Por Étienne Balibar, via b2o, traduzido por Franziska Romani Furtado.
Pode-se achar alarmante (assim como eu acho) que os Ministros da Educação e do Ensino Superior, encorajados por superiores, tenham cavado da sarjeta ideológica um epíteto com ressonâncias sinistras para justificar um expurgo da Academia Francesa.
Pode-se achar preocupante (assim como eu acho) a velocidade com que a pesquisa independente com financiamento público está sendo desmantelada, tanto por meio da austeridade financeira quanto do uso generalizado de financiamento direcionado e monitorado.
Pode-se achar desanimador (assim como eu acho), ver auto-proclamados porta-vozes da “excelência da pesquisa francesa” tentando impedir que nossos alunos participem das principais correntes internacionais de inovação e pensamento crítico, consideradas incompatíveis com nossos valores republicanos, e isolando-nos assim em um provincianismo chauvinista.
Pode-se, mesmo enquanto se defende, como eu, a legitimidade do estudo de raça, gênero, classe, estudos pós-coloniais e todas as suas interseções, estar ciente e denunciar argumentos simplistas e historicamente infundados e a censura sectária que existem nas margens da academia.
E pode-se ficar desapontado (assim como eu fico) ao ver historiadores e cientistas sociais que, depois de contribuir com estudos marcantes para a crítica da desigualdade e das formas de exclusão social ou nacional, se juntaram, com amargura, ao campo do conservadorismo intelectual e do corporativismo.
Mas esses sentimentos não se referem à questão epistemológica no cerne da questão. No domínio das ditas ciências humanas e sociais, qual a relação entre a necessidade de se posicionar e a do conhecimento pelo conhecimento (a única forma de conhecimento que de fato merece o este nome)? Somos trazidos de volta à questão colocada por Max Weber em suas palestras de 1919: qual é a “vocação” da ciência? Em que difere da “vocação” da política? [1] Parece que a solução que ele propôs na época – a da “neutralidade axiológica”, a separação da ética em duas dimensões, “convicção” e “responsabilidade” – acabou por ser impraticável.
Vejo quatro razões para isso, e elas formam algo semelhante a uma unidade de opostos, através da qual vamos traçar nosso caminho sem sacrificar nossa pretensão.
Em primeiro lugar, as universidades e centros de pesquisa não podem mais se dar ao luxo de falar apenas para si próprios. Mais do que no passado, eles devem abrir suas portas e ouvidos para a sociedade, ou melhor, para a política. Ninguém está contestando que é essencial produzir e transmitir conhecimento verificado e verificável e praticar o argumento racional. Tudo isso acontece dentro da sala de aula. Mas o objeto de estudo, que tentamos tornar inteligível, só pode ser encontrado fora da sala de aula e é inevitavelmente conflituoso, porque não vivemos, nem viveremos tão cedo, em uma sociedade pacífica. Para que possamos apreender e compreender esse conflito, ele não pode ser simplesmente estudado e investigado à distância. Deve entrar em nossos espaços de aprendizagem e conhecimento por meio da presença de seus verdadeiros atores, a menos que os pesquisadores se aventurem a encontrá-los (por exemplo, em uma “selva” ou em um “bairro”). [2] Como Foucault poderia ter colocado, devemos trazer os professores, alunos e pesquisadores para fora e deixar os manifestantes, com ou sem coletes, e os ativistas ou cidadãos ativos entrarem. Eles devem ter a chance de falar nos mesmos lugares que , até agora, tem sido reservado para o discurso do magistério. Por mais difícil que seja, devemos a nós mesmos experimentar maneiras de fazê-lo.
Com o conflito, vem a ideologia. Isso é óbvio. O problema reside no fato de que a ideologia não vem apenas de fora, ela já está lá em formas mais ou menos dominantes. Afirmar que o fundamento do conhecimento econômico é a antecipação racional dos atores do mercado; que o conhecimento sociológico é a interação constante do individualismo metodológico e da solidariedade orgânica; que a psicologia e a pedagogia compartilham a adaptação dos sujeitos como seu objeto comum de estudo; ou que a trajetória da modernidade histórica tende à secularização da religião, não é simplesmente afirmar, é assumir um ponto de vista ideológico, que não se pode dissociar das relações de poder. Obviamente, existem posições alternativas às aqui delineadas, mais ou menos visíveis dependendo do período. Uma instituição que se dedica à aprendizagem viva, que é capaz de dar espaço ao desconhecido, deve ter como objetivo principal o questionamento sistemático, inclusive nos conselhos nacionais de avaliação, de todo paradigma “incontestável”, para garantir que se torne um assunto de discussão. Não esqueçamos o desastroso episódio que viu a eliminação da seção “Economia e Sociedade” do CNU (Conselho Nacional de Universidades) e o preço que estamos pagando por ela agora em meio à crise. [3]
Mas o conflito entre o que Canguilhem chamou de “ideologias científicas” e o que Althusser chamou de “filosofias dos cientistas” pode não ser o cerne do problema. Poderíamos novamente ser levados a pensar que o conflito reside apenas no objeto, na intromissão dos interesses e compromissos pessoais dos praticantes do conhecimento, mas não no conceito, que é o verdadeiro cerne do conhecimento. Ainda assim, nada é menos preciso. O conhecimento não chega a um conceito evitando o conflito. Ao contrário, faz isso intensificando o conflito em torno de grandes alternativas ontológicas, forçando-nos a escolher entre compreensões irreconciliáveis da natureza das coisas ou dos seres. A história da verdade não se encontra na síntese, mesmo que provisória, mas na ascensão polêmica em relação aos pontos de heresia de uma teoria. Isso é evidente em muitos campos, desde as ciências humanas até a economia e as ciências ambientais, e talvez até mais além – na biologia, por exemplo, com a teoria da evolução.
Enfim, e mais profundamente, não podemos esquecer que o conhecimento não existe sem sujeito(s). Isso não é uma deficiência da investigação científica, mas sua própria condição de possibilidade, pelo menos em qualquer ciência que tenha uma dimensão antropológica, e talvez em outras também. Para saber, devemos nos aventurar como sujeitos no campo em que já estamos “situados”, com toda a bagagem de “personagens” (como Kant os chamaria), que nos fazem “o que somos” (por meio de processos de e construção social, é claro). Não existe um “sujeito transcendental” do conhecimento científico. Ou melhor, devemos nos aventurar naquele ponto de “problema” de identidade onde todo sujeito reside, com mais ou menos dificuldade, com/em sua “diferença”, seja ela masculinidade, feminilidade ou outro “gênero”; negritude, brancura ou outra “cor”; capacidade ou incapacidade intelectual, ou crença ou descrença “religiosa”, a fim de tornar exatamente esse ponto a lente analítica através da qual lemos as forças sociais que nos aprisionam, excluem e dirigem. Pois mesmo que ninguém possa escolher livremente seu lugar na sociedade, em virtude das relações de poder que a constroem e a atravessam, nenhum lugar é atribuído de uma vez por todas. O objetivo, então, é transformar nossa diferença antropológica vivida e reconhecida em toda sua incerteza no instrumento com o qual dissecamos nosso corpo político coletivo, e fazer da análise dos mecanismos que a produzem e reproduzem, meios de se contrapor aos seus efeitos normativos. Este talvez não seja o caminho ideal da investigação científica, mas certamente é uma etapa necessária. Eu penso aqui no que Sandra Harding chamou de “objetividade forte”, que inclui o conhecimento da própria posição de alguém como sujeito, e de como os positivismos tendem a perder o foco.
O caminho que temos pela frente é muito difícil. Fui professor em uma época que, em retrospecto, poderíamos descrever como “dourada”. Os conflitos podem ser violentos às vezes, mas as proibições da era da guerra fria e as proibições institucionais ficaram para trás. O “valor da ciência” raramente era contestado. Maio de 68 e seu desejo de abalar as bases do academicismo e derrubar barreiras deixaram uma decepção generalizada em seu rastro, mas também um fervor e furor que alimentou um grande número de “programas” nos quais os jovens acadêmicos de hoje, metade dos quais estão vivendo de um contrato de curto prazo para o próximo, foram treinados. Percebemos agora que nossa classe dominante não é mais uma burguesia no sentido histórico da palavra. Não tem um projeto de hegemonia intelectual nem um ponto artístico de honra. Esta necessita (ou assim pensa) apenas de análises de custo-benefício, programas educacionais “cognitivos” e comitês de especialistas. É por isso que, com a ajuda da pandemia e da revolução da internet, a mesma classe dominante está preparando o fim das ciências sociais, humanas e até mesmo das ciências teóricas. Para acelerar o processo, por que não tornar a vítima o culpado (“Islamo-esquerdismo”, “ativismo”, “ideologia” …)? Isso tornará as coisas mais fáceis.
Como cidadãos e intelectuais, devemos nos opor com todas as nossas forças a esta destruição das ferramentas do conhecimento e da cultura. Mas nosso sucesso depende de despertarmos para as revoluções de que a academia necessita e de discuti-las entre nós sem ser reticentes ou reter nossas opiniões.
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Étienne Balibar é professor emérito de filosofia moral e política na Université de Paris X – Nanterre; Distinto Professor de Humanidades na Universidade da Califórnia, Irvine; e professor visitante de francês na Columbia University. Seus muitos livros incluem Citizen Subject (Fordham, 2016); Equaliberty (Duke, 2014); We, the People of Europe? (Princeton, 2003); The Philosophy of Marx (Verso, new ed. 2017); e dois livros importantes em co-autoria, Race, Nation, Class [4] (com Immanuel Wallerstein, Verso, 1988) e Reading Capital (com Louis Althusser e outros, Verso, nova ed. 2016).
Notas
Uma versão deste artigo foi publicada em 9 de março de 2021 no jornal francês Libération com o título: “Le conflit fait partie des lieux de savoir”. É uma contribuição para o debate que se seguiu ao anúncio feito por Frédérique Vidal, Ministra do Ensino Superior da França, em 16 de fevereiro de 2021 à Assembleia Nacional, para assinalar o lançamento de uma investigação oficial sobre a presença de programas de investigação inspirados no “Islamo- esquerdismo ”nas universidades francesas.Ainda que a afirmação tenha sido imediatamente rejeitada pelo CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica, maior órgão de pesquisa da França – e da Europa) e, entre outros, por um grupo de 200 pesquisadores filiados a instituições americanas que, em editorial publicado no jornal Le Monde, em 4 de março de 2021, destacou o eco arrepiante do “judaico-bolchevismo” nas palavras do ministro, nem o governo francês nem o presidente condenaram oficialmente o uso da frase. Pode-se então suspeitar que eles a aprovaram.
[1] Max Weber, “Wissenschaft als Beruf” (1917) e “Politik als Beruf” (1919).
[2] As palavras originais em francês, “selva” e “quartier”, respectivamente, têm significados sociais e políticos, além de seu sentido etnográfico aparentemente simples. “Selva” refere-se aos acampamentos que surgem regularmente – e são periodicamente desmantelados pela polícia francesa – em vários locais de Calais, e onde encontram abrigo e às vezes ajuda humanitária pessoas que tentam atravessar o canal sem documentos. Da mesma forma, “quartier” também define são os bairros mais pobres nas banlieues de Paris e outras grandes cidades onde a maioria das gerações jovens, muitas vezes de origem africana e norte-africana, e fortemente desempregadas, estão concentradas [Nota do tradutor Tommaso Manfredini].
[3] Em 2015, o CNU (National Board of Evaluation of Qualifications for Positions in Higher Education) estava considerando a criação de uma seção especial chamada ‘Economia e Sociedade’, que criaria um espaço nas Universidades para economistas que trabalhassem fora do ‘mainstream ‘escola neo-clássica. Foi abruptamente cancelado, por intervenção direta do Governo, após intenso lobby do estabelecimento, especialmente de Jean Tirole, Prêmio Nobel de Economia em 2014.
[4] Este disponível em português com o título Raça, nação, classe: As identidades ambíguas de Étienne Balibar e Immanuel Wallerstein, tradução de Wanda Caldeira Brant e contribuição de Silvio Luiz de Almeida, pela editora Boitempo.