que competem por natureza à matéria em movimento e cujas condições, portanto, também têm de ser reproduzidas pela matéria, ainda que isso ocorra só após milhões e milhões de anos de modo mais ou menos casual, mas com a necessidade inerente ao acaso.

Cada vez mais se admite a possibilidade de ocorrer uma transformação desse tipo. Vai tomando forma a opinião de que o destino final dos corpos celestes é colidir uns com os outros, e calcula-se até a quantidade de calor que necessariamente se produziria nessas colisões. Estas também oferecem a melhor explicação para o repentino luzir de novas estrelas e o igualmente repentino reluzir mais intenso de estrelas já bem conhecidas. [50] Nesse cenário, não é só o nosso grupo planetário que se move em torno do Sol e o nosso Sol dentro da nossa ilha cósmica, mas também a nossa ilha cósmica inteira se desloca no espaço cósmico em equilíbrio relativo e temporário com as demais ilhas cósmicas, pois mesmo o equilíbrio relativo de corpos que pairam livres no espaço só pode existir no caso de movimento mutuamente condicionado; e há quem suponha que a temperatura não é a mesma em toda parte do espaço cósmico. Por fim: sabemos que, com exceção de uma parcela ínfima, o calor dos inúmeros sóis da nossa ilha cósmica se dissipa no espaço e em vão se esfalfa para elevar a temperatura do espaço cósmico em um milionésimo de grau Celsius que seja. O que será dessa enorme quantidade de calor? Ele se esgotou para sempre na tentativa de aquecer o espaço cósmico? Deixou de existir na prática e só continua a existir teoricamente no fato de que o espaço cósmico está mais quente uma fração de décimo de grau que começa com dez ou mais zeros? Essa suposição nega a indestrutibilidade do movimento; ela admite a possibilidade de que, mediante sucessivas colisões dos corpos celestes, todo o movimento mecânico existente seja transformado em calor e este seja irradiado para o espaço cósmico, o que levaria à cessação de todo e qualquer movimento, apesar de toda a “indestrutibilidade da energia”. (Mostra-se aqui de passagem como é equivocada a designação “indestrutibilidade da energia”, em vez de “indestrutibilidade do movimento”.) Chegamos, portanto, à conclusão de que, por alguma via, cuja demonstração será tarefa posterior da pesquisa da natureza, o calor irradiado para o espaço cósmico deverá ter a possibilidade de converter-se em outra forma de movimento, pela qual ele poderá voltar a concentrar-se e reativar-se. E assim cairia o principal obstáculo no caminho da retransformação de sóis extintos em vapor incandescente.

[…] [p. 54-58.]


Notas:

[46] As ideias sobre a história humana são desenvolvidas por Engels em outros escritos: Herrn Eugen Dührings Umwälzung der Wissenschaft (MEGA 2 I/27), p. 223-36 [ed. bras.: Anti-Dühring, cit., p. 289-303]; “Ludwig Feuerbach und der Ausgang der klassischen deutschen Philosophie”, Die Neue Zeit, Stuttgart, v. 4, 1886, p. 198-209.

[47] Citação de Johann Wolfgang von Goethe, Fausto: uma tragédia – Primeira parte (trad. Jenny Klabin Segall, São Paulo, Editora 34, 2011) p. 119.

[48] Angelo Secchi, Die Sonne, cit., p. 809-10.

[49] Johann Heinrich von Mädler, Der Wunderbau des Weltalls, cit., p. 451-2.

[50] Hoje se fala de novas e supernovas em relação a esse fenômeno, que continua sendo objeto de investigação astrofísica e é de importância decisiva para entender a evolução das estrelas.

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