Por Antonio Gramsci, via Reconquistar a Negritude
Publicado em 8 de dezembro de 1917, na rubrica Definizioni do jornal Il Grido del Popolo, assinado por A. G., sob o título “Intransigência-tolerância, intolerância-transigência”. Transcrito de: Gramsci. Poder, Política e Partido. Organização: Emir Sader. Editora Brasiliense, 1990.
Intransigência é não permitir que sejam adotados – para alcançar um objetivo – meios não adequados ao objetivo e de natureza diversa do objetivo.
A intransigência é um atributo necessário do caráter. É a única prova de que uma determinada coletividade existe como organismo social vivo, isto é, tem um objetivo, uma vontade única, uma maturidade de pensamento. Pois a intransigência exige que cada parte em separado seja coerente com o todo, que cada momento da vida social seja harmonicamente preestabelecido, que tudo tenha sido pensado. Isto é, exige princípios gerais, claros e distintos e que tudo que seja feito dependa necessariamente deles.
Por isso, para que um organismo social possa ser disciplinado intransigentemente é necessário que ele tenha uma vontade (um objetivo) e que o objetivo seja racional, seja um objetivo verdadeiro e não um objetivo ilusório. Não basta: é preciso que cada componente do organismo esteja convencido da racionalidade do objetivo, para que ninguém possa refutar a observância da disciplina, para que aqueles que querem que a disciplina seja observada possam exigi-lo como cumprimento de uma obrigação livremente contratada e, mais ainda, uma obrigação que o próprio recalcitrante ajudou a estabelecer.
Estas primeiras observações evidenciam como a intransigência na ação tem por pressuposto natural e necessário a tolerância na discussão anterior à deliberação.
As deliberações estabelecidas coletivamente devem ser racionais. A razão pode ser interpretada por uma coletividade?
Certamente, o único delibera mais rápido (encontra mais rápido a razão, a verdade) que uma coletividade. Porque o único pode ser escolhido entre os mais capazes entre os mais preparados para interpretar a razão, enquanto a coletividade é composta de elementos diversos, com variados graus de preparação para compreender a verdade, para desenvolver a lógica de um objetivo, para fixar os diversos momentos que é preciso atravessar para a realização do próprio objetivo. Tudo isso é verdade, mas é também verdade que o único pode tornar-se ou ser visto como tirano e a disciplina imposta por ele pode se desagregar porque a coletividade se recusa ou não consegue compreender a utilidade da ação, enquanto a disciplina fixada pela própria coletividade para os seus componentes, mesmo se tarda a ser aplicada, dificilmente falha em sua execução.
Os componentes da coletividade devem, portanto, colocar-se de acordo entre si, discutir entre si. Por meio da discussão, deve acontecer uma fusão das almas e das vontades. Cada elemento de verdade que cada um pode trazer deve sintetizar-se na verdade complexa e deve ser a expressão integral da razão. Para que isso aconteça, para que a discussão seja plena e sincera, é necessária a máxima tolerância. Todos devem estar convencidos de que aquela é a verdade e que, portanto, é preciso realizá-la. No momento da ação todos devem ser concordes e solidários, porque no fluir da discussão foi se formando um acordo tácito e todos se tornaram responsáveis pelo insucesso. Só se pode ser intransigente na ação se na discussão se foi tolerante e os mais preparados ajudaram os menos preparados a acolher a verdade, e as experiências individuais foram colocadas em comum, e todos o aspectos do problema foram examinados, e nenhuma ilusão foi criada [dezoito linhas censuradas].
Naturalmente esta tolerância – método das discussões entre homens que fundamentalmente estão de acordo e devem encontrar coerência entre princípios comuns e a ação que devem desenvolver em comum – não tem nada que ver com a tolerância compreendida vulgarmente. Nenhuma tolerância com o erro, com o despropósito. Quando se está convencido de que alguém está errado – e este alguém foge da discussão, se recusa a discutir, argumentando que todos têm o direito de pensar como quiserem -, não se pode ser tolerante. Liberdade de pensamento não significa liberdade para errar ou cometer despropósitos. Somos contra a intolerância que é um fruto do autoritarismo e da idolatria somente, porque impede os acordos duráveis, porque impede a fixação de regras de ação obrigatórias moralmente porque todos participaram livremente do processo em que elas foram fixadas. Porque esta forma de intolerância leva necessariamente à transigência, à incerteza, à dissolução dos organismos sociais [seis linhas censuradas].
Por isso fizemos estas ligações: intransigência – tolerância, intolerância – transigência.