Só se perde duas vezes – para uma apropriação da derrota

Por Philippe Augusto Carvalho Campos

Uma anedota pra começar… nos idos de 2012 conheci o Freixo pelo Facebook enquanto ele concorria à prefeitura do Rio, à época, o então derrotado, em seu discurso de derrota, disse algo como: “nós não perdemos, nós já fomos vitoriosos, foi lindo ver essa juventude linda na rua”. Dois anos mais tarde, foi a vez do Tarcísio protagonizar a derrota pro governo do estado, se bem lembro, ele disse algo como: “nós não perdemos, já fomos vitoriosos, foi lindo ver essa juventude linda na rua”. Dois anos mais tarde, eu estava presente no discurso de derrota na Cinelância, daí quando o Freixo pegou o microfone eu disse a meu amigo: “ele vai dizer que nós não perdemos, que já fomos vitoriosos, que foi lindo ver essa juventude linda na rua” e, novamente o Freixo, novamente derrotado, novamente na Cinelância, sem surpresa: “nós não perdemos, já fomos vitoriosos, foi lindo ver essa juventude linda na rua”… e esse ano foi a vez do Boulos: aos 6:35 de seu pronunciamento de derrota, ele diz, “não tenho dúvida alguma, de que a pesar de a gente não ter ganho essa eleição, a gente saiu vitorioso…” A esquerda é vitoriosa demais, mas estou buscando aqui a derrota. Como faz pra perder?

Num chute, diria que a direita perde de um jeito diferente da esquerda. A direita nega a derrota, tal a atitude fundamental do Trump. A esquerda perde de um jeito mais elegante, se a direita vira as costas para a derrota, a esquerda olha para ela de viés: “é, não foi bem uma derrota, pensado melhor, foi até uma vitória”. Gostaria de sugerir duas atitudes por trás de cada modo de lidar com a ocorrência:

A atitude de um Trump parece ser aquilo que Freud chamou de sobrecompensação excessiva. O homem, diante de sua fraqueza (castração), tenta compensá-la com uma espécie de virilidade copiosa ou excessiva – o termo popular para essa sobrecompensação pode ser “dobrar a aposta”. Diante de um engano, de uma opinião ruim, de uma derrota ou de uma situação vexatória, enfim, diante de uma contraprova da perspectiva, o agente confirma a postura; uma espécie de tautologia cega. Porque o sujeito é “imbrochável” (nosso digníssimo timoneiro é mestre nisso). Desde o núcleo tautológico da postura, o sujeito é impulsionado a negar fatos, à criação de mirabolâncias conspiratórias (que é outro modo de negar fatos), ao apelo à indignidade do outro, a agressão verbal ou efetiva… É necessário coragem. Requer muita energia sustentar a posição, estamos diante de uma estrutura que quanto mais se enrijece mais se tensiona, de modo que o colapso adviria de uma simples brochadinha. Por isso, também, que os circuitos preferenciais para esses atores são circuitos privados, como whatsapp, ali encontramos o ambiente em que a sobrecompensação pode circular sem excessividades, sem obstáculos, posto que o obstáculo ou contraprova geram respostas ansiógenas ou tautológicas do tipo “dobrar a aposta”. E é por isso, também, que o agente nesse caso é meio suicida, a ideia é ir até o fundo do posso, posto que qualquer arrefecida é a perda de si ou da virilidade. Com efeito, uma coragem estúpida ou cega. É isso mesmo![1]: a frase daquele que dá as costas para a derrota ou que nega o erro.

A atitude de um Freixo ou de um Boulos (gosto muito dos dois, perdão por arquetipificá-los), por outro lado, é uma atitude de evitação, ou, o que Freud nomeia por inibição. A inibição na vista do Lacan é uma função dupla: Inicialmente a inibição opera de modo a preparar o terreno para um dito espirituoso; coloca-se o outro numa espécie de estado de expectativa e é sobre essa expectativa que advém a tirada espirituosa – por exemplo nas piadas de três tempos, em que o terceiro é o que contém o elemento cômico, os outros dois são a preparação inibitória. Diremos, contudo, que a inibição nesse caso se refere à mitigação de uma situação tensa por meio de espirituosidade, sem, no entanto, haver a resolução da situação como acontece numa tirada espirituosa. Segundo, a inibição é a introdução de um desejo diferente daquele suposto pela situação, por exemplo, Freud nos diz da impotência numa situação de coito – nesse caso a inibição é manifestação de um desejo outro daquele que era esperado na função do sexo. Antes de voltarmos à nossa linha; na soma da segunda com a primeira características, a inibição é uma impotência decorrente de um desarranjo numa função e, depois disso, a mitigação dessa impotência com artifícios espirituosos – é o lado bom de quando se narra uma situação vexatória. No nosso caso, temos uma derrota, insere-se um desejo outro nessa derrota, “na verdade foi vitória” e justifica-se essa vitória com o passe de mágica do sujeito das letras apto a construir a bela narrativa a fim de mitigar a situação. Se nossa primeira atitude envolvia o desacontecimento pela via da virilidade e da repetição da colocação de si  – como se a verdade dependesse de uma firmeza moral – aqui, temos o desacontecimento pela via da espirituosidade – como se a verdade dependesse de ponto de vista. Se ali se trata de uma coragem estúpida, aqui, de uma covardia espirituosa. Se ali a estrutura se enrijece na medida em que se tensiona, aqui, o distensionamento por meio da narrativa visa apagar a finalidade da função inicial, a vitória. Não é bem isso: a frase de quem olha de soslaio pra derrota ou que relativiza o erro.

O que há em comum a essas duas atitudes é o fato de não existir a coisa em estado puro, como se a derrota dependesse essencialmente do modo como a experiência é representada pelo agente. No primeiro caso ela é re-negada, no segundo, de-negada. Aquele nega o acontecido quando este se interpõe, o outro se separa dele quando o encara. É isso mesmo, não perdi! Ou não é bem isso, não perdi.

Um acontecimento qualquer tem essa característica, não se pode lidar com algo a menos que se o represente de alguma forma, isto é, a leitura da coisa faz parte da própria coisa; e aí encontra-se o ponto determinante. Nem sempre podemos controlar o que nos acomete, mas podemos reagir a isso de diferentes maneiras, ou representar isso de diferentes maneiras ou prefixar isso distintamente. Depois de sucessivas “vitórias”, talvez tenha chegado a hora de sermos derrotados – olha pra fora e vê isso virou. É difícil lidar publicamente com uma fraqueza ou com uma derrota, andar por aí com o emblema do erro, mas só se perde duas vezes: a primeira na ocorrência e a segunda quando se toma a ocorrência para si. Daí a coragem, mas a coragem negativa afirma só a firmeza moral e sua recusa em aceitar perda. É necessário, contudo, a espirituosidade, pois é ela quem pensa, mas o pensamento sem a matéria – e a matéria aqui é a derrota – é só pensamento gratuito. “Em time que tá ganhando não se mexe”, diz a sabedoria, a fim de se mexer, seriam necessárias a coragem e a espirituosidade da afirmação da derrota. Beckett pode ser um farol:

Tudo de velho. Nunca outra coisa. Nunca ter tentado. Nunca ter falhado. Não importa. Tente de novo. Falhe de novo. Falhe melhor.

Nunca o menos pior, o erro é melhor

[1]O digníssimo diz que é só uma gripezinha e repete, diz que acabou porra e diz novamente.

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