Por Clara Zetkin, via Internacional Comunista, traduzido por Debora Cunha
Publicado em russo na revista da Internacional Comunista, volume 1, número 2, 1919. Tradução do inglês por Debora Cunha e revisão por Gabriel Landi Fazzio, a partir do original em russo.
O artigo escrito pela camarada Luise Kautsky em memória de Rosa Luxemburgo (ver Die Freiheit [1] de 20 de janeiro, nº 36) convida à oposição enérgica todos aqueles que conheceram intimamente a grandeza de espírito de nossa camarada tão covardemente assassinada. Vai contra minhas inclinações polemizar sobre a finada, por assim dizer, diante de sua sepultura aberta. No entanto, a verdade e a amizade me incitam a refutar algumas das afirmações feitas por Luise Kautsky. Acredito que o devo não só àquela que nos deixou, mas também aos vivos, para evitar que a caricatura de Rosa Luxemburgo, desenhada e difundida por seus numerosos inimigos, seja ainda mais vulgarizada e distorcida por linhas mal desenhadas pelas mãos de uma amiga.
Luise Kautsky tem razão quando fala de Rosa Luxemburgo como uma lutadora que “não poupou nem seus melhores amigos, pelo contrário”. No entanto, enquanto uma amiga que compreendia perfeitamente a finada, a camarada L. Kautsky deveria ter enfatizado alguns outros pontos. A tenaz e atenciosa paciência com que lutou pela alma de seus amigos mais antigos antes de começar a combatê-los! A sinceridade de sua dor quando teve que pegar em armas contra um antigo aliado, a amargura de sua decepção quando a maneira dele de lutar e manejar as armas o fizeram reconhecer que não estava à altura do alto ideal que ela havia formado dele. Sem dúvida, Rosa Luxemburgo não poupava nem mesmo seu amigo mais antigo, se ela estivesse honestamente convencida de que ele era danoso à luta de classes proletária e que a prejudicava. A seus olhos, a causa sempre esteve acima da pessoa. Assim que ela passou a considerar seu dever combater até mesmo seu amigo mais querido, ela o fez com todas as armas à sua disposição. Com a artilharia pesada de métodos eruditos sérios e treinamento teórico maduro; com os golpes pesados da dialética brilhante; com o delicado florete da ironia, do humor e do escárnio. No entanto, em nenhum momento ela fez uso de métodos deselegantes. Aqui estava uma personagem totalmente nobre, incapaz de retaliar contra qualquer um, de usar as armas da baixeza, mesmo que fossem usadas contra ela.
Luise Kautsky está, portanto, errada quando caracteriza Rosa Luxemburgo assim: “Lamento dizer que em tais casos ela agiu como Lênin, a quem ela venerava, que trazido certa vez perante um tribunal do partido por difamar um camarada de partido declarou: ‘Um oponente político, em particular se for do nosso próprio campo socialista, deve ser combatido com armas envenenadas, procurando-se levantar a pior suspeita possível contra ele’.” A propósito, duvido fortemente que a declaração supracitada deva realmente ser considerada como característica do grande líder bolchevique. Sei pela história da Revolução Russa e também por minha própria experiência que adversário implacável e amedrontador o camarada Lênin foi. Ainda assim, a difamação eu não encontrei entre suas armas. Antes de conceder força conclusiva a essa dita declaração sua, eu precisaria saber todos os detalhes do contexto e das circunstâncias em que se diz ter sido feita.
Segundo o meu conhecimento e sentimentos, Luise Kautsky deveria ter se abstido de passar, no final do seu ensaio memorial, do terreno puramente pessoal ao político, e aqui insinuando uma mudança – incompreensível para ela – nas ideias e na atitude de Rosa Luxemburgo. Aprecio com plena simpatia e de todo o coração o que Luise Kautsky está se esforçando para fazer pelo socialismo dentro dos limites de seu círculo e de sua natureza. De maneira nenhuma questiono seu direito de ter sua própria opinião sobre os eventos e fenômenos que ocorrem no campo do socialismo internacional. Mas tudo isso não altera o fato de que, na luta pelo socialismo, ela apenas participa da experiência dos outros, mas não possui nenhuma experiência própria. Como consequência, não obstante sua busca pela objetividade, ela carece de verdadeira atitude independente em relação a esses fenômenos. Ela os considera do ponto de vista de seu séquito, de uma esposa tentando entender, participando de perto da luta de seu marido, mas ela mesma não se colocando no meio das fricções. Rosa Luxemburgo, por outro lado, lutou sob uma densa chuva de balas e mantinha uma vigilância afiada do alto da torre de observação que ela havia erguido para si mesma.
Sendo assim, compreende-se facilmente que, enquanto uma, examinando e pesando, lutou pela apreciação histórica da Revolução Russa, a outra, em altiva autoconfiança, sentou-se em um julgamento preconcebido sobre as “heresias bolcheviques” que, “contrariando toda a razão, deslumbraram e iludiram tanto a mente lúcida de Rosa Luxemburgo que ela desejou repetir na Alemanha os experimentos extraviados na Rússia”. Eu poderia ter deixado de lado esse veredicto esmagador, com a certeza de que os “experimentos extraviados na Rússia” ainda terão um papel criativo atribuído a eles na história futura, quando aquilo que os social-democratas conciliadores escreverem contra eles não será mais capazes de prejudicar nem mesmo um rato. Nada havia de vago e ambíguo na atitude que Rosa Luxemburgo assumiu em relação à revolução de novembro [2] na Rússia e à república socialista soviética. Não se deve julgar com base em comentários incidentais sobre pessoas e eventos, comentários que são expressados por pessoas espirituosas de sensibilidade à flor da pele e aguçada, e sob influência de eventos e fenômenos transitórios. Rosa Luxemburgo valorizava muito o “bolchevismo” como um todo – para resumir, usamos um termo que é um bicho-papão para a burguesia alemã – valorizava sua notável importância histórica e criticou os detalhes das táticas bolcheviques que, em sua opinião, mereciam crítica. Seu senso político e tato humano a impediam de agir como exigia, implicitamente, Luise Kautsky, em termos do sentido dos discursos políticos, ou seja: desenterrar velhas rixas e julgamentos antiquados exatamente no momento em que os espiões e carrascos de Ebert e Noske estavam nos calcanhares de Radek. [3]
Não pretendo discutir dentro dos limites dessas linhas com Luise Kautsky sobre a questão de quais são realmente os “métodos bolcheviques que Rosa Luxemburgo não só aprovou, mas, infelizmente, começou até mesmo a aplicar na prática”. Direi apenas uma coisa: esses “métodos” não correspondem à imagem que deles se propaga em benefício da política covarde e sem princípios da direita do U.S.R. (Partido Socialista Independente) – uma falsificação que difere muito pouco do espantalho do “bolchevismo” e do “spartakismo” que assustam os socialistas do governo. Mas deixemos de lado esses “métodos bolcheviques”. Usar essa frase pronta para explicar a repressão do levante de janeiro em Berlim é tão absurdo quanto atribuir o fracasso da Comuna de Paris ao fato de ela ter antecipado as “heresias bolcheviques” e seus “métodos”. Rosa Luxemburgo tomou suas táticas de combate não das condições russas. Essa tática é fruto de uma análise profunda e abrangente da essência do internacionalismo e de seu desenvolvimento. Para a Alemanha, tudo se baseava nas condições políticas alemãs, mas não nas condições predominantes no período passado de evolução lenta, mas naquelas do estado de coisas que emergiu durante o período tempestuoso da revolução que começou após a ascensão e o desenrolar do imperialismo.
Que minha amiga Luise Kautsky não se ofende comigo se eu disser o que penso: seu memorial é iniciado pela grata amiga de Rosa Luxemburgo e encerrado pela esposa de Karl Kautsky. A própria Rosa Luxemburgo teria sido a última pessoa a censurá-la por isso. A partir de sua consciência de sua própria liberdade, cresceu-lhe uma clemência para com a restrição interna e a dependência dos outros. Não é o paternalismo de Luise Kautsky que pronunciará a sentença sobre a “ilusão” e os “métodos bolcheviques” de Rosa Luxemburgo. Esse papel de juíza pertence à história, e todos nós, que nos orgulhamos de ter sido amigos e companheiros de armas de Rosa Luxemburgo, aguardamos com tranquilidade este veredicto.
Notas:
[1] N.E. “A liberdade”: jornal diário do Partido Social-Democrata Independente (USPD), originário da cisão do SPD, e no qual predominava Kautsky e sua tendência.
[2] N.E. A revolução russa de 1917 ocorreu em outubro, segundo o calendário juliano (então vigente na Rússia) e, segundo o calendário gregoriano, em novembro.
[3] N.E. Karl Radek foi um revolucionário polonês que atuou tanto nas fileiras do SDKPiL quanto nas do SPD e, posteriormente, no Partido Comunista da Alemanha. Friedrich Ebert e Gustav Noske foram representantes da extrema-direita do SPD. Ebert, como deputado, capitaneou a infame votação da social-democracia a favor do orçamento de guerra, em 1914. Por isso, e pelos serviços prestados persuadindo os trabalhadores grevistas das fábricas de munição a retomarem a produção, em 1918, passou a ser estimado pelo próprio kaiser Guilherme II. Como consequência, foi escolhido como Chanceler do Reich e Primeiro-Ministro da Prússia pelo kaiser, em 9 de novembro de 1918, e tornou-se em 11 de fevereiro de 1919 o primeiro presidente da República de Weimar, quando a revolução impôs a renúncia do monarca. Noske, por sua vez, era chamado o “cão de caça” de Ebert: na condição de Ministro da Defesa, foi colocado no comando do grupo paramilitar de extrema-direita denominado Freikorp em janeiro de 1919, poucos dias antes desses milicianos sequestrarem e assassinarem Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Os inomes dos social-chauvinistas Ebert e Noske estão inscritos nos anais da história como os nomes dos coveiros da revolução alemã.