Por Henri Lefebvre, via LavraPalavra
Prefácio do autor ao livro “O pensamento de Lênin”, publicado pela LavraPalavra Editorial em abril de 2020, por ocasião do aniversário de 150 de Vladímir Ilitch Uliánov, vulgo Lênin.
Lênin (1870-1924) foi o fundador e o teórico do partido comunista (bolchevique), o organizador e o dirigente da Revolução Russa de outubro de 1917, acontecimento histórico de consequências incalculáveis. [1]
Desde então, Stálin na Rússia soviética, Mao Tsé-Tung na China, Tito na Iugoslávia, Togliatti na Itália, Maurice Thorez na França e muitos outros na maior parte dos países do mundo consideram-se ou são considerados “leninistas”, discípulos e continuadores de Lênin.
Como será então possível compreender a história contemporânea – a de ontem, a de hoje e a de amanhã – sem conhecer o pensamento de Lênin, a que se chama o “marxismo-leninismo”?
Lênin foi essencialmente um revolucionário, sem dúvida o maior revolucionário de todos os tempos. Depois da sua morte, o pensamento e a obra que nos deixou continuaram a ser fermentos revolucionários. É isto que faz com que seja difícil falar dele – ou ouvir falar – com aquela mistura de serenidade e de indiferença um pouco fria que é frequentemente confundida com a “objetividade” histórica ou filosófica. Tanto mais que Lênin se distingue dos outros grandes revolucionários por não ter morrido vencido, sacrificado à causa que defendera – como Robespierre ou Babeuf –, antes ter desaparecido em plena vitória quando era um homem de Estado no poder.
O autor de uma obra sobre Robespierre ou sobre Espártaco pode conseguir – não sem dificuldade – uma tal “objetividade”. Porque não existe um “robespierrismo” ou um “espartaquismo” no sentido preciso duma doutrina filosófica e política ainda atual e viva. Ora, existe um leninismo. E queremos, esperamos poder resumi-lo neste livro, de forma acessível aos leitores desejosos de se informarem a seu respeito.
Pediremos pro isso ao leitor, a título de convenção prévia e tácita, a título de “acordo de cavalheiros”, que suspenda o seu juízo e admita que vai conhecer o teórico, o estrategista e o tático da revolução proletária, com a sua filosofia.
Se o leitor já se informou sobre Marx e o marxismo, o trabalho será de mais fácil realização, pois possuirá assim os elementos necessários para compreender o pensamento de Lênin, conseguirá seguir melhor os desvios e o caminhar complexo desse pensamento, admitirá com mais facilidade o tom muitas vezes violento das polêmicas, que Lênin teve com os adversários.
Este livro propõe-se resumir o leninismo. Não é seu objetivo descrever os acontecimentos em que participou Lênin, embora não possa dispensar algumas alusões. Por isso, nunca poderá substituir um manual de história contemporânea ou a leitura de vários estudos especializados.
A bem da verdade, trata-se da história mundial desde há mais e cinquenta anos, uma história complicada, em muitos aspectos trágica e mesmo “infernal”, uma história terrivelmente acelerada, utilizando uma palavra engenhosa que já se tornou banal. No fim deste estudo, e depois de ter suspendido o seu juízo segundo o princípio cartesiano, o leitor poderá talvez compreender como e por que é que Lênin desempenhou um papel tão grande nesta história.
O leninismo começa por aparecer como uma corrente ou uma tendência do pensamento revolucionário inspirado em Marx e no vasto movimento em que a classe operária moderna procura o seu caminho. Com o mesmo título que, por exemplo, o “luxemburguismo” (a teoria de Rosa Luxemburgo) ou o “trotskismo” (doutrina de Trótski). E, contudo, o leninismo venceu todas as outras correntes e tendências. Como e por quê? É também o que veremos, pouco a pouco, quando conseguirmos ultrapassar as definições incompletas e unilaterais do pensamento leninista, que apenas revelam um aspecto ou fornecem uma interpretação exclusivamente polêmica.
Diga-se desde já que a palavra “leninismo” raramente se emprega sozinha. Os que a utilizam isoladamente, de forma sistemática, fazem-no para separar o leninismo do marxismo. Como regra geral, diz-se “o marxismo-leninismo”, e foi esta expressão que entrou tanto no vocabulário político corrente como no vocabulário filosófico. Contudo, a existência dum termo distinto basta para mostrar que o leninismo não coincide com o marxismo. Teremos, pois, que mostrar em que é que o leninismo se distingue do marxismo e o que justifica a aliança das palavras “marxismo-leninismo”. Para isso, teremos por vezes que voltar às teorias marxistas e retomá-las para expor as ligações que têm com as teorias de Lênin.
Contrariamente ao que por vezes se julga, não é fácil descobrir a articulação exata do marxismo e do leninismo. Ilustremos rapidamente esta tese. Diz-se e pensa-se muitas vezes que as questões agrárias e camponesas, abandonadas por Marx, que estudava apenas o capitalismo e a situação do proletariado na sociedade burguesa, tiveram na obra de Lênin uma importância considerável a nova em relação ao marxismo. E isto porque Lênin aplicava a análise marxista a um país atrasado, essencialmente agrícola: a Rússia czarista.
Daqui a considerar que o leninismo [2] é um fenômeno especificamente russo, ou mesmo um desvio do marxismo, há apenas um passo, que em muitas discussões e polêmicas chegou a ser dado – expressa ou implicitamente.
Ora, sob esta forma, a tese não corresponde à verdade. Primeiro, porque Marx não pôs de lado as questões agrária e camponesas. E não o podia fazer porque a sua análise tomava como ponto de partida a economia burguesa clássica. Ora, a teoria da renda da terra é uma peça essencial na obra de Ricardo. Das obras de juventude de Marx a O Capital, as alusões e referências à teoria da renda da terra, base da análise das questões camponesas, são constantes. Mas é apenas na última parte de O Capital que Marx estuda o conjunto da sociedade capitalista e a repartição dos “rendimentos” entre as diferentes classes e estratos dessa sociedade. Só nesta parte é que Marx nos dá a fisiologia da sociedade, enquanto Ricardo se tinha limitado a uma anatomia incompleta. Marx retoma a teoria da renda da terra, critica Ricardo, elabora a sua própria teoria. Ora, esta parte de O Capital nunca foi terminada. Além de que poucos leitores chegam até lá. A maior parte nem sequer vai até a teoria dos preços e dos rendimentos, e a todos os problemas aí colocados. Problemas que, em conjunto, Lênin resolveu a partir dos seus primeiros trabalhos. Porque Lênin partiu da obra inacabada de Marx e retomou-a no ponto exato em que Marx a deixara.
Estas circunstâncias permitiram que ganhasse foros de verossimilhança uma lenda segundo a qual o marxismo – a obra de Marx – conteria uma análise crítica da produção industrial e da situação do proletariado na sociedade burguesa, desprezado o setor agrícola ou supondo-o já integrado ao setor industrial.
A verdade é que Lênin desenvolveu a teoria agrária já contida em Marx. [3] Estas análises explicam a influência decisiva do leninismo nos países ditos “subdesenvolvidos”, onde se efetuaram ou efetuam-se ainda reformas agrárias, onde se procede à mecanização e à industrialização da agricultura pela cooperação (pela via socialista). Mas esta característica importante não basta para definir o leninismo.
Já seria mais verdadeira a caracterização do leninismo através da análise do capitalismo dos monopólios.
Marx, estudando a livre concorrência, previra a concentração e a centralização do capital, a eliminação da concorrência das pequenas e médias empresas, ou a sua subordinação às maiores. Mas não pôde assistir à era em que os monopólios, trustes, konzerns, holdings, etc., [4] conquistaram efetivamente a hegemonia sobre o conjunto da sociedade, incluindo os elementos capitalistas, os não capitalistas (artesãos, pequenos agricultores) e o próprio aparelho do Estado. E isto, apesar dos protestos, das legislações antitrustes, etc.
Marx não pôde, pois, participar nas ásperas discussões sobre este ponto decisivo – discussões em que alguns se limitavam a lamentar ou a protestar em nome do liberalismo “clássico”, em que outros viam nos monopólios o gérmen duma nova ordem, o elemento organizador do caos capitalista do tempo da livre concorrência. Discussões em que Lênin mostrava que existia nos monopólios, simultaneamente, um elemento de concorrência violento, podendo ir até a guerra, um sintoma de decomposição interna do capitalismo e uma possibilidade de passagem ao socialismo – desde que fossem transformadas as relações sociais de produção e retirada à burguesia como classe a propriedade dos meios de produção e a gestão dos negócios públicos.
Mas esta importante definição do leninismo deixa ainda de lado alguns traços importantes do pensamento político e filosófico de Lênin.
Seria ainda mais exato caracterizar o leninismo pela teoria e prática da ditadura do proletariado.
Lembrando desde já que a palavra e a ideia vêm de Marx. Na célebre carta a Weydemeyer (de 5 de março de 1852, publicada apenas em 1907, por Mehring, no Die neue Zeit [5]), Marx resume o significado político dos desastres revolucionários de 1848. Foram outros que não ele, diz Marx, que descobriram a luta de classes: os historiadores franceses da restauração. Foram outros que não ele, os economistas clássicos Smith e Ricardo, que expuseram a anatomia da sociedade e das classes:
“O que eu fiz de novo consiste na demonstração seguinte:
1) A existência das classes depende exclusivamente de condições determinadas, históricas, ligadas ao desenvolvimento da produção.
2) A luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado.
3) Esta ditadura constitui somente o período de transição para a supressão de todas as classes e para a sociedade sem classes.”
Este texto de Marx precisa o do Manifesto em que se trata apenas da conquista da democracia pelo proletariado e da constituição da classe operária em classe dominante nacionalmente.
Lênin foi, pois, buscar em Marx a ideia da ditadura do proletariado, mas desenvolveu-a e aplicou-a, elaborando uma estratégia e uma tática políticas da classe operária com o objetivo de conquistar e exercer o poder.
Mas seria totalmente errôneo caracterizar o leninismo pela intervenção brutal da violência e só da violência, quebrando todo o constrangimento, suprimindo toda e qualquer legalidade no decurso duma brusca e absoluta descontinuidade histórica. A possibilidade da violência revolucionária e o uso efetivo da coação sobre a burguesia não acarretam necessariamente o emprego sem limites da violência. Lênin distingue cuidadosamente a preparação da ditadura e a sua realização. No período de preparação (como em 1905 ou em fevereiro de 1917, na história da Rússia), a classe operária começa por estabelecer o seu papel predominante e dirigente no decurso da revolução democrática burguesa. Esta revolução e o regime político que se lhe segue não são dados preestabelecidos; embora tenham limites, esses limites não são fixos, pois dependem das relações de força e da atividade política das classes em presença. A democracia burguesa pode aprofundar-se de tal forma que o papel nela desempenhado pela classe operária venha a conter o gérmen do poder decisivo dos operários e, simultaneamente, o exercício deste poder de forma tão pouco violenta quanto seja possível. Há, portanto, fases de transição; é o caso da ditadura democrática dos operários e camponeses sobre os senhores feudais e os restos do feudalismo, contra o czarismo e os seus adeptos (esta ditadura realizou-se efetivamente em outubro de 1917, com a participação dos Socialistas Revolucionários de esquerda, representantes dos camponeses, que redigiram com Lênin o decreto que aboliu a propriedade rural). Contudo, o programa leninista não compreendia o “gozo igualitário” do solo nem a “socialização da terra” no quadro estreito da aldeia, tal como era concebida pelos SR de esquerda. Lênin, como se verá mais claramente no decurso deste livro, distinguia cuidadosamente o conteúdo democrático e o conteúdo socialista das relações sociais e da sua transformação. Para ele, democracia e socialismo, sem se excluírem, não coincidiam. Há transições entre uma e outro, e o socialismo é o desenvolvimento da democracia As suas relações são complexas, dialéticas, comportando problemas e conflitos ou possibilidades de conflitos. Segundo Lênin, as medidas democráticas preconizadas pelos “socialistas-revolucionários de esquerda” tornavam possível e mesmo inevitável o reestabelecimento duma burguesia e dum capitalismo, que tomaria por base a produção mercantil. A reforma agrária (redistribuição do solo nacionalizado, dada em usufruto perpétuo aos camponeses) alteraria profundamente a estrutura da propriedade e da exploração na Rússia. Mas Lênin considerava que esta reforma agrária, de conteúdo democrático, seria o primeiro passo na transição para a grande exploração socialista, mecanizada e eletrificada. Durante esta transformação gigantesca, as terras dos camponeses ricos – que, aliás, as tinham obtido expropriando-as aos senhores feudais – deviam por seu turno serem expropriadas a favor dos camponeses pobres e médios. Os SR de esquerda, que não aceitaram estas medidas, saíram da coligação governamental.
“Foi no verão de 1918 que começou a revolução proletária nos campos”, escreveu então Lênin.
A Rússia e o povo russo passaram nessa época, com uma iniciativa e espontaneidade revolucionárias orientadas pelo leninismo, da ditadura democrática dos operários e camponeses (dirigida contra os senhores feudais) à ditadura do proletariado (dirigida contra toda a burguesia, incluindo, portanto, a burguesia rural). Aliados ao proletariado urbano e industrial, nesta nova fase, estavam os camponeses pobres contando com a neutralidade e o auxílio dos camponeses remediados ou médios. [6] Foi no decurso desta transformação que a burguesia, aliando-se aos restos do feudalismo, tomou a iniciativa da violência: foi à guerra civil com a participação de potências estrangeiras. Daqui o endurecimento extremo da ditadura do proletariado: a violência respondeu à violência.
Para mostrar que Marx não tinha podido prever as modalidades práticas da ditadura que anunciara – e para demonstrar também que o pensamento político de Lênin se revela muito mais complexo e flexível do que geralmente se supõe – demos um exemplo, um pouco prematuro, tirado dos fatos e acontecimentos históricos dos anos 1917-1918. Lênin distingue mas não separa nem opõe estes termos frequentemente dissociados: democracia e socialismo – legalidade e coação – reforma e revolução – continuidade e descontinuidade históricas e políticas. Se é certo que para Lênin existiam princípios teóricos e objetivos práticos definidos, é verdade também que existiam as situações concretas: “A verdade é sempre concreta”.
Lênin fizera expressamente seu este aforismo de Hegel.
Diremos, com o filósofo soviético Debórin, que: “Lênin foi o homem da prática, da ação política, o chefe. […] O leninismo é o marxismo revolucionário”? [7]
Não. O praticismo assim afirmado, por oposição o teoricismo doutros marxistas e do próprio Marx, só corresponde a uma parte da verdade.
Definiremos então com Stálin, no livro Questões do Leninismo, a doutrina de Lênin através da teoria e da prática, da estratégia e da tática da ditadura do proletariado? Sim, até certo ponto, e só até certo ponto. Com esta reserva: a teoria da ditadura do proletariado tem que ser tomada em toda a sua complexidade e na subordinação ao devir histórico, às situações concretas.
Acrescentamos expressamente que a obra de Lênin transborda deste aspecto político, que depende do método utilizado, mas não o subjuga. Lênin foi também um filósofo. E, na nossa opinião, o seu pensamento filosófico é o que nos dá o fio condutor que atravessa toda a obra e a torna compreensível.
Em 1924, pouco depois da morte de Lênin, Stálin definia o estilo do grande desaparecido. E fazia-o em termos que hoje talvez surpreendam. Deixemos-lhe a palavra:
“Quais são os traços característicos desse estilo? Quais as suas particularidades? Estas particularidades são duas:
a) o élan revolucionário russo;
b) o sentido prático americano.
O élan revolucionário russo é o antídoto contra a inércia, a rotina. […] O sentido prático americano é a força indomável que não conhece nem reconhece barreiras […].”
[O livro encontra-se disponível na Livraria do LavraPalavra]
Notas:
[1] Este livro foi escrito em julho-setembro de 1955. Algumas modificações sem importância que foram feitas depois do texto inicial encontram-se em notas.
[2] E, portanto, também o “stalinismo”.
[3] E em numerosos textos de Engels que não podemos recordar aqui.
[4] Justapomos aqui estes termos, deixando de lado os seus significados e as diferenças que entre eles existem.
[5] Lênin, O Estado e a Revolução, capítulo II, parte 3, e também A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky, capítulo II, p. 429. Quando citamos Lênin, utilizamos quase sempre as Œuvres Choisies, em dois tomos, Éditions en Langues Étrangères, Moscou, 1948.
[6] Estas categorias não são, em geral, suscetíveis duma definição econômica rigorosa.
[7] Abrám Moiséevitch Debórin, Lenin, der kampfende Materialist, Viena-Berlim, 1924, p. 9-13.