Por Cian S. Barbosa Whately
Este artigo tem como propósito abordar a atualidade da teoria fanoniana, investigando a abordagem exposta em seu livro “Pele negra, máscaras brancas”, enquanto uma crítica ao essencialismo identitário e, não menos importante, enquanto uma contribuição à crítica da ideologia em geral. Essa contribuição, como pretende-se demonstrar, será evidenciada também quando lida junto ao contexto do debate francês no século XX acerca do conceito de sujeito e, em especial, a formulação lacaniana acerca deste, oriunda de seu retorno à Freud, retomando-o pelo avesso através do estruturalismo linguístico e antropológico, assumindo o significante enquanto modelo metodológico. Compartilhamos aqui do espírito interdisciplinar do qual tanto Fanon é partidário, assim como da convicção de que há ainda muitas possibilidades para a teoria marxista quando essa se aproximar devidamente da obra de Lacan. Demonstraremos também que, em Fanon, já podemos ver em sua sociogenia algo como uma abordagem da ordem de um marxismo psicanalítico (que difere do freudo-marxismo), articulando também a filosofia hegeliana, onde se articulam elementos para uma crítica da ideologia com fundamentos que aproximam-se da problemática apresentada pela escola eslovena contemporânea, tendo como referência de maior destaque o filósofo Slavoj Žižek (e a subversão que o mesmo opera com o conceito de ideologia, lido através da teoria lacaniana, e diferenciado-se, por exemplo, da referência principal do estruturalismo sobre o tema, a saber, Althusser.
Introdução
Este artigo tem como propósito abordar a atualidade da teoria fanoniana, investigando a abordagem exposta em seu livro “Pele negra, máscaras brancas” (2008), publicado originalmente em 1952, enquanto uma crítica ao essencialismo identitário e, não menos importante, enquanto uma contribuição à crítica da ideologia em geral. Essa contribuição, como pretende-se demonstrar, será evidenciada também quando lida junto ao contexto do debate francês no século XX acerca do conceito de sujeito e, em especial, a formulação lacaniana acerca deste, oriunda de seu retorno à Freud, retomando-o pelo avesso através do estruturalismo linguístico e antropológico, assumindo o significante enquanto modelo metodológico. Demonstraremos também que, em Fanon, já podemos ver em sua sociogenia algo como uma abordagem da ordem de um marxismo psicanalítico (que se difere do freudo-marxismo), articulando também a filosofia hegeliana, onde se articulam elementos para uma crítica da ideologia com fundamentos que aproximam-se da problemática apresentada pela escola eslovena contemporânea, tendo como referência de maior destaque o filósofo Slavoj Žižek e a subversão que o mesmo opera com o conceito de ideologia, lido através da teoria lacaniana, e diferenciado-se, por exemplo, da referência principal do estruturalismo sobre o tema, a saber, Althusser.
Apesar das poucas citações diretas a Lacan em ‘Pele negra, máscaras brancas’ (cinco apenas), Fanon demonstra estar em um diálogo frutífero que por vezes se vale de proposições acerca da teoria lacaniana da psicose (2008, p. 67), por outras difere sua abordagem pelo conceito de estrutura em relação ao de constituição – como trabalhado por Lacan em sua “crítica virulenta à noção de constituição” de 1932 (ib., p. 81). Também para debater a questão da neurose e do complexo de Édipo em relação à organização familiar no continente europeu (ib., p. 127), e as diferenças estruturais com o continente africano, diferenças demarcadas com ímpeto crítico à projeção de etnólogos europeus, onde mobiliza inclusive Hegel “contra” Lacan (ib., p. 135).
Sabemos também que Fanon vem a falecer antes de Lacan apresentar sua teoria dos discursos, um ponto de virada importante em sua obra. Poderíamos dizer que Fanon veio a conhecer apenas o primeiro Lacan. Também por isso pretende-se demonstrar as possibilidades de diálogo entre a sociogenia crítica que parte da dialética entre colonizador/colonizado (a que Fanon apresenta em Pele negra, Máscaras Brancas), a teoria dos discursos (que Lacan formaliza no livro XVII de seus seminários, chamado O Avesso da Psicanálise) e, fundamentalmente, a utilização da teoria dos discursos para a crítica da ideologia (como elaborada por Žižek em várias de suas obras). Carregamos aqui a consciência de que tanto a psicanálise, como sabia Fanon, quanto, em especial, a teoria de Lacan, muito tem a contribuir para a teoria social marxista – como insiste Badiou, Žižek e tantos outros. Partiremos assim de uma retomada geral do debate através do conceito de sujeito na filosofia francesa do século XX, até chegarmos na definição lacaniana e sua formulação pelo modelo do significante, apropriando-se e subvertendo este modelo da própria linguística de Saussure. Avançaremos para a crítica da ideologia tal qual apresentada por Žižek e, por fim, as possíveis relações destas com leituras contemporâneas de Fanon e suas contribuições fundamentais à crítica da ideologia – seja a ideologia racialista, seja à ideologia em um sentido geral.
A questão do sujeito na abordagem lacaniana
Para apresentarmos um mapeamento sucinto da questão, recorreremos ao filósofo franco-argelino Alain Badiou, que nos apresenta, enquanto testemunha viva e um dos herdeiros eméritos desse momento, as questões elaboradas pelos aventureiros do pensamento desenvolvido na França do século XX. Para compreendermos genealogicamente tal pensamento precisamos situar dois momentos no início do século XX: as conferências de Bergson em Oxford, que ocorreram em 1911, publicadas em O pensamento e o movente, e o livro Etapas da filosofia matemática, de Brunschvicg. Badiou nos diz que, ao menos na aparência, tais pontos “fixam orientações inteiramente opostas para o pensamento” e fundam duas correntes diferentes na filosofia francesa (BADIOU; 2012/2015). Podemos compreender cada uma delas a partir do seguinte:
Bergson propõe uma filosofia da interioridade vital, que subsume a tese ontológica de uma identidade do ser e da mudança apoiada na biologia moderna. […] Brunschvicg propõe uma filosofia do conceito, ou mais exatamente da intuição conceitual (oxímoro fecundo desde Descartes), apoiada nas matemáticas, que descreve a constituição histórica dos simbolismos nos quais as intuições conceituais fundamentais são, de alguma forma, recolhidas. (BADIOU, Alain. A aventura da filosofia francesa no século XX, 2015, p. 9-10)
Sendo assim, teremos essa dualidade demarcada na filosofia francesa do século XX. Essa observação é fundamental para compreendermos as contribuições desse evento filosófico, tanto para a teoria de modo geral (o legado do estruturalismo e do pós-estruturalismo), quanto para o conceito de sujeito em específico. Essa elaboração parte do diálogo de tais influências que retornam ao conceito de sujeito desde Descartes a partir de uma compreensão das influências externas. O sujeito passa a ser abordado, pelos autores desse movimento, a partir de múltiplas perspectivas.
Como nos ensina Badiou, a questão do sujeito se torna profundamente renovada, sendo abordada pelas perspectivas do conceito e da vitalidade em um debate em que Descartes é evocado como ponto de conflito. Para pensadores desse movimento a questão do sujeito é importante pela necessidade de ser suplementada com o seguinte problema: o que fazer com a herança cartesiana? Esse é um verdadeiro campo de batalha nesse momento. Temos então uma problemática que é a da abordagem da questão do sujeito enquanto interrogado por sua vida subjetiva, animal, orgânica, e também por outro viés; enquanto criador de conceitos, pensador, capaz de abstração.
o sujeito como consciência intencional é uma noção crucial para Sartre e para Merleau-Ponty. Althusser, ao contrário, define a história como um processo sem sujeito e define o sujeito como uma categoria ideológica. Derrida, na descendência de Heidegger, considera o sujeito como uma categoria metafísica; Lacan cria um novo conceito de sujeito, cuja constituição é a divisão original, a clivagem; para Lyotard, o sujeito é o sujeito da enunciação, de tal modo que em última instância ele deve responder por ela diante da Lei. Para Lardreau, o sujeito é isso acerca de que, ou de quem, pode ocorrer o afeto da piedade; para mim, não há sujeito senão de um processo de verdade etc. (Idem, Ibidem, p. 10).
Badiou nos lembra que Lacan chegou a lançar uma palavra de ordem para um retorno a Descartes. Sartre trata, em um de seus famosos textos, da liberdade em Descarte. É conhecida também a hostilidade de Deleuze contra o mesmo. Enfim, há “uma batalha em torno da noção de sujeito, que frequentemente toma a forma de uma controvérsia quanto a herança cartesiana” (BADIOU, 2015).
Também nos ensina Badiou que a filosofia francesa no século XX foi buscar na Alemanha uma nova relação entre conceito e existência, onde encontramos um verdadeiro debate sobre a herança do pensamento alemão, de Kant a Heidegger. Essa busca se dá enquanto a primeira de duas operações intelectuais, de buscas metodológicas. A segunda, não menos importante, é em relação à ciência. Os franceses quiseram “arrancar a ciência do domínio estrito da filosofia do conhecimento” (BADIOU, 2015, p. 12). Daí poderemos começar a compreender o estilo metodológico na tradição do estruturalismo, e também a complexa e mal compreendida abordagem de Lacan que será fundamental para compreendermos a questão do sujeito enquanto descentrado; questão que será cara à formulação teórica da psicanálise e à filosofia que se engajou com as questões que o inconsciente trouxe, em especial para a temática da liberdade. Sobre isso, precisaremos então abordar o que define Lacan acerca da questão do sujeito.
Em seu famoso retorno a Freud, Lacan retoma seu projeto pelo avesso, articulando-se junto ao movimento de Saussure e Lévi-Strauss no estruturalismo linguístico e antropológico. Também será influenciado por Hegel, via Kojève. Além disso irá, ao longo do desenvolvimento de seus seminários, incorporar ferramentas da lógica matemática e da topologia para reelaborar a metodologia da formulação teórica e, uma de suas principais preocupações, da transmissão da psicanálise. Podemos dizer que a teoria lacaniana se funda por redefinir preceitos éticos e reformular a posição da psicanálise em relação às ciências e à filosofia. Lacan aborda a psicanálise a partir de uma ética. Seu objetivo também é o de combater mal-entendidos sobre o inconsciente freudiano, formalizando com os meios de sua época (da linguística estrutural, da antropologia, dos matemas, da topologia etc.), uma nova abordagem em psicanálise. Como nos disse Badiou, o conceito lacaniano do sujeito é baseado na clivagem, na cisão constitutiva. É dessa divisão que precisamos tratar.
Sendo assim, Lacan nos traz a concepção do estádio do espelho para compreendermos basicamente como, na espécie humana, o infante já consegue reconhecer sua imagem mesmo antes de superar um chimpanzé em termos de inteligência instrumental. A partir dos 6 meses de idade o bebê já demonstra indícios de simbolização com sua imagem refletida e, a partir disso, começa a relacionar-se com essa imagem duplicada, estabelecendo uma concepção do próprio corpo enquanto totalidade simbolicamente fechada. O estádio do espelho opera uma identificação, no sentido analítico próprio estabelecido por Lacan: da transformação do sujeito quando este assume uma imagem (LACAN, 1966/2010):
A assunção jubilatória de sua imagem especular, por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filho do homem no estágio de infans, parece-nos pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o Eu se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito. (LACAN, J. “O Estádio do Espelho como formador da função do eu” in: Um mapa da ideologia, 2010, p. 98).
O Eu (com maiúscula) designa aqui o sujeito do inconsciente, desenvolvido por Lacan dos ensinamentos de Freud. Lacan denomina sua retomada, ou seu retorno [retourner], a Freud enquanto uma retomada pelo avesso. Não é à toa. Lacan não cessa de enfatizar sua crítica à noção freudiana de Eu [Ich] que fundamenta a sua própria [Je]. Podemos encontrar essa crítica desde as primeiras páginas do seminário II (1978, p. 20) até o seminário XXVII, onde Lacan dirá com todas as palavras que os seus três são o real, o simbólico e o imaginário, diferindo-se assim da segunda tópica freudiana, do Eu, Supereu e Isso. Não quer dizer que Lacan os descarte, obviamente. Mas que sua leitura se dará situando-os em uma topologia (de objetos não orientáveis, no caso a do nó chamado borromeu, algo do qual não trataremos no texto presente, mas que se faz necessário e útil mencionar). Lacan elabora sobre o Eu que se constrói em uma determinada matriz, a matriz do Outro, logo, do simbólico. Essa matriz simbólica se dá pela relação especular e, portanto, invertida, onde o espaço do sujeito se precipita a manifestar-se mesmo antes de ser propriamente articulado na linguagem. Neste ensaio tudo já está aí, apesar de “simulado”: a dialética de identificação com o pequeno outro (que é apenas ele mesmo refletido, mas já propicia um efeito de troca que significa a totalidade do corpo) e a representação simbólica do Eu [Je]:
Mas o ponto importante é que essa forma situa a instância do eu, desde antes de sua determinação social, numa linha de ficção, para sempre irredutível para o indivíduo isolado – ou melhor, que só se unirá assintoticamente ao devir do sujeito, qualquer que seja o sucesso das sínteses dialéticas pelas quais ele tenha que resolver, na condição de Eu, sua discordância de sua própria realidade. (Idem, ibidem.)
Aqui podemos perceber uma das características do descentramento subjetivo que Lacan caracteriza e conceitua, a não coincidência entre Je e moi. Em seu segundo seminário já o vemos tratar da questão, situando-a desde Freud, na seguinte metáfora tópica: “o sujeito está descentrado com relação ao indivíduo. É o que [Eu] é um outro quer dizer.” (LACAN, 1978, p. 16) Para elaborarmos melhor esse ponto, lembremos o que Lacan propõe em relação ao algoritmo saussuriano, a subversão em que Lacan sustentará a primazia do significante sobre o significado. Será em seu Escritos, não à toa, que Lacan definirá seu próprio algoritmo e formulará o princípio de sua virada teórica pelo modelo do significante até a teorização dos quatro discursos. Reflete também um dos traços do estruturalismo e sua abordagem: a formalização conceitual onde o escrito ganha estatuto de fórmula, matema, estatuto que equivale ao registro do Real, onde o Real é o escrito, diferido da palavra que se encontra na ordem do Simbólico (como nos diz no seminário XVIII).
Em que pode ser útil a teoria lacaniana dos discursos para compreendermos a ideologia e sua função, seu lugar, na estruturação da realidade? Para início de reflexão, precisamos compreender que a teoria dos discursos desenvolvida por Lacan se apoia tanto no estruturalismo linguístico e antropológico quanto nas subversões produzidas pela sua intervenção, a partir do que Freud descobre sobre o inconsciente. Comecemos pela apropriação e subversão do conceito de significante operado por Lacan.
É importante considerar, sobre a linguística estrutural, que ela estabelece preceitos fundamentais para o estruturalismo ao tratar da linguagem e seus signos como algo da ordem da diferença pura, aproximando-se assim da fundamentação axiomática característica, por exemplo, da matemática. Sabemos que Saussure, em seu Cours de Linguistique Générale, define o signo linguístico como união entre conceito e imagem acústica, ou seja, entre significado e significante. A imagem acústica não se refere ao som material, mas sua impressão psíquica. Além disso, Saussure determinará tanto a arbitrariedade do signo, quanto o caráter linear do significante. Temos assim a proposição saussuriana de Significado sobre o Significante:
Lacan, entretanto, subverterá o algoritmo saussuriano, removendo tanto as flechas quanto o círculo em que se inscreve, e estabelecendo a primazia do significante sobre o significado. Encontramos essa definição já em 1957, quando de seu texto A instância da letra no inconsciente, ou a razão desde Freud, onde Lacan definirá que podemos escrever sua proposição algorítmica como
sendo o algoritmo pura função do significante, revela também uma estrutura de significante. Assim, determinará o significante em relação direta não mais ao significado, mas a outro significante. Sobre a estrutura do significante, dirá Lacan que está em que ele seja articulado, significando que suas unidades “são submetidas à dupla condição de se reduzirem a elementos diferenciais últimos e de os comporem de acordo com as leis de uma ordem fechada” (LACAN, 1978, p. 232). Sobre essa segunda propriedade, Lacan enfatiza o termo cadeia significante para ilustrar-nos com a imagem de “anéis formando um colar que se enlaça no anel de um outro colar feito de anéis” e afirmar que “é na cadeia do significante que o sentido insiste; mas que nenhum dos elementos da cadeia consiste na significação que ele é capaz no momento mesmo” (LACAN, 1978, p. 232-233). Daí veremos sua justificativa acerca da primazia do significante, e também sua crítica a Saussure que considera a linearidade “como constituinte da cadeia do discurso, conformemente a sua emissão por uma única voz e na horizontal” quando, na escrita da teoria psicanalítica apresentada por Lacan, “é necessária, mas não suficiente”, devido sua dimensão retroativa. Lacan também indicará as duas vertentes do campo efetivo que o significante constitui para se dar aí o sentido: metonímia (quando dizemos que há no mar trinta velas, onde sabemos que a palavra barco se esconde nessa relação) e metáfora (onde se troca uma palavra por outra, como quando “amor é fogo que arde sem se ver”, e grande é o crédito dado por Lacan tanto aos poetas quanto ao movimento surrealista, no que diz respeito nosso conhecimento dos usos da metáfora). Lacan finalmente chegará à questão do sujeito cartesiano, o cogito ergo sum, e à possível relação subversiva entre este e a finalidade proposta pela descoberta de Freud: Wo Es war, soll Ich werden. Podemos resumir brevemente a questão com a seguinte citação de Lacan:
O lugar que eu ocupo como sujeito de significante será, em relação àquele que eu ocupo como sujeito do significado, concêntrico ou excêntrico? Eis a questão. Não se trata de saber se eu falo de mim conformemente ao que eu sou, mas se, quando eu o falo de mim, sou o mesmo que aquele de quem eu falo. (LACAN, J. A instância da letra no inconsciente, ou a razão desde Freud. Escritos, 1978, p. 247)
Daí emerge o sujeito, “em virtude do significante que funciona como representando esse sujeito junto a um outro significante” (LACAN, 1994, p. 11). Lacan, mais para frente, desenvolverá sua teoria dos quatro discursos, dos quais não precisamos abordar todos, senão o primeiro: o discurso do mestre. Começa por ele e não é à toa. O discurso do mestre é aquele que, da posição de agente, endereça um significante mestre (S1) em uma bateria de significantes ordenados (S2) que, por sua vez, se encontra no lugar do Outro, no lugar (como nos diz Lacan) daquilo que se convencionou chamar de um saber. O discurso do mestre não precisa ser sustentado necessariamente por uma figura direta de um mestre, podendo operar simplesmente pela legitimidade que evoca, seja pelo motivo que for. O significante mestre, por sua vez, opera uma função de estofo, comanda um ordenamento discursivo. Sendo o inconsciente discurso do Outro, nele opera também um ordenamento do significante mestre sobre sua estrutura. É importante ressaltar que Lacan se refere ao S1 como puro imperativo: “O Eu transcendental é aquele que qualquer pessoa que de uma certa maneira enunciou um saber contém como verdade, é o S1, o Eu do mestre.” (LACAN, 1994, p. 59), o Eu idêntico a si mesmo, Eu ideal. O significante-mestre garante assim uma fixação do sentido, que poderia (e pode) sempre deslizar infinitamente sobre os significantes referidos a outros significantes. Ele propicia tal demarcação não por ter algo essencial, mas por um gesto vazio de referir-se a si mesmo. O “é assim porque eu disse” da autoridade paterna é um exemplo dessa demarcação gestual performática, mas no discurso político poderíamos pensar no significante mestre como o significante que existe em diferentes discursos político-ideológicos, mas que opera de forma distinta na lógica interna desses discursos: liberdade, por exemplo, é um significante mestre comum a qualquer discurso político, mas seu sentido é completamente diferente no discurso neoliberal (liberdade suprema das empresas, do mercado), no discurso nazista (liberdade de suprimir uma identidade étnica em detrimento de outra, inclusive pelo genocídio industrializado), ou no discurso marxista (liberdade de autodeterminação contra a exploração estrutural, sistêmica).
Vemos então que esse discurso diz também algo da ordem da política, do poder e do ordenamento (ou coesão) de um laço social, seja individual ou coletivo. Žižek articulará o conceito de significante mestre junto à crítica da ideologia. Gunkel define o conceito žižekiano de crítica da ideologia como aquilo que busca expor a dimensão ideológica “implícita” que fundamenta um significante mestre:
não se contesta o anti-semitismo exibindo a realidade empírica verdadeira dos indivíduos judeus e demonstrando como eles nada se parecem com o que foi (des)representado no discurso anti-semita. Ao contrário, se contesta o antissemitismo mirando a construção antissemita do “Judeu” [Jew] enquanto um significante-mestre. (GUNKEL, D. The Žižek Dictionary, 2014, p. 193)
Aqui se faz necessário que passemos por Althusser e, consequentemente, a crítica feita por Žižek à sua teoria da Ideologia. Lembremos então o que já mencionamos brevemente, via Badiou, sobre a concepção de sujeito em Althusser. Para ele, como vimos, o sujeito é uma categoria ideológica. O que isso quer dizer? Veremos a seguir a dimensão em que Althusser se afasta de Lacan, a proposição žižekiana em relação à ideologia e sua possibilidade de articulação com a crítica feita por Fanon em Pele negra, máscaras brancas.
Ideologia: Althusser, Žižek, Fanon
Althusser desenvolve sua ideia partindo das formulações acerca dos AIEs (Aparelhos Ideológicos de Estado, relacionando-os também aos Aparelhos Repressivos do Estado, os AREs) e define a constituição subjetiva através da interpelação ideológica: quando um policial interpela (convoca, adverte, demanda) um indivíduo, este é interpelado enquanto sujeito por instâncias que cumprem uma função ideológica de reprodução das relações de produção (ALTHUSSER, 1978/2010). É importante demarcar que a relação entre AIEs e AREs não são de autoexclusão, de modo que apesar de uns definirem-se mais pela característica repressiva e outros pela ideológica, ambos são tanto um quanto outro (de tal modo que a polícia militar é um aparelho repressor, mas internamente possui seus próprios aparelhos ideológicos, ao passo que redes televisivas são aparelhos ideológicos que internamente possuem seus próprios aparelhos repressores, por exemplo).
Althusser vai definir então suas teses acerca da ideologia, conceituando-a como a-histórica no sentido específico que Freud dá para o inconsciente enquanto atemporal, de tal modo que “a eternidade do inconsciente guarda alguma relação com a eternidade da ideologia em geral” (ALTHUSSER, L. 1978/2010, p. 125). Em um segundo momento, Althusser definirá também a ideologia enquanto uma “representação” da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência e possuidora de uma existência material. Por fim, Althusser afirma que não existe prática que não seja através e dentro de uma determinada ideologia, ao passo de que não existe ideologia exceto pelo sujeito e para sujeitos. Daí teremos sua tese central no texto Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado: a ideologia interpela o indivíduos como sujeitos.
Žižek retomará a formulação de Althusser, fazendo reformulações via Lacan e Hegel: na sua teoria da ideologia, Žižek pontua a importância da Jouissance enquanto fator político-ideológico, ao passo que situa a ideologia como uma dimensão constituinte da própria produção da realidade. Žižek aponta, sobre Althusser, que “o ponto fraco de sua teoria é que ele ou sua escola nunca conseguiram discernir o vínculo entre os Aparelhos Ideológicos de Estado e a interpelação ideológica” (ŽIŽEK, 1992/2010).
A resposta a isso, como vimos, é que essa “máquina” externa dos Aparelhos de Estado só exerce sua força na medida em que é vivenciada, na economia inconsciente do sujeito, como uma injunção traumática e sem sentido. Althusser fala apenas do processo de interpelação ideológica mediante o qual a máquina simbólica da ideologia é “internalizada”, na experiência ideológica do Sentido e da Verdade: mas podemos aprender com Pascal que essa “internalização”, por uma necessidade estrutural, nunca tem pleno sucesso, que há sempre um resíduo, um resto, uma mancha de irracionalidade e absurdo traumáticos que se agarra a ela, e que esse resto, longe de prejudicar a plena submissão do sujeito à ordem ideológica, é a própria condição dela: é precisamente esse excedente não integrado de trauma sem sentido que confere à Lei sua autoridade incondicional; em outras palavras, é ele que — na medida em que escapa ao sentido ideológico — sustenta o que poderíamos chamar de jouis-sens ideológico, o gozo-no-sentido (enjoy-meant) que é próprio da ideologia. (ŽIŽEK, S. Como Marx inventou o sintoma? in 1992/2010, p. 321).
Chegamos então em uma de nossas hipóteses centrais, onde abordaremos a obra de Fanon enquanto uma crítica da ideologia que já contém a dimensão do gozo-do-sentido enquanto fator político. Para isso, façamos um preâmbulo sobre nossas relações com a memória, a falta, a saudade e o (in)sucesso de nos reencontrarmos com o objeto perdido.
Um ponto contundente que nos apresenta a psicanálise é sobre como experimentamos a falta enquanto em uma fantasia retroativa, uma projeção que significa o vazio de determinada experiência de perda. A questão aqui é que esse tipo de experiência não é apenas casual, porém diz algo sobre como o sujeito se relaciona com a perda e a falta não apenas no nível das relações interpessoais. Na dinâmica abordada pela psicanálise entre o sujeito e o objeto (perdido) de desejo, que se articula na fantasia, encontramos implicações políticas de fato. Fanon é um dos maiores pensadores dessas fantasias retroativas que distribuem o campo da “geometria” do poder nas relações coloniais racializadas. Sua análise parte da relação colonizador/colonizado pela perspectiva racializada do branco e do negro, o francês e o martinicano. No movimento de seu pensamento, Fanon fundamenta a tese de que tais lugares se fundam pela posição colonial frente à diferença e vão estruturar tais relações, desde suas condições de simbolização à organização material da vida, passando evidentemente pelas expressões da cultura. Mas para compreendermos a posição de Fanon, devemos entender sua compreensão de sujeito.
Em uma fantástica passagem no seu clássico Pele Negra, Máscaras Brancas, Fanon nos diz que “há uma zona de não-ser, uma região extraordinariamente estéril e árida, uma rampa essencialmente despojada, onde um autêntico ressurgimento pode acontecer. A maioria dos negros não desfruta do benefício de realizar esta descida aos verdadeiros Infernos.” (FANON, 2008, p. 26). Essa zona de não-ser, de negatividade radical, é dimensão fundamental para o advento do sujeito: pode ser entendida como a lacuna constitutiva do descentramento que torna possível o advento do sujeito. O que Fanon sabia muito bem por sua orientação psicanalítica é que, justamente, a própria concepção da identidade negra é condicionada e cerceada em sua condição colonial. Doravante, o colonialismo não é simplesmente uma praga, natural e intrínseca ao branco – o que seria tomar como pressuposto que exista algo que preceda a experiência, algo da própria essência do branco, pressuposto que Fanon nega e combate em sentido geral: sua obra explicita justamente que não há essência racial. Fanon sabia muito bem também, pela sua orientação marxista, que o colonialismo surge da lógica do capital, e todas as suas relações serão replicadas, deslocadas, reformuladas e, enquanto a economia política que subjaz à lógica do colonialismo não for ela mesma implodida, o colonialismo e o racismo retornarão tanto em dimensão geopolítica quanto no discurso político-ideológico para cooptação do afeto do medo enquanto medo do Próximo (nesses dois sentidos, respectivamente, podemos pensar na situação contemporânea do Estado de Israel e as plataformas de partidos da extrema-direita estadunidenses e europeias contra imigrantes).
O racismo, sabemos, é presente em nossa sociedade, sendo questão fundamental para compreendermos da saúde à segurança pública, passando por inúmeras esferas da vida. Dizer isso somente não é suficiente. Precisamos conceituar como o racismo é definido enquanto fenômeno histórico, político e social para que a questão não se perca em uma compreensão psicologizante. A concepção estrutural do racismo implica compreendermos que este fenômeno é parte fundante de nossa sociedade, e está na própria forma “normal” das relações políticas, econômicas, jurídicas e familiares (ALMEIDA, 2018). Silvio Luiz de Almeida nos apresenta uma leitura sobre a formação do Estado, enquanto instituição política principal do contemporâneo, pela compreensão do racismo enquanto interligado à sua estrutura, alimentando e sendo alimentado pela mesma. Também acrescenta que é “por meio do Estado que a classificação de pessoas e a divisão dos indivíduos em classes e grupos se torna possível” e que a “especificidade da dinâmica estrutural do racismo está ligada às peculiaridades de cada formação social” (ALMEIDA, 2018, p. 84), sendo a observação das respectivas experiências históricas fator crucial para a compreensão de suas particularidades sociais, tanto que as características biológicas e culturais relacionados são suportes materiais para a significação da ideia raça, enquanto construída socialmente (ALMEIDA, 2018, p. 85).
A formação dos Estados nacionais com o advento do capitalismo se dá de tal modo que é preciso uma alteração na organização da vida social em múltiplos âmbitos, das dimensões estruturais às identidades, esse fator sendo fundamental para a construção da nacionalidade enquanto narrativa acerca dos laços sociais de determinado povo em determinado território e governado por um poder centralizado (ALMEIDA, 2018, p.85). Se por um lado o significante nacional gera pertencimento identitário, por outro cria regras de exclusão.
Mas como sabemos, a identidade não é algo fixo, essencial e imutável, não é estanque e muito menos não relacional. A identidade é um processo simbólico que estrutura o ego e, por sua limitação estrutural, é sempre implicada pela sua falta, já que toda identidade necessita de uma constituição junto ao Outro (da alteridade radical, da linguagem, etc.) e esse Outro é, por definição, faltoso, furado. Voltaremos a esse ponto mais adiante, por hora basta dizermos que a identidade se dá a partir de um processo de estruturação simbólica do imaginário, mas vai além da simples nomeação. De acordo com Žižek, já em Hegel encontramos a percepção de que há algo de violento na própria simbolização: quando nomeamos uma coisa, o próprio ato de nomeação reduz tal coisa a um traço e implica sua inserção em uma rede de significações exterior à própria coisa. Mas, não podemos esquecer, essa violência pode se dar também em uma dimensão libertadora. Não seria a diferenciação entre trabalhador (ou a categoria força de trabalho, como apresentada n’O Capital) e proletário um grande exemplo de violência simbólica emancipadora? Žižek, enquanto bom hegeliano, percebe o deslizes de Lacan ao analisar as categorias marxistas de exército industrial de reserva e população excedente
A “população excedente” e o “exército industrial de reserva” não designam precisamente uma posição subjetiva – são categorias sociais empíricas. De uma maneira implícita, sutil (não muito diferente da distinção implícita de Freud, desenterrada por Lacan, entre o ideal de ego e o superego), Marx distingue sim entre o proletariado (uma posição subjetiva) e a classe trabalhadora (uma categoria social objetiva). (ŽIŽEK, Slavoj. A Política de Alienação e Separação: de Hegel a Marx… e de Volta, 2017, p. 7)
O que devemos perceber aqui é a dimensão específica que a categoria proletariado carrega enquanto uma passagem da identidade em si do trabalhador ao para si que é perceber-se enquanto parte de uma universalidade determinada por uma negatividade potencialmente emancipatória. Essa é justamente uma das fronteiras entre sociologia e filosofia no pensamento marxista: ao tratarmos da classe trabalhadora enquanto categoria social objetiva, empiricamente observável, podemos pensar na metodologia científica sociológica de análises categoriais. Quando o termo proletariado aparece, devemos (ou ao menos deveríamos) saber que a questão da qual tratamos agora é de cunho filosófico e político, partimos para o horizonte crítico da emancipação e assumimos uma postura subjetiva. Não à toa o advento do “fim da história” como anunciado por Fukuyama significa, na verdade, o advento da pós-política. Mas, devemos lembrar, um ato político propriamente dito se diferencia da administração das questões sociais justamente por mudar a própria estrutura que determina como as coisas funcionam (ŽIŽEK, 1999/2016, p. 220) e, nesse sentido, o movimento de construção da identidade proletária pela classe trabalhadora é um ato político em si e para si. Perceber-se proletário implica incluir-se em uma categoria universal e isso, essa nomeação, muda a própria realidade, a própria forma como o sujeito interpreta e age em sua vida.
É impossível aqui não mencionarmos os ensinamentos de Fanon. Ele nos traz a importância da dimensão histórica e política na formação dessa “álgebra” dos espaços simbólicos onde se constitui a subjetividade. Se “falar é existir absolutamente para o outro” e “é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização” (FANON, 2008, p. 33), poderíamos reconhecer aqui a materialidade da fala e a dimensão superegóica do simbólico, ambas enquanto consequências (da ética) da psicanálise para o pensamento político? Žižek parece apostar que sim e segue o movimento de Fanon, afirmando que “por conseguinte, em vez de procurar desesperadamente por nossas raízes autênticas, a tarefa é perder nossas raízes de maneira autêntica – essa perda é o nascimento da subjetividade emancipatória” (ŽIŽEK, 2017, p. 09) ou, em termo mais específicos, o nascimento da subjetividade com potenciais emancipatórios.
Mas o que significa essa maneira autêntica na qual precisamos ser destituídos de nossas “raízes” para que essa subjetividade, que demanda e depende de ação emancipatória, possa surgir? Podemos encontrar uma pista na passagem de Pele Negra, Máscaras brancas, onde Fanon apresenta sua crítica ao culto da inteligência:
Quando um outro tenta obstinadamente me provar que os negros são tão inteligentes quanto os brancos, digo: a inteligência também nunca salvou ninguém, pois se é em nome da inteligência e da filosofia que se proclama a igualdade dos homens, também é em seu nome que muitas vezes se decide seu extermínio. (FANON, Pele negra, máscaras brancas, 2008, p. 43).
Nesse sentido a obra fanoniana produz um movimento crítico violentamente emancipatório contra a ideia de raça enquanto significante mestre da própria ideologia racial (e em última análise, racista): defender uma “essência da raça”, seja referindo-se ao significante “branco” ou “negro”, é recair na própria lógica colonial de demarcação dos espaços, tal qual Fanon já nos evidenciava. Se “aquilo que se chama de alma negra é frequentemente uma construção do branco” (FANON, 2008, p. 30), descobrimos que a própria alma está implicada no desvio existencial produzido pela violência colonial. Sendo assim, por Fanon compreender a subjetividade pela sua radicalidade, por entender a política e o colonialismo pela sua operação ideológica de dominação, toda sua obra é perpassada pelo efeito da compreensão prática do descentramento do sujeito, sua não coincidência com a identidade e os significantes que o traçam. Longe de ser um humanismo ingênuo que afirma sermos todos iguais bastando que “abandonemos os rótulos”, sua postura é de radicalizar a nossa própria compreensão de como se constrói a identidade do colonizado em relação ao colonizador, do preto em relação ao branco, etc. Fanon ainda busca ir além. Seu objetivo é emancipar o sujeito de suas determinações históricas:
Não se deve tentar fixar o homem, pois o seu destino é ser solto. A densidade da História não determina nenhum de meus atos. Eu sou meu próprio fundamento. É superando o dado histórico, instrumental, que introduzo o ciclo de minha liberdade. (FANON, Pele negra, máscaras brancas, 2008, p. 190)
Ao se produzir a raça como tecnologia de poder para controle dos corpos — dos que são livres ou escravos, humanos ou não humanos, nativos ou civilizados, etc. — desenvolve-se uma condição ideológica que toma os corpos como suporte material desse universo simbólico. Ora, não era justamente essa a pretensão do racismo científico, como nos mostra a frenologia?! Antes, o próprio espaço simbólico que constitui a formação de nossa consciência, subjetividade e identidade é onde se desenvolve a ideia de raça para que esta torne-se uma abstração real, no sentido marxista que Douglas Rodrigues Barros toma emprestado em seu livro Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica da metafísica racial, e o utiliza no mesmo sentido — enquanto algo que não possui fundamento substancial mas produz realidade, organiza a vida em seus efeitos materiais.
Essa abstração real da raça—que ao mesmo tempo que fundamenta a relação social funda sua forma categorial—é um processo no qual a justificativa excludente se dá no plano sociossimbólico. Isso passa a governar os destinos individuais guiando-os para uma submissão frente àquilo que aparece como o “bom”. É essa estruturação da subjetividade colonizada que interessa a Fanon. (BARROS, D. R. Lugar de negro, lugar de branco?, 2019, p. 49)
Douglas trará as armas da crítica fanoniana para nos lembrar que os dois movimentos comuns são já inscritos na lógica simbólica da colonização: 1) a super-identificação com o mundo colonial, seu estilo, linguagem, símbolos; a caracterização do poder nos termos da branquitude, e 2) a negação que busca um retorno a si, às origens, ao mundo perdido e a um mito originário que é, necessariamente, inexistente. Ambas as posições são coniventes com a lógica colonial, apesar de aparentemente distintas — até opostas. Se a primeira é mais fácil de imaginarmos, a segunda hoje pode ser ouvida por qualquer neonazista europeu ou supremacista branco norte-americano: a ideia de retorno é justamente o que eles querem impor aos árabes, mexicanos, chineses, sírios, líbios… Qualquer pessoa não-branca é “convidada” a regressar para sua “origem”— às vezes mesmo que essa pessoa tenha nascido no território do respectivo país ao qual “não pertence”. De certa forma, a violência terrorista do Estado de Israel contra o legítimo território palestino não se fundamenta justamente nesse mito originário da terra sagrada? Um povo que foi vítima de uma das mais traumáticas e rememoradas atrocidades racistas e genocidas do séc. XX, que foram subjugados à perseguição e extermínio em escala industrial por conta de um discurso paranoide orientado pela abstração real da ideia de raça, hoje protagoniza uma das maiores atrocidades em curso no contemporâneo. Hoje para um judeu afirmar-se antirracista, seguindo a máxima de que não basta não ser racista, ele categoricamente precisa se afirmar anti-sionista, ou seja, contra o Estado de Israel, que invade território palestino.
Isso nos traz a um imbróglio tão pertinente quanto espinhoso, fundamental para abordarmos a política no contemporâneo: a questão das identidades se torna central para a manutenção dos (des)governos neoliberais, de tal forma que a própria extrema-direita protofascista estadunidense e europeia já se define enquanto identitária. Enquanto isso, o debate da esquerda rendida aos limites neoliberais se dá na reafirmação da identidade enquanto sua bandeira de luta. Não seria o momento de nos questionarmos sobre a identidade enquanto categoria central para a política emancipatória? Mas, melhor dizendo, não se trata de negligenciar ou abandonar a categoria da identidade, até porque isso não faz o menor sentido. Porém, para aqueles que pensam ser esse o horizonte do embate político e não o de superação dessa camisa de força imposta objetivamente para nós, tanto pela violência da linguagem quanto pelo preço de sangue da violência sistêmica, nosso questionamento já não é mais uma questão de “se devemos”, mas de como faremos essa crítica à categoria da identidade que vise uma superação qualitativa do sujeito frente às suas determinações simbólicas.
Uma dimensão fundamental é defendermos e retomarmos o legado de Fanon e seus ensinamentos acerca da nossa relação com o gozo de nossas identidades e raízes perdidas. Acerca disso, Fanon afirma um rigoroso olhar para o futuro, contra o retorno às raízes que se revelam, em última instância, uma fantasia no pior sentido (ou no menos emancipador possível).
Não quero, acima de tudo, ser mal compreendido. Estou convencido de que há grande interesse em entrar em contato com uma literatura ou uma arquitetura negras do século III a.C.. Ficaríamos muito felizes em saber que existe uma correspondência entre tal filósofo preto e Platão. Mas não vemos, absolutamente, em que este fato poderia mudar a situação dos meninos de oito anos que trabalham nas plantações de cana da Martinica ou de Guadalupe. (Idem, Ibidem.)
Para livrarmo-nos dessas fantasias, precisamos nos livrar também dos gozos do sentido que ainda nos amarram ao pensamento identitário. É necessário aqui atentarmos que a crítica da ideologia se revela não apenas como uma crítica da economia política, mas uma crítica da economia libidinal. Para essa crítica, precisamos nos aprofundar no materialismo simbólico que é constitutivo do sujeito. Sabemos do diálogo e influência que o pensamento de Fanon teve em relação à filosofia francesa do século XX, em especial com Sartre e Lacan, que aparece em algumas citações de Pele negra, máscaras brancas, tanto enquanto referência como objeto de elaboração crítica acerca da teoria psicanalítica, por exemplo quando Fanon sugere uma problemática acerca do estágio do espelho, como formulado por Lacan, quanto a função simbólica do Outro em relação ao branco e ao negro, como quando diz “que é, tomando como referência a essência do branco, que o antilhano é percebido pelo seu semelhante” (FANON, F. Pele negra, máscaras brancas, 2008, p. 142). Aqui vemos surgir a dimensão do Outro enquanto constitutivo da relação com o semelhante, um Outro branco que se revela mediando a relação mesmo entre colonizados. Não é à toa que quando lemos esta obra fica evidente que Fanon já premeditava uma recepção ríspida de suas críticas e posicionamentos, vindas de todos os lados (fosse dos movimentos negros, fosse de marxistas brancos europeus, etc.). Fanon convoca a uma verdadeira travessia da fantasia: para um lugar onde um “autêntico ressurgimento pode acontecer”. Vale retomar essa passagem citada: “A maioria dos negros não desfruta do benefício de realizar esta descida aos verdadeiros Infernos.” (FANON, 2008, p. 26) Mas o que são esses verdadeiros Infernos? Fanon está ciente tanto da necessidade quanto da violência implicada nesse corte, nessa simultaneidade entre emergir e separar-se desse Outro imposto social e historicamente, intocado e protegido pela pseudo-atividade autômata e acrítica que o permite seguir nos vampirizando.
Conclusão
Das conclusões que podemos tirar desse percurso, ressaltemos três: a primeira é a importância de retornarmos a Fanon, com o mesmo rigor teórico que ele nos presenteia. É importante que o leiamos à luz do que fora elaborado após sua produção, da teoria contemporânea, junto também dos desdobramentos de autores com os quais ele dialogava entusiasticamente. Sua obra ainda tem muitas possibilidades de articulação a serem exploradas junto aos seus interlocutores, em específico o que ressaltamos aqui (Lacan), e essa atualização e diálogo é obrigação a todos que pretendem disseminar seu legado ainda profícuo. Em segundo lugar, vale dizer que ler Fanon com Lacan ressalta uma dimensão política do segundo que normalmente não percebemos, ou que alguns ignoram. Ou seja, Lacan é fundamental para a política contemporânea caso o leiamos com as lentes forjadas e polidas por Fanon. Por último, podemos reconhecer em Fanon uma crítica voraz ao apego ideológico ao passado enquanto uma realidade mítica perdida e, como espera-se ter sido evidenciado, fundamentalmente um apego paralisante, um apego que corresponde ao que hoje podemos compreender como dimensão ideológica constitutiva da realidade: algo que nos forma, mas não deve ser admitida, aceita, como horizonte eterno ou final. Fanon nos ensina que aquilo ao qual nos apegamos enquanto passado originário, mítico, é, via de regra, construção determinada pela dimensão imaginária e simbólica que nos impossibilita qualquer saída emancipatória. É importante ressaltar que isso não significa uma desvalorização da história, mas a necessidade de que, para nos emanciparmos, é necessário superar suas determinações, ou seja, para finalizarmos em seus termos: que conheçamos o passado para que nada dele nos determine, que conheçamos o passado para podermos elencar o que dele nos emancipa e o que não nos serve para sermos livres.
Referências
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