Socialismo e Nacionalização

Por Paul Lafargue via marxists.org, traduzido por Nara Castro

No presente momento, está em processo de fabricação um socialismo para os capitalistas: ele é muito modesto; contenta-se com a transformação de certas indústrias em serviços públicos. E acima de tudo, ele não é comprometedor. Pelo contrário, reunirá um bom número de capitalistas.


A mensagem para eles é: vejam os Correios, um serviço público socialista, funcionando admiravelmente com lucro para a comunidade e a um custo mais baixo do que se fosse confiado a uma empresa privada, como acontecia anteriormente. O abastecimento de gás, as ferrovias e a construção de moradias operárias também devem se tornar serviços públicos. Eles irão operar para o lucro da comunidade e beneficiarão principalmente a classe capitalista.

Na sociedade capitalista, a transformação de certas indústrias em serviços públicos é a última forma de exploração capitalista. É em razão de tal processo apresentar vantagens múltiplas e indiscutíveis para a burguesia que em todos os países capitalistas vemos as mesmas indústrias se tornarem serviços públicos (Exército, Polícia, Correios, Telégrafos, Casa da Moeda, etc).

Certos setores monopolizados, entregues à ganância de empresas privadas, tornam-se instrumentos tão poderosos de exploração de outros setores da classe capitalista que perturbam todo o sistema burguês.

Aqui estão alguns exemplos. O telégrafo elétrico, ao ser introduzido na França, tornou-se um serviço estatal porque os interesses políticos do governo assim o exigiam. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, onde esse interesse político não existia, foi implementado por empresas privadas. O governo inglês teve que recomprá-lo diante do interesse de todos e principalmente dos especuladores que, nesse processo, encontraram meios de obter lucros escandalosos. Nos Estados Unidos, o telégrafo ainda é uma indústria privada. Ele é monopolizado por um bando de especuladores que governa toda a imprensa do país. Esses especuladores comunicam despachos telegráficos apenas aos jornais que lhes são subservientes e que precisam pagar uma taxa tão pesada que muitos, não podendo suportar tal peso, abrem mão de tais notícias telegráficas. Na América, o noticiário telegráfico é a parte mais importante dos jornais; privá-los desses despachos é condená-los a definhar e morrer. Nessa República republicana, que os Liberais individualistas têm como o ideal de seus sonhos mais ousados, a liberdade de imprensa está à mercê de um punhado de especuladores, sem força governamental e sem responsabilidade, mas que detêm o controle do serviço dos telégrafos.

O monopólio das ferrovias é tão exorbitante que uma companhia pode, arbitrariamente, arruinar uma indústria ou uma cidade com a aplicação de tarifas diferenciadas ou preferenciais. O perigo a que a sociedade está exposta pela propriedade privada dos meios de transporte é sentido de maneira tão aguda que na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos muitos capitalistas exigem, por seus próprios interesses, a nacionalização das ferrovias. 

Na sociedade capitalista, uma indústria privada só se torna um serviço público para melhor servir aos interesses da burguesia. As vantagens que esta última obtêm são de diferentes naturezas; Acabamos de mencionar os perigos sociais decorrentes do abandono de certas indústrias à exploração privada – perigos que desaparecem ou são consideravelmente atenuados ao passarem para o controle do Estado. Mas existem outros. 

Ao centralizar a administração, o Estado diminui as despesas gerais e executa o serviço a um custo menor. O estado é acusado de pagar mais caro por todos os serviços do que as empresas privadas; no entanto, nem sempre é o caso quando se trata da implantação de meios de comunicação, um dos empreendimentos mais difíceis e complexos da sociedade moderna. Assim, os bondes construídos na França, com raras exceções, tiveram custo inicial médio de 250.000 a 300.000 francos por quilômetro; a ferrovia Alais-au-Rhone custou, por quilômetro de linha, uma soma de cerca de 700.000 francos. O sr. Freycinet, que não é um diretor burguês à toa, estabeleceu com base em dados positivos que o Estado poderia construir ferrovias a um custo de 200.000 francos por quilômetro. O estado pode, portanto, reduzir significativamente os preços dos serviços públicos que opera. São os burgueses que se beneficiam com essa redução, porque são eles os principais utilizadores de tais serviços. Muitos trabalhadores só usam os correios uma ou duas vezes por ano, enquanto muitas casas de comércio e companhias industriais chegam a enviar mais de dez, vinte cartas por dia.

Os serviços públicos tornam-se, para os políticos, um meio de favorecer seus protegidos e distribuir cargos-fantasma para os afilhados da burguesia. O senhor Cochery, por exemplo, concedeu cargos lucrativos a orleanistas, entre os quais o filho do senador Laboulaye, o homem do tinteiro.

Os militantes do Partido Operário podem e devem, em suas contestações aos homens públicos e políticos da classe capitalista, se valer dessa transformação de indústrias anteriormente privadas em serviços públicos para mostrar como os burgueses são levados pela força das circunstâncias a atacar seus próprios princípios, que exigem que a sociedade, representada pelo Estado, não retire nenhuma indústria da iniciativa privada. Porém, não devem desejar e muito menos exigir a nacionalização de novas indústrias, por várias razões.

Porque é do interesse do partido dos operários acirrar os conflitos que dilaceram a classe capitalista, em vez de procurar apaziguá-los – esses antagonismos aceleram a desorganização da classe dominante; porque a nacionalização aumenta o poder corruptor dos políticos capitalistas; porque os trabalhadores do Estado, como os trabalhadores da indústria privada, fazem greve e se engajam na luta contra aqueles que os exploram.

A única razão socialista que se poderia propor para essa nacionalização é que talvez ela simplificasse o trabalho de expropriação revolucionária do Partido Operário. Examinaremos essa questão em outra ocasião. 

Parte II

Na edição anterior da L’Egalité [1] dissemos que a única razão socialista que poderia ser dada em favor da transformação de certas indústrias privadas em serviços públicos administrados pelo Estado ou pela Comuna, era que tal transformação simplificaria a tarefa revolucionária de expropriação a ser realizada pelo Partido Operário após a tomada do poder. Essa razão, no entanto, não tem em que se sustentar. As vantagens desse processo de nacionalização estariam longe de contrabalançar os muitos perigos que ele apresentaria e que já mencionamos brevemente.

O primeiro grande esforço revolucionário dos trabalhadores será tomar o poder central; enquanto esta fortaleza da burguesia não for conquistada, todas as reformas operárias serão recusadas – mesmo as mais urgentes – ou se forem concedidas, terão forma tão moderada que serão ilusórias e só funcionarão em benefício da classe capitalista.

Apenas com a classe burguesa destituída do poder político, o partido dos operários poderá iniciar a expropriação econômica; mas aqueles que exigem a nacionalização de certas indústrias – mesmo nas condições atuais – dizem que a tarefa do Partido Operário será menos pesada, pois a burguesia já terá sido despojada de parte dos meios sociais de produção.

De modo algum.

As grandes organizações de comunicação e de crédito (como as ferrovias, o Banque de France, o Crédit Foncier, etc), que se deseja colocar nas mãos do Estado, já estão tão notavelmente centralizadas, que para apoderar-se delas seria necessário apenas enxotar seus diretores e queimar alguns maços de papel; seria tão fácil tomar posse do Banque de France e suas unidades provinciais, quanto do Escritório Geral dos Correios e suas repartições; bastaria enviar quatro homens e um cabo, e prender os altos funcionários para deter seus conluios e obter informações, caso necessário. 

A nacionalização não facilitaria a tarefa revolucionária; mas provocaria fraudes financeiras e uma terrível deterioração do Tesouro. No segundo número da L’Egalité e na Revue Socialiste, apontei alguns dos escandalosos roubos de fundos públicos perpetrados durante a compra de pequenas linhas ferroviárias pelo Estado. Todos os especuladores políticos – os Freycinets, Gambettas e Wilsons – com seus apetites aguçados pela recompra de linhas pequenas, exigem a compra das ferrovias principais. 

Embora em menor grau, a expropriação de grandes organizações produtivas (siderúrgicas, minas, têxteis etc) ainda será fácil. Será apenas uma questão de destituir e prender, se necessário, alguns administradores e proprietários. Mas a expropriação é apenas parte da tarefa histórica do partido dos operários. 

Aqueles que praticam o Socialismo de Estado, isto é, aqueles que exigem a nacionalização ou a municipalização de certos serviços, não se preocupam, de forma alguma, com o destino dos trabalhadores envolvidos em tais serviços. Mas mesmo supondo que buscassem melhorar a sorte desses trabalhadores, seriam capazes de fazê-lo? Se podem, que comecem por melhorar as condições dos trabalhadores mal pagos dos Correios, das fábricas estatais de fumo, das ferrovias e das siderúrgicas do Estado. As fábricas do Estado e do município são prisões tão terríveis quanto as fábricas privadas, se não piores. 

Nelas, os trabalhadores são explorados com mais brutalidade do que na iniciativa privada; são submetidos a uma autoridade que é mais poderosamente hierárquica; não podem unir forças, nem entrar em greve. E nem poderia ser diferente, sendo o Estado e o município apenas os representantes oficiais da classe capitalista.

Mas o poder revolucionário que irá socializar os meios de produção arrancados da classe capitalista terá que zelar pelo interesse geral da sociedade servida pelas indústrias socializadas, e, particularmente pelo interesse daqueles que estiverem diretamente envolvidos nelas. 

Suponhamos que o partido do proletariado tivesse enviado o Sr. Rothschild a Jericó para procurar registros de seus ancestrais e tivesse se apoderado das ferrovias do norte da França; e suponhamos ainda que não quisesse ou não pudesse estabelecer transporte gratuito a princípio. O partido poderia estabelecer o seguinte: De cada 100 francos de receita, 10 francos são reservados para manutenção e despesas gerais; 60 francos são absorvidos pelos salários dos trabalhadores e empregados. 30 francos são distribuídos entre os acionistas e obrigacionistas. Com a supressão dos acionistas e obrigacionistas, o governo revolucionário poderia dividir em três partes o valor que estes embolsavam para não fazer nada. Um terço ficaria para os trabalhadores, um terço seria usado para reduzir o preço do transporte e o último terço ficaria como receita para o Estado.

Assim, o governo revolucionário poderia aumentar imediatamente os salários dos trabalhadores e empregados em quase 16%. Ele teria de garantir que os salários fossem distribuídos de maneira diferente da atual, em que quanto menos um administrador ou alto funcionário trabalha, mais ele recebe. Para remediar esse mal, o governo teria apenas que deixar os interessados ​​dividirem a quantia na proporção de seus serviços e talentos. O governo revolucionário também teria que garantir que os trabalhadores a quem confia um instrumento social apresentassem todas as qualidades exigidas para o seu bom funcionamento; e que tal instrumento não se tornasse um meio de exploração de certas categorias de trabalhadores, como ocorre nas oficinas cooperativas da sociedade atual.

Esse modo de exploração dos meios de produção nacionalizados será apenas um modo transitório, imposto pelas dificuldades que o partido dos trabalhadores terá de enfrentar imediatamente após a revolução. Mas prevemos um período em que, com as necessidades de consumo e o poder de produção da sociedade cientificamente calculados, o consumo, assim como a produção, serão gratuitos. Não haverá salários nem preços de mercado. A sociedade humana entrará novamente no período do comunismo.

Na verdade, apenas um professor “possibilista” ignorante das condições sociais e imbuído de preconceitos burgueses poderia oferecer a nacionalização dos serviços públicos como o ideal Socialista.

Notas do Marxists Internet Archive

* Esse artigo recebeu o subtítulo “An early article by Paul Lafargue” e foi introduzido pela seguinte nota: 

Os leitores conhecem as circunstâncias em que Paul Lafargue e Laura Marx tiraram juntos as próprias vidas, com suas últimas palavras expressando sua crença no triunfo precoce da causa pela qual trabalharam. Nós nos curvamos diante da morte. No entanto, nos regozijamos porque, embora Lafargue tenha baixado sua pena, suas palavras ainda lutam em favor dos trabalhadores. O seguinte artigo, publicado no periódico L’Egalité em 2 de junho de 1882, continua incisivo e útil.

Notas da tradução

[1] O presente artigo foi originalmente publicado em duas partes nas edições de número 29 e 30 do periódico L’Egalité, no ano de 1882, sob o título “Le Communisme et les services publics”. [Disponível em https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k68307649/f2.item

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