Por Alain Badiou, via Quartier Général, traduzido por Daniel Alves Teixeira e Maria Betânia Ferreira Champagne, publicado em parceria com os Tradutores Proletários.
O que eu gostaria de ter falado esta noite, mas que não pude em razão de problemas pessoais, é uma resposta à seguinte pergunta, sobre a palavra que nos une em princípio, a saber, a palavra “lutas”, e a expressão “depois de dois anos de luta”.
Para resumir, eu diria o seguinte: em escala quase global, há alguns anos, sem dúvida desde o que se chamou de “Primavera Árabe”, estamos em um mundo onde abundam as lutas, mais precisamente: mobilizações e mobilizações de massa. Proponho dizer que a conjuntura geral é marcada, subjetivamente, pelo que chamarei de “movimentismo”, ou seja, a convicção amplamente compartilhada de que grandes mobilizações populares vão sem dúvida chegar a mudar a situação. Vemos isso de Hong Kong a Argel, do Irã à França, do Egito à Califórnia, do Mali ao Brasil, da Índia à Polônia e em muitos outros lugares e países.
Todos esses movimentos, sem exceção, me parecem ter três características:
- Eles são diversos em sua composição social, na origem de sua revolta e em suas convicções políticas espontâneas. E esse aspecto multifacetado também ilumina seu número. Não são agrupamentos de trabalhadores, ou manifestações de movimentos estudantis, ou revoltas de lojistas esmagados por impostos, ou protestos feministas, ou profetas ecológicos, ou dissidências regionais ou nacionais, ou protestos daqueles que se chama de migrantes e que chamo de proletários nômades. É um pouco de tudo isso, sob o domínio puramente tático de uma tendência dominante, ou várias, dependendo da localização e das circunstâncias.
- Resulta desse estado de coisas que a unidade desses movimentos é – e só pode ser, no estado atual das ideologias e organizações – estritamente negativa. Essa negação se relaciona, é claro, com realidades díspares. Pode-se revoltar contra a ação do governo chinês em Hong Kong, contra a apropriação do poder por bandos militares em Argel, contra o estrangulamento por parte da hierarquia religiosa no Irã, contra o despotismo pessoal no Egito, contra as maquinações da reação nacionalista e racial na Califórnia, contra a ação do exército francês no Mali, contra o neo-fascismo no Brasil, contra a perseguição aos muçulmanos na Índia, contra a proibição retrógrada do aborto e das precauções sexuais na Polônia e assim por diante. Mas nada mais, em particular nada que seja uma contraproposta geral, está presente nesses movimentos. No final, por falta de algo como uma proposta política comum que esteja claramente livre das amarras do capitalismo contemporâneo, o movimento acaba exercendo sua unidade negativa contra um nome próprio, geralmente o de chefe de Estado. Iremos do grito “Mubarak, saia” ao “Fora Bolsonaro”, passando por “Modi racista, vá embora”, “Fora Trump”, ”Bouteflika, aposente-se”. Sem esquecer, é claro, as invectivas, os anúncios de demissão e a estigmatização pessoal de nosso alvo natural aqui, que não é outro senão o pequeno Macron. Eu proponho então dizer que todos esses movimentos, todas essas lutas são, em última instância, “saiforismos” Queremos que o atual líder saia, sem ter a menor ideia de quem vai substituí-lo ou do procedimento pelo qual, se ele o fizer, teremos certeza de que a situação irá mudar. Em suma, a negação que unifica não traz consigo nenhuma afirmação, nenhuma vontade criadora, nenhuma concepção ativa da análise das situações e do que pode, ou deve, ser um novo tipo de política. Na falta de tudo isso, acabamos – é o sinal do fim dos movimentos – em direção a essa forma última de sua unidade, que é a de se levantar contra a repressão policial de que foram vítimas, a violência policial que eles tiveram de enfrentar. Em suma, a negação de sua negação pelas autoridades. Eu já conheci isso em maio de 68, onde por falta de afirmações comuns, pelo menos no início do movimento, nós gritavámos nas ruas “CRS, SS!” ” Felizmente, mais tarde, na época, depois do primado da negativa rebelde, houve coisas mais interessantes, mas à custa, é claro, de um embate entre concepções políticas opostas, entre afirmações distintas.
- Hoje, com o passar do tempo, todo o movimentismo planetário resulta apenas em um controle reforçado do poder estabelecido, ou em mudanças puramente de fachada que podem acabar sendo piores do que aquilo contra o qual se revoltou. Mubarak foi retirado, mas Al Sisi, que o substitui, é outra versão, talvez pior, do poder militar. O controle da China sobre Hong Kong acabou por sair fortalecido, com leis mais próximas das de Pequim e prisões em massa de rebeldes. A camarilha religiosa no Irã está intacta. Os reacionários mais ativos como Modi ou Bolsonaro, ou a camarilha clerical polonesa, estão indo muito bem, obrigado. E o pequeno Macron está em muito melhor saúde eleitoral hoje, com 43% de opiniões favoráveis, não só em relação ao início de nossas lutas e movimentos, mas até mesmo em comparação com seus antecessores, quer se trate do muito reacionário Sarkozy ou do muito socialista em pele de coelho Hollande, com o mesmo tempo de Macron hoje, se arrastavam em cerca de 20% das boas opiniões.
Penso que uma comparação histórica se impõe. Nos anos entre 1847 e 1850, houve, em grande parte da Europa, grandes movimentos operários e estudantis, grandes levantamentos de massas, contra a ordem despótica estabelecida desde a Restauração de 1815 e sutilmente consolidada depois da revolução francesa de 1830. Por falta de uma ideia firme do que poderia ser a representação de uma política essencialmente diferente, para além de uma negação fervente, toda a efervescência das revoluções de 1848 serviu apenas para abrir uma nova sequência regressiva. Notavelmente, na França, o resultado foi o reinado interminável de um típico advogado do capitalismo nascente, Napoleão III, aliás, segundo Victor Hugo, o pequeno Napoleão.
No entanto, em 1848, Marx e Engels, que haviam participado dos levantes na Alemanha, extraíram as lições de todo o caso, tanto em textos de análise histórica, como no fascículo intitulado “As lutas de classes na França”, como neste manual, finalmente afirmativo, descrevendo – para sempre, por assim dizer – o que deveria ser uma política inteiramente nova, que se intitula “Manifesto do Partido Comunista”. É em torno dessa construção afirmativa, carregando o “manifesto” de um Partido que não existe, mas que deve existir, que começa, a longo prazo, uma outra história das políticas. Marx voltará ao assunto, tirando, vinte e três anos depois, as lições de uma tentativa admirável, que carece, uma vez mais, para além da sua heróica defensiva, a organização eficaz de sua unidade afirmativa, a saber: a Comuna de Paris.
Bem entendido, nossas circunstâncias são muito diferentes! Mas acredito que tudo gira, hoje, em torno da necessidade de que nossos slogans negativos e nossas ações defensivas sejam, em última instância, subordinados a uma visão clara e sintética de nossos próprios objetivos. E estou convencido de que para chegar a isso, devemos em todo caso lembrar o que Marx declarou ser o resumo de todo o seu pensamento. Resumo certamente ele mesmo também negativo, mas em tal escala que só pode ser sustentado por uma afirmação grandiosa. É a palavra de ordem “abolição da propriedade privada”.
Olhando de perto, palavras de ordem como “defesa de nossas liberdades” ou “contra a violência policial” são estritamente conservadores. A primeira implica que temos, na ordem estabelecida, verdadeiras liberdades para defender, enquanto nosso problema central deveria ser que, sem igualdade, a liberdade é apenas um engodo: como o proletário nômade privado de papéis legais, e cuja vinda até nós é uma epopéia cruel, poderia se dizer “livre” no mesmo sentido que o bilionário detentor do poder real, dono de um avião privado e de seu piloto, e protegido pela fachada eleitoral de seu representante no Estado? E como imaginar – se somos revolucionários consequentes, se sustentamos o desejo afirmativo e racional de um mundo diferente daquele que contestamos – que a polícia do poder em vigor pudesse ser sempre amigável, cortês e pacífica? O que ela diria aos rebeldes, alguns dos quais encapuzados e armados: “O caminho para o Eliseu? O grande portão, na rua a direita”?
Mais valeria voltar ao cerne da questão: a propriedade. A palavra de ordem geral unificador pode ser imediatamente, afirmativamente: “coletivização de todo o processo de produção”. Seu correlato negativo intermediário, para levantamento imediato, pode ser “abolição de todas as privatizações decididas pelo estado desde 1986”. Quanto a uma boa palavra de ordem puramente tática, dando trabalho àqueles a quem o desejo de negação domina, poderia ser: tomemos de assalto as instalações de um órgão muito importante do Ministério da Economia e Finanças, denominado: Comissão de Participações e Transferências. Façamo-lo sabendo que este nome esotérico, “participações e transferências” é apenas a máscara transparente da Comissão de privatizações, criada em 1986. E façamos saber que ocuparemos esta comissão de privatizações até ao desaparecimento de qualquer forma de propriedade privada que diga respeito, de perto ou de longe, ao bem comum.
Simplesmente popularizando esses objetivos, tanto estratégicos quanto táticos, abriríamos então, acreditem, outra era, depois daquela das “lutas” dos “movimentos” e dos “protestos”, cuja dialética negativa está em vias de se esgotar, e de nos esgotar. Seríamos os pioneiros de um novo comunismo de massas cujo “espectro”, para falar como Marx, voltaria para assombrar não só a França ou a Europa, mas o mundo inteiro.