Por Guilherme Cezar Nardi
As formas de exploração sobre o músico no capitalismo é tão expressiva, que em nossa sociedade tal ofício desvanece o sentido e direito do reconhecimento como profissão. Esta falta de reconhecimento serve para continuar desregulada a balança da distribuição de capital, precarizando trabalhadores que se dispõem a tal ofício.
Um exemplo desta prática incide na relação contratual de trabalho entre músicos e donos de casa de show, a qual quase sempre é feita de modo informal. Em um estudo realizado em 1997 no estado de Santa Catarina, Marcus Bonilla percebe que a maioria dos contratos de trabalho eram realizados de forma informal. Em entrevistas a empreendedores da cena, 83,3% mantinham os contratos em caráter verbal, sem documentos e nenhum vínculo empregatício. Isto não é uma questão da relação dos empreendedores com os funcionários, mas sim como a categoria é tratada: “Estes mesmos empreendedores declaram que com os demais funcionários este vínculo é diferente e as normas trabalhistas das outras categorias são respeitadas”.[1]
Isso se deve ao fato de que, para se tocar em uma casa noturna não existe legalidade profissional. No Brasil, até o início de 2007 era obrigatório músicos em São Paulo portarem a Carteira da Ordem dos Músicos do Brasil para atuarem nas casa noturnas[2]. O uso desse documento gerava maior fiscalização sobre o trabalho e multa ao não cumprimento das pautas previstas na Lei nº 3.857/60. Aos sujeitos que trabalham com música existem conflitos nos interesses destas relações sobre legalidade[3].
A falta de esperança em uma organização coletiva é um fenômeno do que Richard Sennett(2003) aponta que o capitalismo flexível irradia indiferença na organização da falta de confiança, onde não há motivo para se ser necessário. E também na reengenharia das instituições, em que as pessoas são tratadas como descartáveis. Essas práticas óbvia e brutalmente reduzem o senso de que contamos como pessoa, de que somos necessários aos outros.
No entanto, a obrigatoriedade do uso do documento da OMB, como requisito para a participação em espetáculos e shows foi excluída através da LEI Nº 12.547/07 por reivindicações de uma parcela de músicos por sua má eficiência[4].
A relação entre sociedade e músicos traz consigo uma carga de preconceitos sobre a seriedade da profissão. Este olhar dos demais é experimentado pelos músicos do Oeste do Paraná, pois, conforme Vinicius Pelin ao ser questionado sobre qual a pior parte da profissão:
O preconceito. Porque tem aquela brincadeira, você é só músico ou trabalha?A nossa agenda é praticamente cheia, a gente não para de trabalhar, é o dia inteiro trabalhando. Até algumas pessoas que falam isso eles dão risada porque sabem o tanto que levamos a sério e que é verdadeiro.Mas a gente sabe que tem um preconceito sim. Por exemplo, um músico que só toca na noite. A galera acha que ele só vai beber. Tem músicos que bebem, tem músicos que não, depende da forma que você vai levar a coisa. O meu pensamento é o seguinte: O palco é um escritório.[5]
Na narrativa do entrevistado torna-se evidente a necessidade de abordar este tema. As contradições que elas mostram são evidentes. Os discursos da própria sociedade não se sustenta em si quando se deparam com certas experiências vividas
Algumas reflexões sobre a construção de identidade em relação ao músico com seu trabalho em sociedade foram realizadas por Macedo. Segundo ela: “A vida artística é acompanhada de rótulos negativos, preconceitos e estigmas sociais da sociedade em relação aos artistas […]. A imagem do músico, construída socialmente, afeta de modo negativo a formação de uma identidade profissional. Portanto, ele experimenta, dentre outros, sentimentos negativos.” (ASSIS, 2010. p.62)
Estas noções ajudam a manter uma precarização do trabalho destes trabalhadores músicos atuantes no Oeste do Paraná e sujeitos dessa análise. Dentre os estudos que abordam a temática do músico trabalhador e realizados em diferentes casos, tais problemas são apontados e problematizados, porém até o momento não existe uma grande demanda de pesquisa sobre o tema.
A partir das entrevistas efetuadas, a pesquisa estará pautada em reflexões de sobre as experiências dos trabalhadores músicos do Oeste do Paraná. Até o momento da elaboração desse projeto, as entrevistas analisadas apontam para uma precarização da profissão. Este trabalho compreende que conceitos precisam ser contextualizados para possuírem sentidos de caráter científico. Buscando materializar o conceito de precarização nas relações de trabalho do músico, Dilma F. M. Pichoneri em sua tese de doutorado analisa entrevistas dos músicos da Orquestra Sinfônica Municipal (OSM) de São Paulo. Segundo suas conclusões:
A formação profissional dos músicos de orquestra, considerada enquanto um processo contínuo que se reinicia a cada concerto, a cada espetáculo, é extremamente prejudicada em um contexto de precarização das relações de trabalho.[6]
Ou seja, a formação técnica do músico necessita uma rotina de dedicação a este ofício, que nos estudos salientados não se é possível devido às formas de organização deste trabalho. Esta pesquisa não refere-se a músicos atuantes em orquestra, porém as reflexões acerca da profissionalização do músico estar relacionada ao aperfeiçoamento de sua técnica é compartilhado por todos que se aventuram pelo mundo da música. Então, seguindo esta reflexão a precarização se estabelece pelo fato de que o aumento de trabalho dos músicos não ocorre em um sentido de profissionalização técnica, mas sim ligado a outros aspectos não relacionados a prática como musicista. Dentre estas outras ocupações que o músico exerce, está a: “[…] busca de uma garantia de espaço no mercado musical e aumento de renda, geralmente desenvolvido em tempo determinado, sob forma de cachês ou apresentações em casamento, por exemplo.”[7]
Nestas tentativas de garantias de uma renda fixa os músicos acabam optando por outras profissões ao mesmo tempo, conforme salientado na reflexão de Dilma F. M. Pichoneri: “Ao trabalhar como docente, ele deixa de atuar como músico de orquestra. trata-se de outro conjunto de conhecimentos que precisa ser mobilizado para o desenvolvimento da atividade docente”.[8] O apontamento feito pela autora está presente nos relatos concedidos através de entrevistas realizadas com músicos do Oeste do Paraná. Não cabe elencar todos neste projeto, no entanto, a narrativa de Vinicius Pelin da banda Outro lado, demonstra a percepção deste e sua relação com a jornada de trabalho:
Que eu trabalho são 10 aulas por dias. Segunda e terça tem 10 aulas, tem dias que tem 9. Tem dias que são 6, 7 aulas. Daí fora o resto, com a banda a gente tem ensaio toda quinta de manhã. É um compromisso nosso. Ah, também tem que tirar a música pros alunos. É cansativo, porque você sempre tá nessa de dar aula, aula, aula mas é gratificante, porque você está vivendo aquilo que você gosta que é música.[9]
Neste caso, o ofício do músico se torna então o ofício do professor, que se desprende de seu aperfeiçoamento técnico para outras funções. Torna-se pertinente abordar e refletir sobre tais experiências, pois, ao compreende-las relacionadas ao mundo do trabalho, perceberemos que estas práticas ao longo do tempo são as que constroem e desconstroem sentidos e significados. O ser músico e as formas como essas relações se dão no tempo presente estão em disputa.
O presente texto, buscou abordar aspectos que evidenciam as condições de trabalho que os músicos enfrentam no capitalismo. Criando diálogos entre estudos de casos e entrevistas de músicos concedidas pelo autor deste texto.
Fontes:
Entrevista concedida por Banda Outro Lado.. Entrevistados: BONFIM, Fernando.; GENTIL, Mateus.; PELIN, Vinícius. Entrevista III [nov. 2018]. Entrevistador: Guilherme Cezar Nardi. Toledo, 2018, [Duração 45 minutos].
Bibliografia:
ASSIS, Daniela Tavares Ferreira de; MACÊDO, Kátia Barbosa. O trabalho de músicos de uma banda de blues sob o olhar da psicodinâmica do trabalho. Revista Psicologia Organizações e Trabalho, v. 10, n. 1, p. 52-64, 2010.
BONILLA, Marcus F. A situação profissional de músicos populares instrumentistas na ilha de Santa Catarina. Monografia em Educação Musical. Universidade Federal de Santa Catarina: Florianópolis, 1997.
GODOY, Caius M. Os músicos e a ordem: A regulamentação da primeira arte. Monografia em Direito. Universidade Salesiano de São Paulo: Campinas, 2014.
PICHONERI, Dilma Fabri Marão. Relações de trabalho em música: a desestabilização da harmonia. Tese de Doutorado em Educação. Universidade Estadual de Campinas: Campinas, 2011.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: as conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2003.
Notas:
[1] BONILLA, Marcus F. A situação profissional de músicos populares instrumentistas na ilha de Santa Catarina. Monografia em Educação Musical. Universidade Federal de Santa Catarina: Florianópolis, 1997. p.49.
[2] GODOY, Caius M. Os músicos e a ordem: A regulamentação da primeira arte. Monografia em Direito. Universidade Salesiano de São Paulo: Campinas, 2014. p.11.
[3] A falta de esperança em uma organização coletiva é um fenômeno do que Richard Sennett aponta sobre o capitalismo flexível: “Irradia indiferença na organização da falta de confiança, onde não há motivo para se ser necessário. E também na reengenharia das instituições, em que as pessoas são tratadas como descartáveis. Essas práticas óbvia e brutalmente reduzem o senso de que contamos como pessoa, de que somos necessários aos outros”.
[4] Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/blogs/combate-rock/ordem-dos-musicos-se-manifesta-sobre-o-fim-da-carteirinha-para-trabalhar/ Acesso: 23/01/2019.
[5] Entrevista concedida por Banda Outro Lado.. Entrevistados: BONFIM, Fernando.; GENTIL, Mateus.; PELIN, Vinícius. Entrevista III [nov. 2018]. Entrevistador: Guilherme Cezar Nardi. Toledo, 2018, [Duração 45 minutos].
[6] PICHONERI, Dilma Fabri Marão. Relações de trabalho em música: a desestabilização da harmonia. Tese de Doutorado em Educação. Universidade Estadual de Campinas: Campinas, 2011. p.164.
[7] Ibid., p.164.
[8] Ibid., p.165.
[9] Entrevista concedida por Banda Outro Lado.. Entrevistados: BONFIM, Fernando.; GENTIL, Mateus.; PELIN, Vinícius. Entrevista III [nov. 2018]. Entrevistador: Guilherme Cezar Nardi. Toledo, 2018, [Duração 45 minutos].