Por Raju Das, via brill.com traduzido por Otávio Losada
“Escrevi Reflexões críticas sobre economia e política na Índia: uma perspectiva da teoria de classes (publicado pela Brill em 2020) como uma tentativa de “aplicar” ao contexto indiano algumas das ideias gerais sobre classe apresentadas em minha Teoria marxista de classe para um mundo cético (publicado em 2017). Muitos estudiosos argumentam que a análise de classe não é relevante para a Índia porque a Índia é uma sociedade de castas ou que a análise de classe marxista não pode capturar adequadamente as condições pós-coloniais únicas da Índia. Em vez disso, afirmo que, ao examinar a economia e a política da Índia, deve-se começar com os interesses mutuamente antagônicos das classes.
A perspectiva da classe requer pesquisas teoricamente rigorosas e empiricamente corroboradas em uma ampla variedade de tópicos. Apenas alguns deles são abordados nos 12 principais capítulos do livro. Alguns dos temas principais são brevemente discutidos a seguir.“
A natureza da relação de classe capitalista
Se a relação de classe capitalista revoluciona o desenvolvimento das forças produtivas como Marx pensava, e ainda se o nível de desenvolvimento permanece tão baixo quanto na Índia, então será que a Índia não é (predominantemente) um país capitalista? Por outro lado, se a Índia é um país capitalista, por que tem um nível de desenvolvimento econômico tão baixo? Há, portanto, uma necessidade de conceituar o capitalismo como uma relação de classe no contexto específico da Índia.
A relação de classe capitalista na Índia existe em diferentes formas do que Marx chama de “subsunção do trabalho”. A estrutura de classes da Índia é caracterizada pelo domínio do capitalismo na forma de subsunção formal (um regime de longas horas e baixos salários), que é um obstáculo potencial à mudança técnica e ao desenvolvimento econômico. Esta forma de capitalismo coexiste com o capitalismo na forma de subsunção real (associada ao uso sistêmico de tecnologia para aumentar a produtividade do trabalho por hora) e com relações de produção não-capitalistas localizadas. Essa situação, incluindo a transição geograficamente desigual da subsunção formal para a real, mediada pelo equilíbrio de poder entre capital e trabalho, produz um desenvolvimento desigual e combinado.
Caráter de classe das mudanças técnicas
Apesar dos obstáculos estruturais à mudança técnica impostos pela subsunção formal do trabalho, a mudança técnica acontece, mesmo que de forma não sistêmica. Usando a tecnologia da revolução verde como exemplo, e na contramão de muitas visões existentes (incluindo o neo-malthusianismo), eu argumento que na medida em que o capitalismo induz mudanças técnicas que podem aumentar a produção, isso não beneficia necessariamente as pessoas comuns devido ao caráter de classe dos a mudança técnica.
Forma neoliberal de capitalismo
Embora de um ponto de vista (ou seja, relações de classe), o capitalismo da Índia pode ser visto em termos de subsunção do trabalho, de outro ângulo (ou seja, a forma como o capitalismo é regulado pelas instituições capitalistas), ele existe na forma de capitalismo neoliberal. O capitalismo indiano assumiu uma forma neoliberal pelo menos desde o início dos anos 1990, com suas peculiaridades e efeitos específicos: aumento do alinhamento entre o circuito capitalista (M-C-MΔ) e políticas públicas, aumento da desigualdade econômica e geográfica, neoliberalismo agrário e expansão da influência imperialista.
Produção capitalista para o mercado mundial
Uma forma específica de capitalismo neoliberal é o neoliberalismo agrário. E uma de suas formas mais concretas se manifesta na chamada nova agricultura: a produção, para o mercado mundial, de culturas não tradicionais de alto valor (por exemplo, flores e camarões), em comparação com as culturas tradicionais produzidas no colonialismo e durante o período pós-colonial imediato. Esse processo levou a Índia a se tornar um dos ‘Novos Países Agrícolas’ (NPAs) (um termo cunhado pela socióloga Harriet Friedmann). Em contraposição aos Países Recentemente Industrializados (PRIs) das últimas décadas, o surgimento dos NPAs representa uma estratégia quintessencial de desenvolvimento do Terceiro Mundo sob o neoliberalismo, o que ocorreu, paradoxalmente, com forte apoio estatal.
Nova agricultura significa a produção relativamente desregulamentada de commodities para exportação, baseada em uma classe trabalhadora mal paga e politicamente desorganizada, cada vez mais privada dos benefícios sociais do governo. A aquicultura é uma forma importante de nova agricultura. Quando explorada através de uma perspectiva de classe ecologicamente sensível, a produção capitalista na cultura aquática impulsionada pelo mercado mundial revela a natureza de uma dupla “fenda metabólica”, onde o capital tira muito mais do trabalho e da natureza do que lhes dá, bem como fetichismo de mercadoria. Também é revelado como as relações de diferença específicas do lugar (opressão social, incluindo aquela baseada na idade, gênero e indigeneidade) influenciam as relações mais gerais da produção capitalista.
As relações de classe do Estado capitalista
O contexto da classe capitalista afeta não apenas questões econômicas, mas também questões políticas. Contra grande parte da discussão existente sobre o Estado – incluindo por liberais como os Rudolphs de Chicago, os pós-colonialistas ou os estudiosos marxistas, incluindo o economista, Pranab Bardhan, e o sociólogo, Vivek Chibber, defendo uma completa perspectiva classista acerca do Estado pós-colonial. A relação de classe molda e é moldada pela relação entre governantes e governados, dentro de um sistema de relações em que a relação de classe é fundamental. E a relação entre a classe e o próprio Estado é moldada por várias condições empiricamente existentes, incluindo opressão social (por exemplo, castas) e conexões externas, como a globalização econômica.
O Estado e o capital, rural e urbano, são os dois braços do que é uma estrutura abrangente de relacionamento social capitalista. As ações do capital e de seu Estado, que representam a luta de classes de cima, e que produzem influências contraditórias nas condições das classes mais baixas, são, por sua vez, influenciadas pelas lutas conduzidas por elas.
Lutas da classe de baixo
O sistema político indiano e sua economia capitalista falharam em atender às necessidades das massas. Esse fracasso gerou não apenas lutas sindicais nas cidades. Também levou à luta maoísta baseada em vilas que vem ocorrendo em um quarto do território do país desde o final dos anos 1960. É o movimento revolucionário mais antigo da história da resistência camponesa na Índia. O movimento conferiu benefícios limitados aos pobres em alguns lugares. O Estado indiano tem tentado suprimir violentamente o movimento, matando milhares e produzindo “um estado de exceção” em áreas específicas. Qualquer pessoa suspeita de ter qualquer vínculo com o movimento, e principalmente com aquele segmento criminalizado, pode ser preso ou morto.
Uma razão para a resposta coercitiva do Estado reside na ameaça à legitimidade (em oposição à ameaça militar) de uma parte do movimento maoísta: ele faz coisas pelos pobres que o Estado não conseguiu fazer e está disposto a defender seus ganhos por força sempre que necessário e possível. Claro, o próprio movimento tem vários problemas, incluindo sua própria teoria da revolução de colaboração de classes em dois estágios, onde a revolução socialista permanece um sonho distante. As mudanças de longo prazo na sociedade requerem a participação ativa de homens e mulheres politicamente conscientes em vilas e cidades, engajados na luta contra a exploração de classe e a opressão social. Enfatizar os métodos violentos como estratégia não pode construir as condições para tal luta.
Tendências fascistas como uma forma de luta de classes de cima
O fracasso da economia burguesa e do Estado burguês em atender às necessidades das massas é também o contexto em que as forças fascistas se tornaram mais fortes. Essas forças apoiam, e são apoiadas, pelo partido de direita Bharatiya Janata (BJP), que venceu as eleições gerais da Índia em 2014 fazendo falsas promessas de desenvolvimento para todos – e também alimentando o ódio contra os não hindus. (Venceu as eleições em 2019 também). No que concerne ao bem-estar das massas, pouco mudou, em parte porque o governo de direita está comprometido com intervenções pró-negócios.
O país está, de fato, passando por uma emergência não declarada. Isso se dá na forma de ataques persistentes por forças hipernacionalistas da supremacia hindu e seu governo, aos direitos democráticos básicos de cidadãos comuns, progressistas e esquerdistas. As minorias religiosas, especialmente os muçulmanos, tornaram-se o “equivalente quase exato do judeu”. As forças de direita estão empenhadas em criar um Estado hindu, onde as minorias religiosas permanecerão subservientes aos hindus e onde os dalits (ex-intocáveis) continuarão a ser oprimidos na ordem social hindu.
O desenvolvimento de tendências fascistas é um projeto da classe capitalista, mais do que qualquer outra coisa. Existem quatro processos notáveis aqui.
- Os 70% mais pobres da Índia enfrentam vários problemas urgentes: baixos salários, desemprego/subemprego, empregos inseguros, redução no bem-estar do governo, perda compulsória de acesso à terra ou outros meios de subsistência, crise de produção rural, degradação ecológica, falta de qualidade saúde, educação e abrigo, etc. Esses problemas são causados fundamentalmente pela natureza da relação de classe capitalista e exacerbados por sua forma neoliberal. Embora as massas não estejam indo bem, o 1-10% do topo da classe proprietária de riqueza começou a se sair extremamente bem, especialmente desde o final dos anos 1980.
- Frequentemente organizado por partidos de esquerda, as pessoas comuns estão envolvidas em protestos e lutas recorrentes contra a exploração, opressão, expropriação e miséria/desigualdade. A intensidade das greves (por exemplo, pessoa-dias perdidos por greve) está aumentando. A greve é o principal fator de risco para associações empresariais indianas. Portanto, há uma pressão sobre os proprietários das empresas para reduzirem não só os custos salariais dos trabalhadores, mas também a possibilidade de greves que acarretam um custo econômico. Para reduzir esses custos, eles precisam da ajuda de partidos políticos. Isso ajuda vem na forma de repressão e engano/consentimento. A necessidade de repressão é frequentemente expressa como admiração pelo autoritarismo e por um homem forte que poderia resolver problemas. O engano funciona em parte através da criação de ‘um inimigo interno’ com base em diferenças religiosas (e outras relacionadas) (por exemplo, ‘antinacionais’, incluindo muçulmanos e, de fato, qualquer pessoa que critique o BJP) ou de ‘um inimigo externo’ (vizinhos não hindus).
- O capitalismo não cria apenas a condição estrutural para tendências fascistas ao criar problemas econômicos para as massas, que então atribuem a culpa de suas condições a um inimigo (por exemplo, minoria religiosa). Também cria os agentes através dos quais o projeto fascista como um movimento de massa é realizado: os elementos economicamente frustrados pequeno-burgueses e do lumpemproletariado.
- Uma compreensão mais completa das tendências fascistas deve nos levar além da esfera econômica. Devemos prestar atenção à esfera da política em uma sociedade burguesa. O Partido do Congresso e os partidos Comunistas (que são social-democratas na prática) constituem as forças combinadas do ‘Centro’ e da Esquerda, e podem ser chamados de ‘democracia reformista’. Este último falhou em atender às necessidades econômicas das massas e em proteger a democracia, incluindo os direitos democráticos das minorias. Esta situação permitiu que as forças de direita se tornassem mais fortes, eleitoralmente e de outras formas. Quando todos os partidos em todo o sistema político cedem ao capitalismo neoliberal, a política de identidade é jogada para ganhar votos. O partido das forças hindu-fascistas tem jogado este jogo com mais sucesso, com o apoio das grandes empresas.
O surgimento de tendências fascistas aponta para um curioso caso de inversão ideológica e política. Este é aquele em que a relação de antagonismo de classe entre as pessoas comuns (trabalhadores e camponeses) e seu verdadeiro inimigo, o capital, é transformada em uma relação antagônica entre eles e seus inimigos fabricados (por exemplo, minorias, democratas e comunistas).
O que deve ser feito pela esquerda?
As forças fascistas constituem um obstáculo muito poderoso e refletem a relativa fraqueza do movimento progressista e de esquerda. Em várias partes da Índia, comunistas e seus escritórios estão sendo fisicamente atacados, e comunistas estão sendo mortos ou feridos pelas forças fascistas. Então, essas forças devem ser alvo de uma luta total, uma luta na frente econômica (luta econômica) e nas frentes políticas e ideológicas.
A esquerda marxista deve mobilizar suas classes básicas (trabalhadores qualificados e não qualificados, pequenos produtores autônomos e desempregados, de todas as castas e religiões) com a ajuda de intelectuais politicamente progressistas (“desclassificados”), contra a brigada fascista, como parte da luta para transcender as relações de classe capitalistas que estão na origem das tendências fascistas.
Com base em seu grande número, bem como comícios e greves gerais e comitês populares de nível local, as forças marxistas devem assumir a liderança, sempre que possível, no combate ao movimento fascista e impedi-lo de intimidar fisicamente as pessoas. Esta deve ser a abordagem dominante na luta contra o movimento fascista, para o qual a abordagem eleitoral só pode ser um complemento. Tal abordagem requer o surgimento de uma esquerda marxista revolucionária.
Raju Das é professor de geografia na York University em Toronto
Esse artigo é baseado em Raju Das, “Critical Reflections on Economy and Politics in India: A Class Theory Perspective” (Leiden: Brill), 2020.