Por Ernesto Laclau, via Canadian Journal of Political and Social Theory, traduzido por Rodolfo Rodrigues
Gostaria de referir-me, nessas breves observações, a alguns problemas que são centrais para a teoria marxista contemporânea da ideologia. Ao discutir esses problemas, é evidente que vivemos hoje no centro de um paradoxo teórico.Os termos desse paradoxo poderiam ser formulados da seguinte maneira: em nenhuma época anterior a reflexão sobre “ideologia” esteve tão no centro das abordagens marxistas; ao mesmo tempo, contudo, os limites e a identidade referencial do que é “ideológico” nunca foram tão nebulosos e problemáticos como agora. Se o interesse crescente pela ideologia corre em paralelo a ampliação da efetividade histórica atribuída ao que foi tradicionalmente considerado o domínio das “superestruturas” – e essa ampliação é uma resposta à crise de uma concepção economicista e reducionista do Marxismo – então essa mesma crise coloca em xeque a totalidade social constituída em torno da distinção base-superestrutura. Consequentemente, não é mais possível identificar o objeto “ideologia” nos termos de uma topografia do social.
Dentro da tradição Marxista, podemos identificar duas abordagens clássicas para o problema da ideologia. Essas abordagens tem sido frequentemente – ainda que não sempre – combinadas. Para uma delas, a ideologia é pensada como um nível da totalidade social; para a outra, ela é identificada como falsa consciência. Hoje, ambas as abordagens parecem ter sido debilitadas como consequência da crise dos pressupostos em que se baseavam: a validade da primeira depende de uma concepção de sociedade como uma totalidade inteligível, concebida em si como a estrutura na qual seus elementos e processos parciais são fundados. A validade da segunda abordagem pressupunha uma concepção de agência humana – um sujeito possuindo uma essência homogênea e definitiva cujo desconhecimento foi postulado como fonte da “ideologia”. Nesse sentido, as duas abordagens foram baseadas em uma concepção essencialista tanto da sociedade quanto dos agentes sociais. Para vermos com clareza os problemas que levaram a teoria da ideologia ao presente impasse, precisamos estudar a crise dessa concepção essencialista em suas duas variantes.
Permitam-me tratar, primeiramente, da crise do conceito de totalidade social. A ambição de todas as abordagens holísticas era de fixar o sentido de cada elemento ou processo social fora de si mesmo, ou seja, em um sistema de relações com outros elementos. Dessa forma, o modelo base-superestrutura desempenhou um papel ambíguo: se ele asseverava o caráter relacional da identidade tanto da base quanto da superestrutura, ao mesmo tempo dotava aquele sistema relacional de um centro. E assim, de maneira bastante hegeliana, as superestruturas acabaram tendo sua vingança ao afirmar a “essencialidade” das aparências. Mais importante, a totalidade estrutural deveria apresentar-se como um objeto de positividade própria, suscetível de descrição e definição. Nesse sentido, essa totalidade operava como um princípio subjacente de inteligibilidade da ordem social. O status dessa totalidade era o de uma essência da ordem social que deveria ser reconhecida por trás das variações expressas na superfície da vida social. (Observem que o que está em jogo aqui não é a oposição estruturalismo vs. historicismo. Não importa se a totalidade é sincrônica ou diacrônica; o importante é que, em ambos os casos, é uma totalidade fundante que se apresenta como objeto inteligível do conhecimento [cognitio] concebido como um processo de re-conhecimento.) Contra essa visão essencialista, tendemos a aceitar atualmente a infinitude do social, isto é, o fato de que qualquer sistema estrutural é limitado, que é sempre rodeado por um “excesso de sentido” impossível de ser dominado e que, consequentemente, “sociedade” como objeto unitário e inteligível que fundamenta seus próprios processos parciais é uma impossibilidade. Examinemos o duplo movimento que esse reconhecimento implica. O grande avanço realizado pelo estruturalismo foi o reconhecimento do caráter relacional de qualquer identidade social; seu limite era a transformação dessas relações em um sistema, em um objeto identificado e inteligível (i.e., em uma essência). Porém, se mantivermos o caráter relacional de qualquer identidade, e se, ao mesmo tempo, renunciarmos a fixação dessas identidades em um sistema, então o social deve ser identificado como um jogo infinito de diferenças, ou seja, com o que, no sentido mais estrito do termo, chamamos de discurso, sob a condição, é claro, de que libertemos o conceito de discurso de seu significado restritivo como fala e escrita.
Esse primeiro movimento implica, portanto, na impossibilidade de fixar o sentido. Mas esse não pode ser o fim da questão. Um discurso no qual o sentido não pode ser fixado não é nada mais do que o discurso do psicótico. O segundo movimento, pois, consiste na tentativa de efetuar essa fixação, em última análise, impossível. O social não é apenas o jogo infinito de diferenças. É também a tentativa de limitar esse jogo, de domesticar a infinitude, de abrangê-la dentro da finitude de uma ordem. Mas essa ordem – ou estrutura – não assume mais a forma de uma essência subjacente do social; antes, é uma tentativa – por definição instável e precária – de agir sobre o “social”, de hegemonizá-lo. De forma semelhante ao que estamos apresentando aqui, Saussure buscou limitar o princípio da arbitrariedade do signo com a afirmação do caráter relativo da arbitrariedade. Logo, o problema da totalidade social é colocado em novos termos: a “totalidade” não estabelece os limites “do social” transformando-o em um objeto determinado (i.e., “sociedade”). Pelo contrário, o social sempre excede os limites das tentativas de constituir a sociedade. Ao mesmo tempo, contudo, essa “totalidade” não desaparece: se a sutura que ela pretende é definitivamente irrealizável, é possível, não obstante, proceder uma fixação relativa do social por meio da instituição de pontos nodais. Mas, se for esse o caso, as questões acerca desses pontos nodais e seu peso relativo não podem ser determinadas sub species aeternitatis[i]. Cada formação social tem suas próprias formas de determinação e autonomia relativa, que são sempre instituídas por meio de um complexo processo de sobredeterminação e, portanto, não podem ser estabelecidas a priori. Por consequência, a distinção base-superestrutura cai, e, junto com ela, o conceito de ideologia como um nível necessário a toda formação social.
Se passarmos agora para a segunda abordagem de ideologia – ideologia como falsa consciência –, encontramos uma situação similar. A noção de falsa consciência apenas faz sentido se a identidade do agente social puder ser fixada. É apenas com base no conhecimento de sua verdadeira identidade que podemos afirmar que a consciência do sujeito é “falsa”. E isso implica, é claro, que a identidade deve ser positiva e não-contraditória. No Marxismo, uma concepção de subjetividade desse tipo está na base da noção de “interesses objetivos de classe”. Aqui, não irei discutir em detalhes as formas de constituição, as implicações e as limitações de tal concepção de subjetividade. Prefiro apenas mencionar os dois processos que levaram progressivamente ao seu abandono. Em primeiro lugar, a lacuna entre “consciência real” e “consciência atribuída” cresceu cada vez mais. A maneira como essa lacuna foi preenchida – por meio da presença de um Partido, instituído como a encarnação dos interesses históricos objetivos da classe – levou ao estabelecimento de um despotismo “esclarecido” dos intelectuais e burocratas que falavam em nome das massas, explicando a eles seus verdadeiros interesses, e impondo sobre eles formas cada vez mais totalitárias de controle. A reação a essa situação assumiu inevitavelmente a forma de afirmação da identidade efetiva dos agentes sociais frente aos “interesses históricos” com os quais se pretendia subjugá-los. Em segundo lugar, a própria identidade dos agentes sociais foi cada vez mais questionada quando o fluxo de diferenças nas sociedades capitalistas avançadas indicava que a identidade e homogeneidade dos agentes sociais era uma ilusão, que qualquer sujeito social é essencialmente descentrado, que a identidade dele/dela não é nada além da articulação instável de posicionalidades em constante mudança. O mesmo excesso de sentido, o mesmo caráter precário de qualquer estruturação que encontramos no domínio da ordem social, também encontramos no domínio da subjetividade. Mas se qualquer ator social é um sujeito descentrado, se quando tentamos determinar sua identidade não encontramos nada além de um movimento caleidoscópico de diferenças, em que sentido podemos dizer que os sujeitos reconhecem a si próprios falsamente? O fundamento teórico que deu sentido ao conceito de “falsa consciência” evidentemente se dissolveu.
Pareceria, portanto, que as duas estruturas conceituais que anteriormente davam sentido ao conceito de ideologia foram rompidas, e que o conceito deveria, consequentemente, ser eliminado. Entretanto, não acredito que essa seja uma solução satisfatória. Não podemos prescindir do conceito de desconhecimento, precisamente porque a própria afirmação de que a “identidade e homogeneidade dos agentes sociais é uma ilusão” não pode ser formulado sem introduzir a categoria de desconhecimento. A crítica da “naturalização do sentido” e a “essencialização do social” é a crítica do desconhecimento de sua verdadeira característica. Sem essa premissa, qualquer desconstrução seria sem sentido. Então, parece que podemos manter o conceito de ideologia e a categoria de desconhecimento apenas caso invertamos seu conteúdo tradicional. O ideológico não consistiria no desconhecimento de uma essência positiva, mas o exato oposto: consistiria no desconhecimento do caráter precário de qualquer positividade, na impossibilidade de qualquer sutura definitiva. O ideológico consistiria naquelas formas discursivas pelas quais a sociedade trata de instituir-se a partir do fechamento, da fixação do sentido, do não reconhecimento do jogo infinito de diferenças. O ideológico seria a vontade de “totalidade” de todo discurso totalizante. E na medida em que o social é impossível sem certa fixação de sentido, sem o discurso de fechamento, o ideológico deve ser visto como constitutivo do social. O social só existe como tentativa vã de instituir aquele objeto impossível: a sociedade. A utopia é a essência de toda comunicação e prática social.
[i] Do latim, “sob a forma de eternidade”.