Por Felipe Taufer e Moisés João Rech
“Para que nossa forma de consciência social contemporânea atravesse a barreira do cinismo, sugere Žižek, somos impelidos a recuperar uma das lições fundamentais de Hegel: temos de levar a realidade mais a sério do que ela própria se leva. Só que a realidade é irônica. Pois se há uma “ironia universal do mundo” no modo antagônico de autoapresentação da realidade, por que nossa forma de consciência social teria de desdenhar dessa realidade e buscar resolver de fora suas contradições e seus antagonismos? Somente se levarmos a realidade mais a sério do que ela mesma, poderemos nos colocar na posição de enfrentar internamente seus antagonismos e contradições.”
Publicado no final de 2018 e ainda sem edição em português, Like a thief in a broad daylight: a power in a post-capitalism (Como um ladrão em plena luz do dia: poder na era do pós-capitalismo) realiza um esforço para pensar problemas da esquerda atual, da geopolítica internacional e do – possível – fim do capitalismo. O livro é dividido em quatro capítulos, com o característico estilo zizekiano, que articula na mesma sentença cultura popular, Marie Le Pen, Mao Tse Tung e Hegel. Sob certo aspecto, os textos que compõe a obra apresentam um Žižek muito mais ácido diante da esquerda institucional, que atualmente se mostrou incapaz de compreender o tempo presente e, por consequência, de propor alternativas realmente revolucionárias.
Já na introdução – algumas de suas mais combativas páginas – é possível identificar a miríade de temas e impasses que Žižek busca abordar: a ideologia hegemônica democrático-liberal, a biogenética, a geopolítica mundial, a subjetividade contemporânea, o colapso ecológico, a sociedade pós-capitalista, multiculturalismo e conjuntamente a emancipação humana. Todas as temáticas articuladas com alta filosofia e psicanálise lacaniana. O próprio título do livro remete ao espírito pós-capitalista cuja inspiração está na primeira epístola de Paulo aos Tessalonicenses (5: 2–3), o qual remeter o leitor ao que Žižek indica como a: “aberta desintegração do capitalismo” (p. 8), a ocorrer sob nossos olhos: “como um ladrão em plena luz do dia” (p. 8). O porquê de não enxergamos: “estamos profundamente imersos na ideologia” (p. 8). A hipótese fundamental de Žižek é de que estamos presos a uma questão: como construir uma sociedade pós-capitalista sem incorrer nos erros passados? Dessa forma, a premissa é de que “devemos nos ater à visão marxista básica: o comunismo não é um ideal, uma ordem normativa, uma espécie de axioma ético-político, mas algo que surge como uma reação ao progresso em curso, processo histórico e seus impasses” (p. 11).
Para pensar a questão da revolução, do novo indivíduo e da ideia de comunismo, Žižek inicia o primeiro capítulo intitulado “O estado das coisas” indicando os sintomas da “progressiva desintegração do capitalismo” (p. 14), mas ao contrário do que seria esperado da esquerda – “não apenas propor uma nova ordem, mas também mudar a perspectiva do que parece possível” (p. 14) – o que se observa é o contrário, uma tentativa desesperada de tentar proteger os direitos dos trabalhadores contra o ataque do capitalismo global. O paradoxo está em que são os próprios capitalistas progressistas (Elon Musk, Mark Zuckerberg, Bill Gates) que hoje falam em pós-capitalismo – “como se o próprio conceito de passagem do capitalismo como o conhecemos para uma nova ordem pós-capitalista está sendo apropriado pelo próprio capitalismo” (p. 14). A censura de Žižek às esquerdas leva ao próprio questionamento da possibilidade de um governo realmente popular, uma democracia direta que não se degenere e em desastre (Venezuela), capitulação (Grécia) ou retorno ao capitalismo (China, Vietnã). O que se observou com o tempo é que as esquerdas mundiais não conseguem propor algo alternativo entre a social-democracia que “não vai longe o suficiente” (p. 18) e o velho totalitarismo que “vai longe demais” (p. 18); assim, é necessário “buscar por uma terceira alternativa autêntica” (p. 17).
A busca de uma terceira alternativa está diretamente vinculada com a questão dos excluídos nas favelas, dos refugiados, dos trabalhadores: “devemos continuar a jogar o jogo humanitário e cuidar daqueles que ficaram para trás, ou deveríamos enfrentar a tarefa muita mais difícil de mudar o sistema global que os produz?” (p. 22). Sobre essa questão, a resposta atual da esquerda tem sido a de salvar o que resta do welfare state, sem, contudo, reconfigurar as coordenadas globais do capital. Para Žižek isso é um equívoco, pois as pautas socialistas já foram incorporadas pelo capital – melhores condições de saúde, salários mais altos, educação pública, aposentadoria –, e “isso coloca automaticamente dentro dos limites do sistema existente, e seu objetivo [dos partidos de esquerda] não é, portanto, uma autêntica emancipação” (p. 22). A censura de Žižek contra a esquerda institucional tem como base seu diagnóstico de desintegração do capitalismo: a menor taxa de lucro, o aumento da corrupção e da violência, a financeirização parasitária sobre a produção de valor e os atuais sintomas sócio-políticos: a revitalização da extrema-direita (p. 23). Diante desse quadro de desintegração do capitalismo a resposta da esquerda institucional tem sido o fortalecimento das próprias instituições liberais – divisão de poderes, constitucionalismo, garantia de direitos, etc. –, ou seja, ainda não compreenderam que até mesmo a própria direita está se radicalizando.
A respeito da financeirização da economia, e, por consequência, sua virtualização, Žižek identifica uma inversão das próprias relações que, antes mediadas por mercadorias, passam agora a ser relações diretas de dominação, ou seja, o processo de circulação do capital D-M-D’ é financeirizado e torna-se D-D’, cujo resultado é a ausência da mediação da mercadoria e a volta de relações diretas (sem mediação) de servidão (p. 24-5). Além disso, no campo ecológico, Žižek destaca que a alteração do ritmo das estações, a manipulação genética e a dissolução do pano de fundo da história humana são consequências de uma natureza tornada uma categoria político-econômica (p. 32).
No capítulo seguinte, “Caprichos do Poder”, Žižek inicia uma perspicaz análise da obra de Lênin Estado e a Revolução (1917), no qual identifica uma ambivalência de Lênin ao tratar das relações humanas durante o trânsito do socialismo ao comunismo. Argumenta Žižek que Lênin oscila entre uma visão revolucionária baseada em um fundo habermasiano de “regras elementares do intercurso social” (p. 57) que sob o comunismo governarão de uma forma não distorcida, e uma visão de natureza humana que, sob o comunismo, poderá fazer aflorar um novo homem (p. 60). Essa ambivalência reverbera em seus escritos: havia um jovem Lenin “decicionista” e um Lenin maduro mais “pragmático”, em que para esse último – mais contingencial e menos determinista –, a “natureza humana” poderia mudar na fase superior do comunismo. Mas Žižek assinala que “a lacuna entre os princípios gerais (‘leis históricas’) que regulam a realidade e as decisões improvisadas e pragmáticas ainda discerníveis em Lênin são simplesmente desautorizada, e os dois extremos coincidem diretamente” (p. 66). Com isso Žižek busca extrair uma leitura contemporânea da primeira experiência bem-sucedida de uma revolução socialista, guiada por Lênin. A dualidade de decicionismo e pragmatismo resultou no predomínio do aspecto subjetivista da revolução, assim, a apropriação do leninismo por Stalin operou uma inversão: após a Revolução Russa as demais revoluções comunistas são fundamentadas em uma realidade histórica necessária, com leis e tendências internas. As revoluções posteriores, afirma Žižek, foram privadas da dimensão da “subjetividade propriamente dita […] em nítido contraste com a Revolução Francesa, cujas figuras mais radicais a perceberam como um processo aberto sem qualquer apoio em uma necessidade maior” (p. 67). Hoje estamos como Lênin, navegando em territórios desconhecidos, sem a objetividade histórica, mas essa ausência de objetividade é exatamente o que confere a esperança para evitar uma reviravolta totalitária à revolução (p. 68).
Seguindo com a temática da revolução, Žižek lança questões sobre o processo democrático, sobre o sujeito revolucionário e novas perspectivas de mudanças. As eleições europeias que se deram em 2017 trouxeram à tona velhas questões da esquerda radical: votar e participar do jogo democrático-liberal ou recusar-se a participar e deixar de votar? A eleição presidencial francesa é paradigmática: Marie Le Pen ou Emmanuel Macron? A crítica da democracia-liberal revela a enorme passividade do sufrágio universal das massas, e por essa razão as revoluções foram operadas por uma minoria de vanguarda que soube aproveitar tempos de crise social (p. 69). Essa passividade das massas foi o motivo para a incorporação das análises psicanalíticas no interior do pensamento revolucionário, para destrinchar os “mecanismos libidinais inconscientes que impedem o surgimento da consciência de classe que é intrínseca ao próprio ser, à situação social da classe trabalhadora” (p. 69). Mas aqui está a contradição entre passividade e atividade: após a revolução com o apoio das massas, como controlar sua ferocidade direcionada ao poder político? Žižek traz o exemplo da Revolução Cultural de Mao como o momento da sublevação popular descontrolada, seguida da Comuna de Xangai, o momento de intervenção e repressão (p. 71).
Nesse momento Žižek lança uma de suas proposições mais controversas: “como ir além da democracia partidária sem cair na armadilha da democracia direta? […] como inventar um modo diferente de passividade da maioria, como lidar com a inevitável alienação da vida política?” (p. 73). Žižek tem suas razões para pensar assim, pois na linha de pensamento da “invenção democrática” de Claude Lefort, o povo é uma categoria “noumenal”, um resto que impede que o Estado de governar como quiser, assim, o processo democrático de eleição é caracterizado por um “ritual vazio” (p. 74-6) em que o povo faz sua escolha mas “os especialistas sugerem o que escolher – as pessoas querem a aparência de escolha, não a escolha de escolhas reais. É assim que nossas democracias funcionam” (p. 75-6). A proposta diante desse quadro é: enquanto o sufrágio universal pelo voto secreto for o signo da democracia-parlamentar, a ditadura burguesa, então deve-se introduzir a ideia de “loteria” para a ditadura do proletariado, em que as eleições deverão ser decididas por sorteio em loteria. “Não foi também essa a ideia subjacente de Lenin quando, em seu O Estado e a Revolução, delineou sua visão, mencionada anteriormente, de um estado operário onde cada kukharka teria que aprender governar o estado? Da democracia (eleitoral) à lotocracia …” (p. 74-5, grifo no original).
Ainda dentro do debate sobre o espaço público, Žižek analisa um dos principais fenômenos políticos contemporâneos: a ascensão da extrema-direita. Para o autor, a chave para a interpretação da questão está em que o emergente sintoma da extrema-direita materializado em Le Pen é Macron, ou em Trump é Hillary. Com isso Žižek busca indicar que o próprio establishment gera candidatos antissistema, i.e., o produto obsceno do capitalismo é o fascismo. Mas, paradoxalmente, para fugir da ameaça extremista a saída apresentada é votar em candidatos do establishment, ou seja, o sintoma é curado com a causa do sintoma (p. 79). Há uma pseudo-escolha, em que a vitória de Macron não é menos preocupante que a vitória de Le Pen, pois agora que a Europa suspira aliviada, afirma ironicamente Žižek, por estar salva junto com sua democracia, então pode-se “voltar ao nosso sono liberal-capitalista novamente” (p. 81). Para esse problema Žižek afirma: “devemos reunir coragem para nos abstermos de votar. Abster e começar a pensar” (p. 81). Talvez nunca tenha sido tão urgente para a esquerda, não a tarefa de agir, mas de pensar, haja vista que as alternativas de voto à direita (conservadorismo) ou à extrema-direita (populismo) é um sintoma evidente do desaparecimento de uma esquerda radical que seja viável. Nesse sentido, a proposta de Žižek é cortar a ligação da classe trabalhadora com a extrema-direita através de uma mensagem mais radical e crítica, como fizeram Sanders e Corbyn (p. 83) – à época ainda estavam se desenvolvendo os desdobramentos das prévias no partido Democrata e as campanhas presidenciais na Inglaterra.
O terceiro capítulo, a saber, “Da identidade à universalidade” tem como tema principal a dificuldade de alçar uma luta emancipatória universal em tempos de “confusão incompreensível” da política. Para Žižek (p. 107-11), tal confusão guarda algo em comum com a narrativa da novela Passenger to Frankfurt de Agatha Christie. Nesse livro, encontra-se um relato do cenário caótico dos “anos 60, drogas, um novo super-homem ariano, etc.” (p. 107) que tem o poder de revelar o “sentimento” epocal “de estar totalmente perdido em meio ao que estava acontecendo no mundo” (p. 107). No entanto, e esse parece ser o implícito questionamento de nosso filósofo esloveno, se esse sentimento está presente em um romance policial de uma artista pop como Christie, não seria ele a expressão mais bem-acabada de um colapso do “mapeamento cognitivo elementar” de nossa época? Para resumir, Žižek (p. 109) mostra como essa dificuldade em realizar um diagnóstico cognitivo mínimo da situação e se orientar a partir dele conduz a tentativas bizarras de reorientação psíquica tais como criar “uma terrível conspiração mundial” (p. 108). Se quisermos, uma referência real desse ponto – diga-se de passagem, ilustrativa até demais – é o rótulo de “ameaça” que a extrema direita contemporânea emprega ao povo muçulmano (p. 109).
Esse é o cenário no qual a esquerda liberal aparece hegemonicamente e não é outra a realidade a qual ela tem de fornecer uma resposta. No entanto, no meio de tudo isso ocorre uma inversão na gramática própria ao diagnóstico tradicional de esquerda: ao invés de “reclamar que […] pressões […] institucionais impedem políticos de expressarem seu real ponto de vista” (por exemplo, instituições barrarem a radicalização do discurso contra a desigualdade); agora a esquerda passa a reivindicar “restrições impeçam a expressão de visões pessoais demasiadamente insanas” (p. 110). Como, por exemplo, a necessidade de restringir judicialmente alguma das “visões demasiadamente insanas” de Trump sobre culturas não-ocidentais ou qualquer outro discurso preconceituoso contra as parcelas mais vulneráveis de da sociedade. O ponto de Žižek aqui é que tudo passa como se diante de toda essa “confusão incompreensível”, a esquerda política se comportasse como se o que ela quisesse “salvar não fosse a realidade de nosso mundo, mas a realidade de como ele poderia ter sido, caso não fosse impedida pelos próprios antagonismos que deram origem à ameaça nuclear” (p. 112, grifo do autor) no início da virada epocal dos anos 60. Em síntese, a origem dos sintomas culturais de nossa esquizofrenia política contemporânea remonta à época da Crise dos Mísseis de 1962, ou seja, àquela famosa virada nuclear no andamento dos conflitos imperialistas do século XX.
Para fazer uso de jargão hegelianês, a orientação política da esquerda liberal da qual estamos diante expressa uma “universalidade abstrata” na gramática da luta política. Tudo somado: como passar à dita “universalidade concreta”? O primeiro passo é a realização de um diagnóstico correto da situação, que Žižek prefere chamar de “doença de Huntington” (p. 113). Trata-se de um momento conjuntural onde a “cortina de ferro da ideologia” ensaiada nos anos da Guerra Fria é substituída por uma “cortina de veludo da cultura” (p. 115-116). Tal reconfiguração das formas de vida que encenam os conflitos sociais é fornecida por um pano de fundo geopolítico no qual as alianças do governo norte-americano com neoconservadores fora do eixo da União Europeia exibem o colapso do que ainda resta de um suposto legado iluminista (p. 117). Mas, para Žižek, e esse é o mote de toda sua análise, no centro disso encontramos um “retorno […] da luta de classes” (p. 122) no qual a “universalidade” é colocada em questão não só pela esquerda liberal, mas também pela perspectiva multiculturalista do marxismo vulgar. Porém, é preciso mostrar como esse discurso particularista – tão caro ao marxismo tradicional e a sua denúncia do “ponto de vista burguês” e que Žižek insiste em lembrar que contradiz o espírito da obra de Marx – segundo o qual não existe “universalidade neutra” está, no limite, desatualizado. Talvez utilizar o axioma da inexistência “universalidade neutra” acabe por vulgarizar o diagnóstico mais do que gostaríamos, pois é ineficaz na luta contra o populismo de direita. Até porque quando se recusa a priori a ideia de universalidade, o que sobra é um particularismo que não compreende “os medos, as esperanças e os problemas das experiencias” da vida cotidiana da maioria das pessoas que tem de levar uma penosa vida no capitalismo tardio. Tanto é assim que o argumento da vivência daí resultante (só determinados grupos têm lugar de fala, por exemplo) escandaliza uma verdadeira falta de empatia com uma multidão de indignados. Além disso, o marxismo vulgar nos conduziria a uma desculpa para abandonar um “duro e necessário trabalho teórico” (p. 125) em direção à universalidade concreta.
A solução dada pelo autor para o impasse da luta política da esquerda passa, em primeiro lugar, pela “negação de qualquer relevância política” das teses particularistas multiculturais (p. 129). Afinal, o argumento da vivência acaba por inverter o polo do oprimido, de modo que o “homem branco” poderia também dizer: “ninguém realmente nos entende” (p. 129). Com efeito, uma verdadeira “confusão incompreensível” no que diz respeito ao significado de universalidade no “mapeamento cognitivo elementar” de nossos tempos. Com isso, Žižek nota com razão que o argumento vulgar da vivência esquece que quando Marx criticou a “falsa universalidade” dos princípios básicos do Iluminismo, sua “própria argumentação contra as falsas universalidades falava da posição da verdadeira universalidade” (p. 129-30). Contudo, Žižek não quer “simplesmente tolerar uma pacífica coexistência entre formas de vidas antagônicas” (p. 133). Ao contrário, para ele, “o único gesto verdadeiramente emancipatório é, portanto, persistir na busca da universalidade” (p. 134). Esse gesto tem como finalidade a superação da vivência pluralista entre “identidades particulares que contribuem para um mundo unido” (p. 136). Portanto, a ação necessária a essa superação pode ser mais bem ensinada a nós pelos refugiados: “a maneira de atacar o neocolonialismo cultural não é resistir a ele em nome de sua cultura tradicional, mas de reinventar uma modernidade mais radical” (p. 137). Para tanto, não é necessário um esforço de integrar a particularidade à universalidade, mas de reconhecer como a própria universalidade já está operando nas fraturas da identidade particular, se quisermos, na generidade humana (p. 141).
Se no terceiro capítulo Žižek armou um diagnóstico que supera a esquizofrenia teórica que a categoria de “universalidade” sofre atualmente, o objetivo do último capítulo é pensar formas de superação desse quadro de referência da política perpetuado pelo marxismo vulgar, pela esquerda liberal e pelo multiculturalismo. Com sua ironia habitual, Žižek encara isso como uma crítica do “politicamente correto” em uma forma astuta – que chega a lembrar o melhor de Hegel em seu opúsculo de juventude chamado Quem Pensa Abstratamente?. Inicia lembrando do cineasta Ernst Lubitsch, o qual, provavelmente enfrentaria o dilema do politicamente correto através de uma “comicidade indireta”, ou seja, mediante uma piada com aquilo que não pode mais ser tratado como uma tragédia (p. 143-4), afinal, em uma tragédia, as pessoas geralmente aparecem como heróis portadores de uma certa dignidade. Mas, se prestarmos atenção, este não é o caso da ascensão da extrema-direita e seu neo-colonialismo chauvinista – demasiadamente presente em nossa “confusão incompreensível” –, que de resto não deixa nenhuma aresta de dignidade para suas vítimas (p. 143-4). De fato, quem ousaria dizer que o muçulmano que hoje chega para buscar uma vida em solo europeu é tratado com a mesma dignidade que um herói é tratado em uma tragédia? Por essa razão, a piada como forma de reação não é uma forma desrespeitosa de enfrentar o problema. Ao contrário, a piada explicita o fato de que “a memória ainda está muito fresca para determinar o processo de luto” (p. 143). Afinal, se no relógio do mundo, o nazismo é o ponteiro da meia-noite no tempo europeu, então o “universalismo abstrato” das instituições liberais do pós-guerra não foi o suficiente para ver o sol nascer. Ainda vivem a madrugada e sequer abriram os olhos para poder findar o luto.
Em um hegelianismo “psicanalizado”, a tentativa de Žižek de mobilizar a piada para atacar a “memória fresca”, tem como pressuposto a ideia de que é impossível uma formulação completa e absoluta da universalidade concreta. Como se sabe, na tradição dialética, o concreto (definido não como algo sensível e imediato, mas como uma multiplicidade de determinações reflexivas) sempre é relativo e por isso: “a única universalidade é a negativa, a do fracasso” (p. 144). Daí que a piada lubitscheana seria é, por excelência, o modelo cínico através do qual políticos, economistas etc. justificam suas políticas de austeridade (p. 145). Entretanto, esse cinismo através do qual interpretam a si mesmos já não funciona como um “veú”, isto é, não funciona à maneira de ocultar algo das pessoas, pois o regime contemporâneo de funcionamento da ideologia não opera mais inconscientemente de tal modo que a piada seja uma “saída” (p. 145-8). Uma das características centrais do cinismo é a de que, diferentemente da hipocrisia, ele não é uma mentira. Tudo se passa, então, como se a tomada de consciência de nosso trauma – ou seja, identificar onde a ideologia opera – não é suficiente para de fato encontrar o verdadeiro trauma (p. 146). Não é à toa que há uma insuficiência na piada. Mas se o próprio Lubitsch sabe disso, como aponta Žižek (p. 147), o que ele está realmente querendo fazer com a piada? Se Lubitsch torna explícito um trauma que, no fundo, não é identificado e nem encontrado, então talvez ele esteja justamente querendo encenar algo que não se pode dizer. Como se o trauma explícito nunca pudesse ser efetivamente denunciado. Uma fórmula clássica para quem está acostumado com Žižek: ainda que todos saibam a verdade, ela nunca pode ser efetivamente dita (p. 150).
Žižek diz que algo de similar se passa com os movimentos do MeToo em sua luta pela liberdade sexual – uma “luta” que, em última instância, legitima a contratualidade das relações sexuais do sadismo kantiano (p. 152). Mas além da capitulação ideológica, o que esse movimento tem em comum com o cinema de Lubitsch? Ora, o fato de que sempre se refere ao espectador; para fazer uso de jargão hegeliano-lacaniano: ao grande Outro. O gozo tem de ser demonstrado e, mais do que isso, explicitado. Tudo isso com a inesperada ressalva de que quem o assiste não pode denunciá-lo. Mas qual o objetivo disso tudo? Precisamente o de ocultar o fato de que não há a relação sexual alguma no filme. Como Žižek salienta: você somente cinicamente “faz a relação sexual” (p. 160-4). Só que se no cinema de Lubitsch o referente ausente é o “sexo”, no caso da luta do MeToo, o referente ausente é a “luta”. Escândalo flagrante: na luta pelo “sexo contratual” não há luta alguma. Passando por cima da variedade de exemplos citados, de Sex and The City à La La Land e do cinema de Lubistch à Black Panther, encontramos Žižek sempre insistindo na incapacidade de representação da universalidade concreta. Uma das dificuldades para formar a universalidade, destaca Žižek, reside na dificuldade dos movimentos particularistas – cinicamente representados na atual indústria cinematográfica – de “imaginar um verdadeiro novo mundo, um mundo que não apenas reflete […] a ordem mundial existente” (p. 181). Não é em outro sentido que Žižek (p. 181) ironiza o fato de que um crítico do cinema conseguiu a façanha de dizer que Frantz Fanon teria ficado orgulhoso de Black Panther. De fato, aí está um exemplo de como a esquerda liberal realiza uma leitura presa ao particularismo social e que, no limite, avança à “universalidade abstrata” – o que se evita, para Žižek, é o momento mais importante: o da singularidade. Afinal, ao invés de glorificar a narrativa oficial de um filme pop com estética política “multicultural”, como é o caso de Black Panther, não seria melhor prestar atenção em quem realmente é o “verdadeiro” herói desse filme? Ou seja, não seria melhor “assistir” ou filme à contrapelo? Não seria Killmonger, então o verdadeiro herói do filme? (p. 182-3). Devemos notar o seguinte: Žižek está dizendo que evitar encarar o que há de singular no filme é, no fundo, evitar encarar suas contradições. Pois, sabemos muito bem, a singularidade está sempre no negativo, se quisermos, ela é sempre o “raio-x” da universalidade abstrata. Para dizer de outra forma: a tarefa política do presente passa por fazer um “raio-x” do multiculturalismo presente na narrativa oficial do filme ao invés de nos conformarmos com ela. Do mesmo modo, carecemos de um “trabalho do negativo” no próprio multiculturalismo propagado pela esquerda liberal e pelas instituições democráticas contemporâneas. Dessa forma, teremos uma visão que busca contestar o cinismo do horizonte liberal do “politicamente correto”: um vazio político.
Por fim, não seria desnecessário lembrar que, de modo polêmico, o saldo geral do texto de Žižek é uma apresentação às avessas das grandes questões políticas de nosso tempo. Trata-se da identificação de uma verdadeira ausência política na esquerda mundial que, por assim dizer, se esqueceu – para fazer uso mais uma vez de jargão hegeliano – da ironia universal do mundo. Para que nossa forma de consciência social contemporânea atravesse a barreira do cinismo, sugere Žižek, somos impelidos a recuperar uma das lições fundamentais de Hegel: temos de levar a realidade mais a sério do que ela própria se leva. Só que a realidade é irônica. Pois se há uma “ironia universal do mundo” no modo antagônico de autoapresentação da realidade, por que nossa forma de consciência social teria de desdenhar dessa realidade e buscar resolver de fora suas contradições e seus antagonismos? Somente se levarmos a realidade mais a sério do que ela mesma, poderemos nos colocar na posição de enfrentar internamente seus antagonismos e contradições. Tudo isso na contramão do representacionalismo abstrato contemporâneo que tenta, a todo custo, subsumir o mundo a uma forma externa (seja política ou estética) demasiadamente abstrata que, por fim, não é sequer combativa – ao menos isso é o que sugere Žižek em sua denúncia de nosso vazio político.
Sobre os autores
Felipe Taufer é Doutorando em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Moisés João Rech é Professor de Direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Referência Bibliográfica
ŽIŽEK, Slavoj. Like a thief in broad daylight: power in the era of post-capitalism. London: Penguin, 2018, p. 240.