Por TKP (Bureau de Rel. Internacionais), traduzido por Otávio Losada
“A verdadeira ameaça para a segurança da nossa região é a OTAN, os EUA, as forças imperialistas e aqueles que insistem em colaborar com eles. A paz na Síria pode ser estabelecida apenas quando todas as forças imperialistas e ocupantes se retirarem da região, com todas as suas tropas e paramilitares sendo deportadas. Todas as bases estrangeiras de países imperialistas na região, devem ser fechadas. Os acordos imperialistas, abertos ou secretos, devem ser revogados. Um sistema igualitário, baseado na nacionalização de ativos e no planejamento central deve ser implementado.”
A Primavera Árabe
No final de 2010, um jovem trabalhador ateou fogo a si mesmo na Tunísia para protestar contra a corrupção e os maus tratos. De sua autoimolação surgiu uma onda de protestos no país. Essa onda logo se espalhou para a Argélia, Jordânia, Egito e Iêmen; e após isso atingiu outros países no Oriente Médio e Norte da África. A crise de 2008 teve graves consequências nesses países, onde a pobreza se aprofundou e a exploração das classes trabalhadoras atingiu níveis intoleráveis. Assim, a raiva tomou as massas e o caminho foi pavimentado para a agitação. Manifestações de massa foram realizadas em muitos países.
Entretanto, as forças progressistas foram pegas desprevenidas. Forças reacionárias e pró-imperialistas intervieram e os acontecimentos levaram a pontos que não eram a favor das classes trabalhadoras. Houve mudanças de regime em vários países. As forças políticas islâmicas ganharam força e, em alguns casos, chegaram ao poder. A Irmandade Muçulmana (IM) foi uma das forças proeminentes. Na Tunísia e no Egito, as filiais da IM desses países formaram os respectivos governos. No entanto, esses governos não duraram muito.
No pior dos cenários, a Líbia foi despedaçada. Depois que Kadafi foi destituído do poder, um governo reacionário foi formado. Mas a turbulência não terminou e continua até hoje. Uma guerra civil continua entre dois “governos líbios” diferentes.
As ondas também atingiram a Síria. Em muito pouco tempo, o povo sírio começou a enfrentar uma agressão pró-imperialista reacionária.
No devido tempo, a chamada Primavera Árabe acabou se tornando um instrumento do imperialismo e causou grandes danos aos povos do Oriente Médio e do Norte da África.
A Irmandade Muçulmana e a Turquia
A Irmandade Muçulmana, como uma força islâmica sunita reacionária, foi fundada no Egito em 1928. Durante a última parte do século 20, tornou-se uma organização transnacional, com membros em muitos países.
O primeiro partido político islamista na Turquia foi fundado em 1970. A partir de então, um movimento islamista gradualmente se desenvolveu e evoluiu para o AKP, que é o partido governante na Turquia desde 2002.
Desde a sua fundação, a Irmandade Muçulmana (IM) sempre teve laços estreitos com o movimento islamista na Turquia. Sua cooperação começou na década de 1970. O atual presidente da Turquia, Erdoğan, também estabeleceu laços com a IM no mesmo período, por meio da Assembleia Mundial da Juventude Muçulmana. Esses laços continuaram ininterruptos ao longo dos anos, especialmente com nomes proeminentes do movimento. Entre eles estão Anwar Ibrahim, ex-primeiro-ministro da Malásia e Yassin Kadi, um empresário saudita, que consta da lista da ONU de “financiadores do terrorismo”. Mais recentemente, ele tem defendido o ex-presidente do Egito, Mohamed Morsi, especialmente após o golpe que o removeu do poder em 2013. Além do próprio Erdoğan, outras pessoas proeminentes do AKP também têm laços muito próximos com a IM e atuaram como patrocinadores das ONGs legais desta organização.
As relações entre a IM e o governo turco melhoraram no momento em que o AKP começou a implementar suas políticas chamadas neo-otomanistas. O braço da IM na Síria tem estado muito ativa na turbulência neste país, desde o seu início em 2011. E especialmente durante os primeiros anos, o governo turco acolheu muitas personalidades, reuniões e a organização chamada Conselho Nacional da Síria, que agia como um governo alternativo ao governo legítimo da Síria e no qual a IM estava na linha de frente. Desnecessário dizer que essa alternativa foi fortemente apoiada pelo imperialismo estadunidense.
O estabelecimento da agressão imperialista
Depois que as pessoas na Síria tomaram as ruas na primavera de 2011, não demorou muito para que a oposição jihadista, apoiada pelo imperialismo, pegasse em suas armas e lançasse seus ataques sangrentos. No entanto, sempre que tratam da questão síria, os órgãos da mídia imperialista prestam atenção ainda hoje para cobrir apenas as primeiras semanas das manifestações, um primeiro momento em que a agitação social pacífica ainda não havia se submetido a uma agenda política pró-imperialista e se tornado civil guerra. Uma campanha de mídia bem organizada foi lançada contra a Síria, condenando o líder do país, Bashar Al-Assad, em nome das forças reacionárias e, portanto, justificando a intervenção imperialista contra a Síria. A campanha da imprensa rapidamente conquistou o apoio dos liberais e até mesmo de uma parte dos círculos de esquerda, negligenciando a intenção imperialista subjacente.
Os atores que lutaram em nome dos interesses imperialistas dentro da Síria eram grupos islamistas. Apesar dos esforços ocidentais para retratá-los como lutadores pela liberdade (freedom fighters), a essência fundamentalista dos jihadistas não podia ser mantida sob controle, resultando em dezenas de massacres contra minorias não-muçulmanas e heterodoxas nos territórios que ocuparam e ataques terroristas desumanos em todo o mundo. Diferentes grupos jihadistas, que tinham demarcações teóricas, políticas e organizacionais muito flexíveis, estavam fortemente inter-relacionados. O que era comum a todos eles era que faziam uma oposição armada ao legítimo governo sírio e eram generosamente patrocinados pelo imperialismo. O ISIS foi apenas um deles que conseguiu formar um chamado “Estado” em maio de 2014, que cobria uma parte notável do solo sírio e iraquiano.
Desde o início, o governo do AKP na Turquia participou ativamente dos planos de guerra em relação à Síria. A Turquia serviu não apenas como rota de trânsito para a passagem de armas e jihadistas da Europa, mas também como um centro onde grupos fundamentalistas eram recrutados, treinados e equipados. O patrocínio da administração turca foi tão vergonhoso, resultando em vários ataques mesmo dentro da Turquia, que as autoridades da época deveriam ter sido julgadas mais cedo ou mais tarde pelos crimes de guerra que cometeram. Esses crimes – documentados um a um pelos advogados do TKP há alguns anos, mas muito ampliados desde então – incluem o envolvimento ativo no tráfico ilegal de produtos agrícolas, petróleo, artefatos históricos e até mesmo humanos, e também a transferência ilegal de infraestrutura (fábricas, por exemplo) do país vizinho.
O governo do AKP encorajou abertamente a guerra civil na Síria e deu seu apoio explícito aos projetos imperialistas de formação de oposição. Sem o apoio ativo de Ancara, os grupos reacionários não se equipariam nem se organizariam com tanta facilidade, não seriam capazes de lançar provocações sobre o uso de armas químicas ou massacres brutais que realizaram para justificar uma intervenção imperialista. Os crimes de guerra declarados que foram cometidos sob a responsabilidade de Ancara – como o tráfico ilegal, o desmantelamento de fábricas sírias, a hospedagem de figuras jihadistas por ministérios turcos – agora tornam impossível para o governo do AKP dar um passo atrás em sua política sobre Síria.
‘Grande Turquia’ e a burguesia turca
Inserida no sistema imperialista-capitalista, a Turquia sempre ocupou um papel especial devido à sua geografia e potencial. Não só serviu como uma simples ponte entre a Europa e a Ásia, mas também seguiu certos objetivos políticos traçados nos centros imperialistas. O Projeto Grande Oriente Médio deve ser o melhor exemplo para descrever o aprimorado papel da Turquia dentro do sistema mundial atual. Hoje o imperialismo é incapaz de impor um projeto tão abrangente para o Oriente Médio e, consequentemente, esse projeto está completamente esquecido. No entanto, deu fortes pistas sobre o incentivo imperialista por trás dos desejos da Turquia de expandir sua esfera de influência econômica e política.
Os discursos do governo do AKP para a criação de uma “Nova Turquia” – uma “maior e mais forte” – é uma tradução dos desejos expansionistas da burguesia turca. O AKP transformou a Turquia em um paraíso para os capitalistas e um inferno para a classe trabalhadora por meio de políticas antipopulares que se baseiam na religião e em discursos baseados no nacionalismo. Enquanto isso, as atividades capitalistas turcas se espalharam em números sem precedentes para os Bálcãs, África, Cáucaso e Oriente Médio. Esse interesse crescente foi reforçado por instituições governamentais, acordos diplomáticos e até mesmo missões de inteligência para facilitar os crescentes investimentos capitalistas turcos e iniciativas políticas para essas regiões. A Turquia tornou-se um país onde trabalhadores de países vizinhos e até de longe – como as repúblicas turcas na Ásia Central – vinham encontrar trabalho. O setor de construção da Turquia floresceu no Iraque após a invasão dos EUA. Após as operações militares na Síria, não demorou muito para o estabelecimento de faculdades e fábricas turcas.
Contudo, existem fortes razões para a burguesia turca seguir as políticas agressivas do AKP na região. Todos os capitalistas podem não abraçar sinceramente a ideologia fundamentalista do AKP, mas todos eles sabem exatamente que seus interesses são muito bem acompanhados e ainda mais fortalecidos pelas políticas deste governo.
Neo-otomanismo e Política Externa do AKP
O conceito de neo-otomanismo tem sido essencial como instrumento na política externa do AKP, bem como para suas manobras políticas e econômicas na arena doméstica.
É uma ideologia reacionária com várias contrapartes. Por um lado, ajudou o AKP a minar as conquistas da revolução burguesa turca, principalmente o republicanismo, o secularismo e a implementação de uma lei civil moderna e também ajudou o AKP a desvalorizá-las aos olhos da sociedade. Enquanto a liderança monárquica, autoritária e de “um só homem” da era otomana era elogiada, a sociedade era referida como servos obedientes sem vontade própria, em vez de cidadãos livres e iguais de uma república. Isso ajudou a burguesia a desfrutar de um maior grau de exploração sem mera resistência das camadas populares, enquanto as privatizações de bens públicos enfraqueciam o estado. Por outro lado, o neo-otomanismo pavimentou o caminho para o pan-islamismo sunita, a eliminação das fronteiras nacionais para os interesses da classe capitalista, uma expansão da zona de influência da burguesia turca, militarismo, o emprego de paramilitares jihadistas e mercenários. O aumento da diplomacia e da reaproximação com os Estados do Golfo, Qatar e a ditadura no Sudão eram partes desta ampla aliança islâmica da qual Erdoğan se autodenominava o líder. O ministro das Relações Exteriores e depois o primeiro-ministro daquele período, agora oponente de Erdoğan, Ahmet Davutoğlu, foi um dos arquitetos dessa retórica do “mecenato”.
O neo-otomanismo também significou a reescrita da história. O governo negou a separação sócio-política da República Turca em 1923 do Império Otomano, minando seu caráter revolucionário e secular. A retórica neo-otomanista, na verdade, era uma alegada reivindicação da herança de um forte império e valores otomanos, que não correspondiam de forma alguma aos fatos. Mudar os nomes de alguns pontos de referência, ruas, transformar símbolos culturais, estabelecer meios de comunicação, transmitir e exportar séries de TV que elogiam o palácio e harém otomano e assim por diante, tudo foi usado para apoiar essa história “inventada”. Nacionalismo, xenofobia e conservadorismo foram os blocos de construção domésticos dessa política.
Durante a ascensão do governo do AKP após 2008, cunhada como “ressurreição” pelos líderes do AKP, o neo-otomanismo serviu ao AKP para garantir seu poder como representante da classe dominante. A atitude “predatória” do AKP também era compatível com os planos do imperialismo, especialmente na região do Oriente Médio por alguns anos. No entanto, tinha muitos elementos polêmicos dentro, por exemplo, um discurso antiocidental fazia parte do neo-otomanismo, especialmente nos assuntos domésticos, mas no exterior, Erdoğan estava se reivindicando como o “parceiro estratégico” dos EUA na região, enquanto aquecia as relações econômicas e diplomáticas com a Rússia. O neo-otomanismo era uma política externa inescrupulosa muito pragmática.
A decadência do neo-otomanismo começou por volta de 2012-13, e foi facilitada pelos conflitos que eclodiram entre Erdoğan como um líder ambicioso que jogava por altos interesses no sistema imperialista e as potências dominantes dentro da hierarquia imperialista, principalmente com os EUA e a União Europeia. O fracasso das potências ocidentais e de seu aliado Erdoğan na Síria colocou sua aliança em apuros. Este período de decadência, que decorre com um curso ondulado das relações com os diversos países, coincidiu também com a estagnação econômica, a perda de valor da moeda turca e as rupturas internas do partido no poder.
O movimento curdo e a guerra na Síria
Durante o período de fundação da República, o movimento burguês kemalista fez aliados com a maioria dos poderosos proprietários de terras curdos, que empregavam muitos camponeses em grandes áreas rurais. Ao longo da história da República, o nacionalismo turco foi uma das ferramentas ideológicas dominantes para a burguesia turca e reprimiu o povo curdo, que já estava migrando do sudeste e leste da Turquia para todo o país, especialmente para o urbano centros. Nos anos 60-70, a questão curda foi discutida abertamente pelos marxistas da época, que denunciavam a desigualdade em termos de direitos e o uso dos curdos como mão de obra barata.
No final dos anos 70, a esquerda curda começou a estabelecer suas próprias organizações, agindo de forma autônoma ou semiautônoma dentro do movimento socialista mais amplo na Turquia. O Partido dos Trabalhadores do Curdistão, PKK, foi fundado em uma época em que a influência do socialismo soviético ainda era forte na esquerda. Era composto por sucursais em países onde a maioria dos curdos está sedeada, nomeadamente na Turquia, Iraque, Irã e Síria. Na Turquia, o PKK iniciou uma luta armada contra o Estado na década de 1980, mas infelizmente as organizações socialistas também foram alvo da mesma luta, que era para alcançar a hegemonia política na região. Embora algumas tentativas de formar alianças com base nos princípios da luta da classe trabalhadora tenham sido feitas pelos socialistas durante os anos 1990, elas duraram pouco, pois o discurso e as demandas do movimento curdo assumiram uma forma nacionalista, conciliadora de classe, com tendências liberal-democráticas.
A implementação do nacionalismo curdo fortaleceu o nacionalismo turco como um instrumento ideológico da burguesia turca, que no final trabalhou contra os interesses da classe trabalhadora.
Quando foi lançada a intervenção imperialista na Síria, como continuação da Primavera Árabe, com o objetivo de criar um “governo títere” em linha com o imperialismo ocidental, a Turquia não hesitou em aderir a ele e entrar em confronto com um país vizinho, com o qual partilha uma fronteira de mil quilômetros. A fronteira foi violada várias vezes, enquanto o governo turco treinava, liderava e armava os grupos reacionários, “os adversários” do regime de Assad, junto com os EUA. O PYD/YPG foi fundado pelo PKK, inicialmente com o objetivo de proteger os curdos na região norte da Síria e cooperar com o governo sírio. É importante destacar que esta região possui uma importância estratégica, pois é rica em petróleo, gás e recursos agrícolas. Em 2013, quando o curso da guerra começou a correr contra o governo sírio, o PYD mudou de lado e começou a negociar com os governos dos EUA e da Turquia. Esta também foi uma época em que internamente o representante legal do movimento curdo – BDP – estava negociando com o governo do AKP sob o chamado “processo de paz”. Do ponto de vista do AKP, tal cooperação dentro e fora da Turquia estava totalmente alinhada com os objetivos expansionistas do neo-otomanismo. Além disso, a partir de 2014, o discurso do “Grande Oriente Médio” também foi substituído pela luta do “Anti-ISIS”, um monstro que foi originalmente criado pelos EUA, onde os EUA cooperaram com o PYD.
Em 2015, quando a resistência interminável do povo sírio, bem como o envolvimento da Rússia estavam mudando o equilíbrio de forças na guerra, esta tripla aliança entre o governo turco, os EUA e o movimento curdo também estava crepitando. Os EUA continuaram a treinar e armar as forças do PYD enquanto o governo turco e as forças armadas consideravam esta parceria ameaçadora para os seus próprios interesses. Desde então, a “segurança” em torno da região da fronteira é usada como pretexto para lançar operações militares, para se manter como ator relevante neste lucrativo jogo dentro das fronteiras de um país soberano onde na verdade a Turquia não tem direito algum.
Há ainda mais: o pragmatismo das forças políticas burguesas turcas e curdas e seu caráter galanteador em termos de relação com o imperialismo, juntamente com os ricos recursos de um norte da Síria “sem Estado”, não excluem o potencial de renegociação!
Isso é um pouco semelhante ao que aconteceu no Iraque, quando a burguesia turca se beneficiou da lacuna de autoridade na região, aliada tanto ao Iraque quanto ao governo Barzani regional do norte. A Turquia exportou grandes quantidades de commodities e capital para o Iraque, quase dobrando sua exportação de 5 bilhões de dólares por ano em 2009 para uma média de 9-10 bilhões de dólares por ano nos últimos anos. Somente em 2019, 5 bilhões de dólares de empréstimos foram concedidos ao Iraque para serem usados pelas empresas turcas para fins de reconstrução. É digno de nota que as autoridades curdas iraquianas se abstiveram de negar a operação armada dos governos turcos contra o norte da Síria.
As operações militares do governo do AKP na Síria “Escudo de Eufrates, Ramo de Oliveira, Primavera da Paz”
Desde a Operação, intitulada “Escudo de Eufrates”, o AKP vem tentando difundir a ideia de que o partido não tem alternativas na política externa. A subsequente Operação “Ramo de Oliveira” iniciada em janeiro de 2018 e a Operação “Primavera da Paz” lançada em outubro de 2019 levaram o governo do AKP a um círculo vicioso: quando contradiz uma superpotência em termos de sua política externa, tenta se aproximar de outra superpotência para sair da crise política. Dessa forma, visa sustentar seu poder. Os partidos da oposição, que não conseguem imaginar outro sistema que não o capitalista, apoiam o poder político.
A Operação “Escudo de Eufrates” foi uma operação militar transfronteiriça conduzida pelas Forças Armadas Turcas e pelos grupos de oposição sírios alinhados com a Turquia na Guerra Civil Síria que levou à ocupação turca do norte da Síria. Tudo começou em 24 de agosto de 2016 e terminou em 29 de março de 2017 com o anúncio dos militares turcos de que a operação foi “concluída com sucesso”. As Forças Armadas turcas anunciaram seus objetivos principais como “limpar a fronteira de organizações terroristas e contribuir para o processo de reforço da segurança da fronteira, bem como priorizar e apoiar a integridade territorial da Síria”. Embora os objetivos divulgados da operação fossem lutar contra o ISIS, limpar a fronteira dos terroristas e fazer os sírios voltarem para casa, um dos objetivos não anunciados, mas explícitos, era impedir a união de Afrin e Kobani. Antes do início da operação Jarabulus na Turquia, as FDS, que capturaram Menbij do ISIS, esclareceram que seus novos alvos eram Jarabulus e Al-Bab. O que as FDS (e a YPG) queriam era “unir os cantões” fazendo movimentos tanto da linha Afrin quanto da Menbij-Kobani.
Com a operação, o partido no poder estabeleceu um relacionamento mútuo com a Rússia, onde ficou claro que seu relacionamento com os EUA ficou mais tenso. Além disso, era evidente que havia uma negociação trilateral Rússia-Turquia-EUA. Em troca da entrada da Turquia em Jarabulus, os EUA garantiram o reconhecimento do YPG no leste do Eufrates. Além disso, a Rússia impediu a passagem para o Cáucaso pelo ISIS e também adiou a conclusão do corredor curdo apoiado pelos EUA.
Em 18 de março de 2018, o Exército Livre Sírio, apoiado pela Turquia, entrou na cidade de Afrin. O oficialmente anunciou que a Operação “Ramo de Oliveira” foi uma operação militar transfronteiriça no distrito de Afrin, predominantemente curdo, no noroeste da Síria, que foi outra intervenção militar nas fronteiras da Síria como um país soberano. Por último, as Forças Armadas turcas e o Exército Sírio Livre iniciaram a Operação “Primavera da Paz” no nordeste da Síria, que visava derrotar as FDS e as Forças Armadas sírias. Semelhante à Operação “Escudo de Eufrates”, os EUA e a Rússia deram luz verde à operação transfronteiriça das Forças Armadas Turcas e do Exército Livre Sírio. Pode-se inferir que houve pelo menos um acordo trilateral incluindo a Turquia: a União Europeia, que se tornou sem importância dentro da equação, e o Irã, que sempre foi importante em algum grau, ficaram para trás no processo. Além disso, os eixos curdo-americano e russo-sírio foram abalados e a estratégia do AKP em relação aos EUA e à Rússia foi definida com o termo de “subserviência”. Mais uma vez, a Turquia estava tentando persuadir os imperialistas de que a Turquia é um aliado melhor do que os curdos e Assad.
A Turquia está passando por um período em que as contradições internas a nível internacional e também entre a classe capitalista turca se intensificaram. Essas contradições não implicam de forma alguma que a classe dominante não tenha interesses comuns. O AKP não apenas naufragou na Síria, mas também causou uma situação que os EUA nunca desejariam; ou seja, a Rússia ganhando mais importância na região. Após o anúncio da política neo-otomana, o movimento nacional curdo tentou abrir espaço para si mesmo. No entanto, de acordo com o AKP, o “processo de resolução” só poderia prosseguir de forma eficiente se e somente se um acordo regional islâmico pudesse ser feito. Até o fracasso do AKP na Síria, havia uma luta mútua pela política curda para intervir nos interesses dos imperialistas na Síria. O movimento curdo, especificamente o PKK, não é mais um “parceiro de resolução”, mas uma “organização terrorista” que ajuda a fortalecer o discurso nacionalista do AKP. A Turquia, como país capitalista, justifica injustiças e desigualdades no plano internacional, uma vez que foi criada com base nisso. No entanto, como mencionado acima, há sempre um potencial para uma mudança na relação entre o governo e o movimento nacional curdo.
O Envolvimento da Rússia e o Processo de Redação da Constituição na Síria
No momento em que a Rússia interveio na guerra síria, as relações da Rússia com os imperialistas ocidentais já estavam em seu pior momento desde o fim da Guerra Fria. A expectativa de que Hillary Clinton seria a próxima presidente deixou a maioria dos diplomatas da região presumindo que haveria uma limitada cooperação entre a Rússia e os EUA na Síria em um futuro previsível. Assim, a Rússia se tornou um país-chave para o futuro da Síria. Isso tornou o estado sírio dependente da Rússia. Por exemplo, o governo sírio não é o único ator político a determinar a extensão e a duração da estadia do Irã na Síria. Além disso, o Irã está se tornando política e economicamente mais dependente da Rússia e da China, à medida que perde suas chances de reconciliação com o regime dos EUA.
Em 2015, enquanto as investidas militares prosseguiam no norte da Síria, a Rússia tomou medidas para preparar uma nova constituição na Síria. Em 18 de dezembro, o Conselho de Segurança da ONU pediu um cessar-fogo urgente, que foi seguido por um processo de negociação política. Dessa forma, a Rússia silenciosamente realizou um processo de redação da Constituição que garante sua “presença” no país. Pode-se afirmar que a Rússia continua a apoiar o regime sírio para proteger seus próprios interesses estratégicos e, em particular, para combater o terrorismo, ao mesmo tempo que se torna um importante mediador de poder no Oriente Médio. As intervenções ocidentais na Líbia e no Iraque, que acabaram destruindo o aparato de Estado nesses países, levaram muitos atores políticos russos a acreditar que qualquer tipo de mudança de regime liderada pelo Ocidente levaria à destruição do Estado da Síria.
Em janeiro de 2017, nas negociações de paz na Síria em Astana, o governo russo divulgou um projeto de Constituição para a Síria. Há muito se fala sobre esse projeto de constituição, desde que Vladimir Putin afirmou que uma nova constituição seria fundamental para encontrar uma solução política para a crise na Síria. Quase todos os grupos de oposição expressaram aversão definitiva à sugestão da Rússia. Em resposta, a Rússia argumentou que o esboço pretendia apenas servir como “guia” para o processo de paz. O projeto sugeria que o apego da Rússia ao regime sírio era mais do que apenas estratégico, que também tinha um componente ideológico. Consequentemente, a Rússia provavelmente continuaria a bloquear qualquer plano ocidental para remover Assad do poder pela força. Uma das consequências mais importantes foi que a oposição apoiada pela Turquia e Arábia Saudita foi diretamente afetada pelo projeto. Por outro lado, havia também a preocupação de como a constituição iria lidar com a “questão nacional” para os curdos e as tendências descentralizadoras de outras minorias.
Em março de 2019, o regime sírio anunciou que a constituição deveria enfatizar a soberania do país. No geral, pode-se reconhecer que, como “solução política”, uma nova constituição é uma das principais preocupações da Síria, bem como dos imperialistas e seus agentes no Oriente Médio.
Há alguma esperança de paz na Síria?
Como comunistas da Turquia, um país cujo papel do governo colaboracionista na tragédia na Síria foi elaborado acima, enfatizamos vários pontos cruciais para uma paz duradoura na Síria e em toda a região.
A verdadeira ameaça para a segurança da nossa região é a OTAN, os EUA, as forças imperialistas e aqueles que insistem em colaborar com eles. A paz na Síria pode ser estabelecida apenas quando todas as forças imperialistas e ocupantes se retirarem da região, com todas as suas tropas e paramilitares sendo deportadas. Todas as bases estrangeiras de países imperialistas na região, devem ser fechadas. Os acordos imperialistas, abertos ou secretos, devem ser revogados. Um sistema igualitário, baseado na nacionalização de ativos e no planejamento central deve ser implementado.
Igualmente importante é que a paz na Síria deve ser baseada em bases seculares, sem qualquer superioridade de qualquer grupo étnico ou religioso entre si.
É o povo sírio que pode determinar o futuro da Síria, é apenas seu direito fazê-lo.
* Texto publicado em dezembro de 2019