O Pensamento Político de Lênin

Por Florestan Fernandes, in LENIN, Política. Coleção Grandes Cientistas Sociais, Org: Florestan Fernandes. São Paulo, Ed. Ática, 1989. p. 33-46, transcrito por Miguel Neto.

Em Lênin temos, portanto, uma combinação em profundidade da ciência social com o movimento socialista revolucionário. Isso não produz uma variante pura e simples da “ciência política”. O movimento socialista livrava Lênin do condicionamento científico do mundo acadêmico e universitário. A “ciência burguesa” não pode ir além da ordem existente (e, em alguns casos isolados, das revoluções dentro da ordem), em virtude desse bloqueio.


Lênin nasceu, cresceu e viveu para a ação política – não para a ação política comum ou convencional, dentro das regras do jogo, para a qual também estaria credenciado, mas para a ação política revolucionária, consagrada ao socialismo. Todo o seu pensamento é político: em suas origens, em suas motivações ou em seus alvos. Mesmo sua maior obra de investigação científica (O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia) foi empreendida por inspiração política. Lênin queria deixar patente, de uma vez por todas, que a revolução nacional russa era uma revolução atrasada, porém especificamente burguesa. Como tal, ela estava sujeita a determinadas regras, tinha um sentido inequívoco e seguiria certos caminhos mais ou menos previsíveis, cuja natureza e implicações políticas cabiam aos socialistas conhecer com rigor, para que pudessem agir revolucionariamente. Isso mostra quanto a ciência era instrumental para Lênin. O que era central em sua perspectiva intelectual era a ação política dirigida primariamente contra a autocracia czarista e, a largo prazo, voltada para instauração do socialismo. Contudo, a ciência estava presente, distinguindo a qualidade do seu pensamento político e, quiçá, o grau de eficácia que ele com frequência adquiria.

É muito difícil esquematizar as nuanças, as flutuações e, principalmente, o saber político acumulativo que resulta das múltiplas aplicações de um pensamento político voltado para os pequenos e os grandes dramas coletivos. Ele emerge não só sob o signo da história, mas com o propósito consciente de “fazer história”, de acelerar e de alterar os rumos das coisas. Essa é a área por excelência do marxismo vivo: uma força histórica atuando de baixo para cima. Não se pode compreender a vitalidade desse pensamento político, diretamente inserido na história em processo, se não se tem em mente que ele não existiria como tal sem o movimento socialista, que lhe deu ao mesmo tempo realidade história e sentido político revolucionário. Ele definiu o seu módulo político, determinando tanto o seu conteúdo, quanto sua orientação revolucionária; e explicando simultaneamente seja sua continuidade e oscilações, seja suas debilidades e sua força terrível.

Em Lênin temos, portanto, uma combinação em profundidade da ciência social com o movimento socialista revolucionário. Isso não produz uma variante pura e simples da “ciência política”. O movimento socialista livrava Lênin do condicionamento científico do mundo acadêmico e universitário. A “ciência burguesa” não pode ir além da ordem existente (e, em alguns casos isolados, das revoluções dentro da ordem), em virtude desse bloqueio. Contudo, o tipo de análise política que o movimento socialista impunha era uma expressão direta de sua própria orientação revolucionária: ele contrapunha a sua prática política revolucionária à prática política burguesa. Apoderando-se da ciência, o movimento socialista colima a transformação revolucionária da sociedade burguesa (e não o crescimento puro e simples do “edifício da ciência”). Não se trata de cultivar a “ciência pela ciência” (ou seja, uma ciência política oposta à “ciência política burguesa”); porém, de usar a ciência na produção de um conhecimento livre de interferências conservantistas e intrinsecamente explosivo.

Nessa conjunção, o modelo de análise político é substancialmente prático. Ele não só é instrumento da prática revolucionária socialista, como deve visar à previsão de suas possibilidades concretas e a complexa tarefa de sua orientação teórica. Por sua conexão com a ciência, ele se impõe critérios de verdade suprapolíticos (que não entram, todavia, em conflito com os móveis práticos da ação revolucionária socialista; antes, são requeridos como conditio sine qua non de êxito no confrontamento daquela prática com a ordem burguesa). Não obstante, tais critérios de verdade não são questionados no processo político propriamente dito. Aí, o decisivo não é a origem nem a natureza do tipo de conhecimento político, mas a relação de forças que permite a uma classe (e não a outra) decidir os rumos da história por meio do uso de tal conhecimento. Portanto, não é o conhecimento em si e por si mesmo que opera como força social: ele pode converter-se ou não em força social, dependendo de uma relação que é, no mundo moderno, uma relação de classe antagônicas. Em Lênin (ou o modelo de análise política que dele se pode extrair) em termos convencionais: ou da ciência política, tout court; ou dos tipos de racionalidade contidos na ordem política burguesa. Ambos rompem esses limites, seja a partir da irradiação revolucionária do movimento socialista, seja a partir da espécie de conhecimento político que esse movimento requer. 

De um lado, não existem objetivos especificamente empíricos ou sistemáticos, pois não existe também análise política “abstrata” ou “neutra”. De outro, a racionalidade burguesa é definida, ab initio, como o protótipo da irracionalidade, e o fim do processo revolucionário socialista não só consiste em negar aquela racionalidade, mas em destruí-la. Por isso, a lógica a que se submete semelhante pensamento político (e também o seu modelo de análise), não é formal nem intelectualista: é prática. Para atingir seus alvos, o conhecimento político produzido precisa ser aceito, reconhecido como verdadeiro e absorvido pelas massas, para em seguida manifestar-se através do seu comportamento coletivo. Onde a revolução só pode dar-se de baixo para cima, não existe outro caminho nem outro veículo para a ação política revolucionária. A massa não aparece apenas como objeto e consumidora previsível: ela se define como único agente que pode decidir, em termos finais, se haverá a vitória e uma revolução (ou de uma contrarrevolução). Temos aí todo um rol de requisitos que situam a natureza do conhecimento político, sua forma, propagação e meios de verificação numa relação direta com a prática política propriamente dita (e não com os requisitos do conhecimento científico formal). Voltamos a Marx: “A questão de saber se ao pensamento humano cabe verdade objetiva não é uma questão de teoria, mas uma questão prática”, porém com outro espírito. Pois a prática política revolucionária engendra o seu próprio quadro de “verdade objetiva”.

“Quando se pretende assumir um papel de direção política, deve-se saber meditar sobre as tarefas políticas”. Note-se: Lênin fala de um saber político que nasce de uma meditação. Mas essa meditação toma por objeto “as tarefas políticas”, nos termos de “um papel de direção política”. O que vem a ser, pois, tarefa política para um líder revolucionário? “A questão do poder é a questão capital de toda revolução”, eis a resposta. “A tomada do poder é a tarefa da insurreição; seu fim político aparecerá claramente depois”. Todavia, a revolução constitui um complexo processo político, que se determina, como outras ocorrências histórico-sociais, através da conjunção da “necessidade histórica” com o “papel da personalidade na história”. A cadeia causal não transforma os homens em marionetes: uma “evolução” necessária não se impõe mecânica ou automaticamente, pois a história não “usa” os homens (estes é que a constroem, como uma realidade viva e objetiva).

Sob o capitalismo, a organização da sociedade em classes antagônicas imprime uma forma típica a essa história. O poder econômico, social e cultural das classes torna-se poder político ao concentrar-se no Estado e, através dele, na dominação estatal. A luta de classes converte-se, assim, em luta política de “um grau superior”, quando entra em questão o controle do Estado e da dominação estatal pela burguesia ou pelo proletariado. “O marxismo reconhece que a luta de classe atinge seu pleno desenvolvimento, que ela alcança ‘a escala de toda a nação’, unicamente quando, não se contentando em estender-se à política, ela se apodera do que é o mais essencial na própria política: a organização do poder de Estado”. A esse nível mais profundo, a luta de classe regula o curso da história, decidindo a continuidade de uma “evolução” ou o começo de outra:

“Para que a maioria decida verdadeiramente os negócios públicos, é necessário condições concretas determinadas. É preciso, primeiro, estabelecer solidamente no país um regime político, um poder de Estado que torne possível a decisão dos negócios pela maioria e assegure a transformação dessa possibilidade em realidade. Doutro lado, é necessário que essa maioria, por sua composição de classe, pelas relações existentes em seu seio (ou fora dela) entre as diversas classes, seja capaz de conduzir em harmonia e com êxito a carruagem do Estado. Para todo marxista, é evidente que essas duas condições concretas são de uma importância decisiva na questão da maioria e da direção dos negócios do Estado em conformidade com a vontade dessa maioria. (…) Se o poder é exercido no Estado por uma classe cujos interesses coincidam com os da maioria, uma direção dos negócios públicos efetivamente conforma a vontade da maioria é possível. Mas se o poder político é exercido por uma classe cujos interesses divirjam dos da maioria, a direção dos negócios públicos em conformidade com a vontade da maioria converte-se inevitavelmente em um logro, ou leva ao esmagamento dessa maioria. Cada república burguesa nos fornece centenas e milhares de exemplos desse gênero. Na Rússia, a burguesia exerce uma dominação tanto política quanto econômica. Seus interesses, sobretudo no curso de uma guerra imperialista, se opõem da maneira mais clara aos da maioria”.

Por outro lado, a revolução requer um desdobramento da luta política em várias direções, inclusive da luta armada. Ela impõe uma organização especial e uma concentração única da vontade coletiva da classe. Como escreve Lênin, “a revolução se distingue precisamente da situação ‘normal’ dos negócios do Estado naquilo em que as questões litigiosas da vida pública são decididas diretamente pela luta de classes e por uma luta de massas que chega ao recurso das armas. Não pode ser diferente, porque as massas são livres e armadas. Resulta desse fato essencial que não é suficiente, em período revolucionário, conhecer a ‘vontade da maioria’; não, é preciso ser o mais forte, no momento decisivo e no lugar decisivo; é preciso vencer. (…) Nós vemos inumeráveis exemplos que mostram uma minoria mais bem organizada, mais consciente, mais bem armada, impor sua vontade à maioria e vencê-la”.

A luta pelo poder define-se, portanto, no próprio plano da luta de classes. O essencial vem a ser a preparação do proletariado para enfrentas suas tarefas políticas: na luta contra a autocracia, para neutralizar a contrarrevolução e para consolidar ou expandir a democracia burguesa; ou na luta para tomar o poder, criar um Estado operário e abrir o caminho para o socialismo. Essa foi a sequência das tarefas políticas que se delineou historicamente na Rússia, de 1905 a 1917. Contudo, outras combinações são possíveis. A questão consiste em saber: qual é o comportamento político do partido revolucionário do proletariado diante delas? “O dever imperioso do partido proletário era ficar com as massas, esforçar-se por imprimir um caráter tão pacífico e também organizado quanto possível à sua ação legítima, não se autoproteger, não lavar as mãos à maneira de Pôncio Pilatos, sob o pretexto pedantesco de que não está organizado até o último homem e que em seu movimento se produzem excessos”. Em resumo, o partido revolucionário precisa comportar-se como uma vanguarda consciente, responsável e corajosa: cabe-lhe montar a tática e escolher as palavras de ordem ajustadas a cada situação, avançar sempre, estabelecer a melhor ligação possível e insuperável entre os fins imediatos e os fins permanentes ou gerais do movimento socialista. Se isso impõe uma constante recalibração política do partido revolucionário, também não deixa de exigir uma incessante reeducação política dos militantes, do proletariado e, através deles, da massa ou do povo. Lênin distingue esses vários conceitos como partido e classe, classe e massa, proletariado e povo. Mas procede em sentido prático. Não pretendia colocar uma “escolástica” marxista no lugar de uma política proletária revolucionária, pois sempre foi infenso à infecção liberal e pequeno-burguesa do marxismo.

No final das contas, o eixo da ação política revolucionária está na luta ativa, que aparece para Lênin, ao mesmo tempo, como meio de conhecimento e meio de transformação da realidade.

“Tudo o que podemos fazer, na hora atual, é enrijecer nossas forças, tendo em vista consolidar a organização ilegal de nosso partido e decuplicar nossa agitação entre as massas do proletariado. Só a agitação pode nos revelar, em uma escala vasta, qual é o verdadeiro estado de espírito das massas, só a agitação pode criar uma ligação estreita entre o partido e conjunto da classe operária, só a utilização, com fins de agitação política, de cada greve, de cada acontecimento ou problema importante da vida operária, de todos os conflitos no interior das classes dirigentes ou ainda entre uma facção dessa classe e a autocracia, de cada intervenção dos socialdemocratas na Duma, de cada manifestação nova da política contrarrevolucionária do governo, etc., só o conjunto desse trabalho reformulará os quadros do proletariado revolucionário e nos fornecerá dados seguros para julgarmos a velocidade de maturação das condições de desencadeamento de novas batalhas mais decisivas”. 

O ponto de partida desse processo de luta política deve repousar na desintoxicação das massas populares, que precisam libertar-se do aburguesamento inevitável das condições de existência operária sob o capitalismo e das influências pequeno-burguesas; e o objetivo final, por sua vez, deve ser a criação e a emulação do espírito revolucionário das próprias massas, elevando sua consciência de classe e, concomitantemente, sua combatividade como e enquanto classe. Algumas citações permitirão situar o pensamento de Lênin sobre tal assunto:

 “A verdadeira educação das massas não pode ser jamais separada de uma luta independente, e principalmente da luta revolucionária das próprias massas. Só a ação educa a classe explorada, só ela lhe dá a medida de suas forças, alarga seu horizonte, aumenta suas capacidades, esclarece sua inteligência e tempera usa vontade. É por isso que os próprios reacionários tiveram de reconhecer que o ano de 1905, esse ano de combate, esse ‘ano doido’, enterrou definitivamente a Rússia patriarcal. (…) Estou certo que essas palavras denotam uma apreciação profundamente errônea da situação atual. O camarada Kaménev opõe o ‘partido das massas’ ao ‘grupo de propagandistas’. Ora, hoje precisamente, as ‘massas’ estão intoxicadas pelo chauvinismo ‘revolucionário’. Não conviria antes, sobretudo aos internacionalistas, saber em tal momento opor-se a essa intoxicação ‘maciça’, antes de ‘querer ficar’ com as massas, em outras palavras, ceder ao contágio geral? Não temos visto, em todos os países da Europa, os chauvinistas procurarem justificar-se invocando seu desejo de ‘ficar com as massas’? Não devemos saber ficar em minoria para combater uma intoxicação ‘maçiça’? A atividade dos propagandistas não é, principalmente na hora atual, o fator essencial que deve permitir à linha proletária libertar-se da intoxicação chauvinista e pequeno burguesa em que foram mergulhadas as ‘massas’? Uma das causas da epidemia chauvinista é precisamente que as massas, proletárias e não proletárias, fizeram aliança sem consideração por diferenças de classe que existem no seio dessas massas. (…) Educando o partido operário, o marxismo educa uma vanguarda do proletariado capaz de tomar o poder e de conduzir todo o povo ao socialismo, de dirigir e de organizar um regime novo, de ser o educador, o guia e o líder de todos os trabalhadores e explorados pela organização de sua vida social, sem a burguesia e contra a burguesia. (…) É que, na massa popular, nós somos como uma gota de água no oceano e nós não podemos exercer o poder senão sob a condição de exprimir exatamente aquilo de que o povo tem consciência. Caso contrário, o Partido Comunista não conduzirá o proletariado, e este não arrastará atrás de si as massas, e toda a máquina se deslocará. ”

Essa prática educativa não nasce nem conduz a qualquer espontaneísmo das massas. O movimento socialista possui seus alvos e ideais revolucionários fundamentais, que precisam ser transmitidos ao proletariado e às massas não-proletárias. O partido revolucionário absorve essa missão, cabendo-lhe preparar a classe operária para a revolução e dirigir esse processo. Nesse sentido, puramente político e em nada “elitista” (nem “autoritário” ou “totalitário”), é por seu intermédio que se estabelece a verdade política que deve, em cada situação, orientar a ação revolucionária do proletariado. A questão não é de “fraseologia revolucionária” ou de verbiagem extremista, mas de “clareza do pensamento político”, sem a qual não se pode articular, de modo flexível e eficaz, a tática e as palavras de ordem requeridas por determinada situação política, com a estratégia global do partido.

A frase revolucionária é frequentemente um mal de que sofrem os partidos revolucionários nos momentos em que estes realizam, bem ou mal, a ligação, a reunião, a interpenetração dos elementos proletários e pequeno burgueses e em que o curso dos acontecimentos revolucionários experimenta bruscas e importantes reviravoltas. A frase revolucionária é a repetição de palavras de ordem revolucionárias sem consideração pelas circunstâncias objetivas, pela mudança característica dos últimos acontecimentos do dia, pela situação do momento. Palavras de ordem excelentes, que arrastam e arrebatam, mas são desprovidas de base sólida, tal é a essência da frase revolucionária. ”

O “trabalho revolucionário perseverante” exige conhecimento objetivo, constantemente renovado, e autêntica responsabilidade marxista – e ambos levam à mesma indagação prática: qual é o grau de aprofundamento dos conflitos de classe no domínio político e quais são as probabilidades de aproveitá-los, de um modo ou de outro, bem como a curto, médio e largo prazos, como fulcro de luta pelo “poder real”, o poder do Estado? Tomando-se tal orientação política, duas coisas se patenteiam como essenciais e normais. De um lado, “as tarefas políticas concretas devem ser situadas em um meio concreto. Tudo é relativo, tudo passa, tudo se modifica. (…) Não existe verdade abstrata. A verdade é sempre concreta”. Doutro lado, “a revolução não se faz sob encomenda”. Para produzi-la, é preciso elevar a consciência revolucionária da classe operária e transformar a luta de classe não só em luta especificamente política mas, ainda, em luta política revolucionária.

Isso requer um árduo caminho, no qual é preciso lançar mão de diferentes táticas, estratégias, programas (no que eles são afetados por tarefas imediatas cambiantes) e palavras de ordem. A dimensão política da luta de classe, em todos o níveis, é sempre um fenômeno histórico e impõe ao proletariado esse incessante reajustamento de meios e fins da luta de classe. Todavia pode-se distinguir os períodos de desenvolvimento da sociedade de classes, de acordo com o predomínio das forças de equilíbrio e de estabilidade ou da existência de crises econômicas mais ou menos profundas. A técnica e a forma de luta política do partido revolucionário terão de acompanhar esses ritmos, impondo-se ora o ziguezague, ora a intervenção direta.

“Doutro lado, é claro que para evidenciar a tática do partido revolucionário durante os períodos mais agitados da crise nacional que atravessa um país, não basta indicar que classes estão em condições de dirigir uma ação visando à vitória completa da revolução. O que distingue os períodos ditos de desenvolvimento pacífico, nos quais as condições econômicas são tais que não provocam nem crises graves ne poderosos movimentos de massa, é o fato que, nos períodos do primeiro tipo, a luta tomar formas muito mais variadas que nos do segundo tipo, e que existe predominância do combate revolucionário das massas sobre a propaganda e a agitação conduzida pelos dirigentes no parlamento, na imprensa, etc.”

Os compromissos, os acordos táticos e eleitorais com partidos, classes e blocos de classes antagônicos podem justificar-se e ser necessários em ambos os contextos, embora chegue um momento em que a ruptura total é a única saída coerente com o espírito revolucionário marxista. Portanto, “existem compromissos e compromissos” e “é preciso saber analisar a situação e as condições concretas de cada compromisso ou de cada variedade de compromisso”, pois aquele que recomenda aos operários “uma receita oferecendo antecipadamente soluções acabadas para todas as circunstâncias da vida (…) não será mais que um charlatão”.

Em um plano, põe-se em jogo a democracia burguesa, com o lugar que dentro dela devem ocupar a classe operária, o campesinato, a pequena burguesia etc., – e com as transições políticas que se tornam possíveis através da “revolução democrático-burguesa”. “Sem cair no espírito de aventura, sem trair nossa consciência científica, sem correr atrás de uma popularidade fácil, nós não podemos dizer e não dizemos mais que uma coisa: nós ajudaremos o campesinato, com todas as forças, a fazer a revolução democrática, para que seja tanto mais fácil, para nós, partido do proletariado, passar tão depressa quanto possível a uma tarefa nova e superior: à revolução socialista. No outro plano, coloca-se o alvo final: a revolução socialista. “Nós somos pela revolução ininterrupta. Não nos deteremos a meio caminho”. O melhor exemplo aparece na fase de ouro da vida revolucionária de Lênin, em abril de 1917, quando ordenou que se iniciasse o assalto direto ao poder do Estado.

“Propor a questão do ‘acabamento’ da revolução burguesa como se fazia outrora, significa sacrificar o marxismo à letra morta. A antiga fórmula era: após a dominação da burguesia pode-se e deve-se instaurar a dominação do proletariado e do campesinato, sua ditadura. Ora, na vida real, as coisas já se passam de modo totalmente oposto: trata-se de um embaralhamento extremamente original, novo, sem precedente, de uma e de outra. Nós temos lado a lado, em conjunto, simultaneamente, quer a dominação da burguesia (o governo Lvov-Goutchkov) quer a ditadura democrática do proletariado e do campesinato (os sovietes de deputados operários e soldados) que cede o poder voluntariamente à burguesia, transforma-se voluntariamente em apêndice desta. (…) Pois é preciso não esquecer que o poder real, em Petrogrado, pertence aos operários e aos soldados; o novo governo não exerce nem pode exercer sobre eles qualquer coação, já que não existe nem polícia, nem exército separado do povo, nem uma todo-poderosa burocracia localizada acima do povo. É um fato. Um fato que, precisamente, caracteriza um Estado do tipo da Comuna de Paris. Esse fato não se ajusta aos velhos esquemas. É preciso saber adaptar os esquemas à vida, e não repetir hoje palavras destituídas de sentido sobre a ‘ditadura do proletariado e do campesinato’ em geral.

A tática marxista, com as palavras de ordem correspondentes, delineara-se de modo claro: separar os elementos proletários e comunistas dos elementos pequeno-burgueses, expulsando estes últimos da área da luta efetiva pelo poder; e converter os sovietes dos deputados operários e soldados no núcleo de “um tipo de Estado particular”, semelhante à Comuna e aberto tanto à “iniciativa da massa do povo”, quanto a “tomar medidas, e quais, na direção do socialismo”.

Essas várias citações deixam patente que o tipo de conhecimento político prático-teórico, que estamos considerando, encontra as fontes de sua verificação em uma via experimental concreta: ou no comportamento das massas; ou na eficácia de tal acontecimento através do comportamento das massas ao nível político, para transformar a estrutura da sociedade. “Toda a política da social democracia consiste em esclarecer a via com que a massa do povo contará para participar. Mantendo alta a bandeira do marxismo, em cada passo que dão as diversas classes, em cada acontecimento político e econômico, nós mostraremos a confirmação que a vida traz à nossa teoria. Quanto mais o capitalismo se desenvolve, quanto mais a luta política se intensifica, maior é a parte do povo que se acha convencida por nossas palavras e pela confirmação que lhe traz a vida (ou a história) ”. A análise objetiva põe em evidência o que está em devir, o que será, em um espaço maior ou menor de tempo, ou seja, leva a uma previsão de ordem prática, a qual, se for politicamente verdadeira, será por sua vez confirmada pela aceitação das massas e pelas transformações conseguidas. “Toda crise política, independentemente de seu término, também é útil no sentido de que traz à luz do dia o que é latente, que ela põe em evidência os móveis da política, que ela desvenda as manifestações e destrói as ilusões, as frases e as ficções, que ela mostra de um modo concreto e enfia cabeça a dentro, por assim dizer, o que é. ”

O conhecimento político prático-teórico, portanto, revela uma transformação potencial, em si mesma possível ou necessária, mas que pode ou não concretizar-se (dependendo da relação política entre as forças de classe); e é a atividade política propriamente dita, pela qual vingará uma composição determinada da revolução ou da contrarrevolução, que decide se ocorrerá (ou não) um deslocamento do poder nas relações entre as classes.

“O período transitório, porém, é transitório justamente porque sua tarefa específica consiste em preparar e reunir as forças necessárias, e não em coloca-las em operação de modo direto e decisivo. Saber pôr em andamento essa atividade de aparência opaca, saber utilizar para este fim todas as instituições semilegais que são próprias da época da Duma Cem-Negros, todas as tradições da social democracia revolucionária, todas as palavras de ordem de seu recente passado heroico, toda a sua intransigência diante do oportunismo e do reformismo, eis em que consiste a tarefa do partido, a tarefa do presente instante. ”

Ocorrendo o deslocamento de poder nas relações de classe, há uma transferência história e estrutural do poder real, o que aflora na alteração das estruturas de poder (superficiais ou profundas, do tipo da revolução dentro da ordem ou da revolução contra a ordem), e mostra que o conhecimento político prático-teórico, bem como a prática política correspondente, passaram e foram confirmadas pelo teste crucial da experiência. Essa concretização, embora sumária, permite retomar o que o próprio Lênin chamou de “óptica marxista”, de uma perspectiva leninista. Lênin situava as relações de poder no plano histórico-social e fazia-o segundo uma “orientação histórica”. Ia em busca, no entanto, do que determinava a persistência ou a transformação do padrão estrutural da economia e da sociedade. A luta política, como relação de classe e de poder, está sujeita a condicionamentos e ao determinismo histórico. Para elevá-la aos níveis mais profundos e criadores, é preciso descobrir onde, quando e como a luta política, como luta de classe, poderá e deverá ser conduzida. Há situações nas quais “não se pode inventar essa luta nem provocá-la por um único apelo”; há outras em que “o apelo à luta é o dever do proletariado revolucionário”. “O marxista deve lutar para que a revolução evolua em linha reta, quando essa luta é ditada pela situação objetiva, mas isso não significa que não deva levar em conta a orientação em ziguezague, que já exista de fato”. Aqui, voltamos obviamente ao ponto de partida da nossa discussão do pensamento político de Lênin. Mas com uma visão panorâmica de sua concepção do político, na qual se fundiam inextricavelmente a “ciência”, a “técnica” e a “filosofia”, e na qual prevalecia a vontade de manter o marxismo como uma força viva da história, conforme o atesta a seguinte transcrição final:

“O marxismo difere de todas as outras teorias socialistas porque alia, de modo notável, plena lucidez científica na análise da situação objetiva e da evolução objetiva, ao reconhecimento mais terminante do papel da energia, da criação e da iniciativa das massas, e também, naturalmente, dos indivíduos, agrupamentos, organizações de partido que sabem descobrir e realizar a ligação com tais e quais classes. A alta avaliação atrivuída aos períodos revolucionários no desenvolvimento da humanidade decorre do conjunto das concepções históricas de Marx: é nesses períodos que se solucionam as grandes contradições que se acumulam lentamente nos períodos ditos de evolução pacífica. É nesses períodos que aparece, com a maior força, o papel direto das diferentes classes na determinação das formas da vida social, que se criam os fundamentos da “superestrutura” política, a qual se mantém depois, durante muito tempo, sobre a base de relações de produção renovadas. ”

 

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