O paradoxo do Iluminismo

Por Asad Haider, via Viewpoint Magazine, traduzido por Matheus Muniz Weiss e Reginaldo Gomes[1]

Um curioso sintoma da resistência à teoria na esquerda anglo-americana é a fixação para com o Iluminismo. O impressionante paradoxo dessa fixação é a apropriação anti-intelectual de uma tendência da filosofia europeia, que é atribuída com a introdução dos padrões, agora invioláveis, do secularismo, republicanismo, direitos, liberdades e igualdade. A interpretação do Iluminismo parece assumir seus interesses políticos mais diretamente na interpretação da Revolução Francesa, um episódio histórico comum com contradições políticas apontadas pelo tinir da guilhotina. Neste contexto, a história magistral de Jonathan Israel do “Iluminismo Radical”, culminando na defesa das “ideias revolucionárias”, que, em sua análise, foram a causa primária do processo revolucionário francês, ingressou diretamente no debate político.

Em um tempo em que a análise materialista da história está reemergindo como um ponto de vista viável, é impressionante ver a filosofia do Iluminismo – agora, reduzida às grandes palavras-chave da universalidade, racionalidade e liberdade – creditada ou a uma iniciação de um fluxo direcionado à liberdade humana, ou a uma imposição violenta do poder ocidental. Como Antoine Lilti aponta em sua resenha de 2009 sobre os dois primeiros volumes da obra de Israel, a reivindicação de que a Revolução Francesa foi a expressão de uma filosofia materialista e democrática apresenta-se enquanto “paradoxo de uma história idealista do materialismo”.

Entretanto, para intelectuais liberais, e até mesmo socialistas, de hoje com uma opinião elevada sobre as suas próprias ideias, essa história idealista serve como um mantra calmante. Em um artigo para Jacobin, Landon Frim e Harrison Fluss alegam:

“Se a Esquerda quer resistir ao crescente poder da alt-right [Direita alternativa], ela precisa retornar às raízes da racionalidade iluminista, que insiste na igualdade entre todas as pessoas e provê uma base teórica forte para transformação social e emancipação universal”[2].

Em artigo anterior para o The New Republic[3], Frim e Fluss foram tão longe a ponto de, surpreendentemente, defenderem que essa filosofia radical iluminista foi o elemento que faltara à campanha de Bernie Sanders.

Certamente, esse salto de fé é admirável. Poucos alegariam abertamente que a eficácia de uma campanha eleitoral poderia ser melhorada pela adoção dos princípios de filósofos do século XVIII, como Barão d’Holbach, os quais sequer são lidos na maioria dos departamentos de filosofia. E, de fato, tal salto de fé espelha aquele feito por Israel, quando ele afirma[4] que a “metafísica monística de uma substância”, iniciada por Baruch Spinoza, e a “democracia representativa e o igualitarismo”, prometidos pela Revolução Francesa, estão inextricavelmente vinculados.

No contexto da superficial rejeição do universalismo e da homogeneização da história da Europa realizada pelas tendências acadêmicas estadunidenses, os textos de Israel desempenharam um serviço inestimável. Ele mostrou como a influência do grande filósofo materialista Spinoza foi fundamental na formação do Iluminismo radical, uma filosofia de emancipação humana que deve opor-se ao Iluminismo moderado de Voltaire, John Locke, David Hume e Immanuel Kant – até agora canonizado como Iluminismo tout court na tradição anglófona. Ele demonstrou que o Iluminismo não era um fenômeno unitário, mas, sim, composto de correntes em toda Europa que se contrapuseram à escravidão e à opressão das mulheres. A dimensão emancipatória desse tumulto intelectual e político na Europa moderna é restaurada contra a ofuscação essencialista popularizada pelos estudos culturais americanos desde os anos 1990.

Todavia, apesar do valor indiscutível da pesquisa de Israel, suas conclusões não resistiram efetivamente ao escrutínio acadêmico. Assim, sua reivindicação da atualidade revolucionária do Iluminismo reside em uma base instável. Conforme o apontamento da historiadora da Revolução Francesa Lynn Hunt no The New Republic[5], “uma história intelectual convincente da Revolução Francesa teria que ser menos grandiosa acerca do poder das ideias”. Deixando de lado as questões de interpretação historiográfica, esse problema é também relevante às tentativas contemporâneas de reimplantar politicamente o Iluminismo. Para aqueles que reconhecem que as ideias revolucionárias da Revolução Francesa foram destruídas no banco de areia do regime capitalista de propriedade privada, os próprios critérios de Israel para seu julgamento do caráter revolucionário apresentam problemas imediatos.

Sua denúncia das tendências mais igualitárias da Revolução Francesa, influenciada por Jean-Jacques Rousseau, como antecipações do “fascismo” podem ser as mais difíceis de engolir. Conforme afirma Hunt: “Nos discursos proferidos em várias assembleias nacionais entre 1789 e 1793, todos eles agora disponíveis online, d’Holbach nunca é mencionado. Helvétius e Diderot aparecem apenas algumas vezes e quase sempre em uma lista com outros, principalmente Rousseau. Este, ao contrário, está presente a todo momento.” A conveniente declaração que os neofascistas de hoje estão em oposição direta ao legado iluminista da Revolução Francesa enfrenta problemas consideráveis se tentar reivindicar um fundamento na análise de Israel.

Essa cética recepção acadêmica das conclusões de Israel – na imprensa, há quem as considere também, como Samuel Moyn no The Nation[6] e David A. Bell no The New Republic[7] e no New York Review of Books[8] –, cita frequentemente o ensaio de Lilti, e é, por conseguinte, essencial para o debate anglófono. Lilti é um historiador francês conhecido por seu livro The World of the Salons: Sociability and Worldliness in Eighteenth-Century Paris, que apresenta uma análise materialista do Iluminismo, investigando esses locais famosos de discussão literária da elite. Sua resenha da obra de Israel aplica uma cuidadosa e crítica abordagem historiográfica para avaliar os métodos e conclusões do historiador britânico, acompanhada pela própria erudição de Lilti como um estudioso do Iluminismo.

Lilti mostra que Israel opera na base de uma contradição performativa que mitiga seu próprio projeto. A mais poderosa crítica filosófica do dualismo cartesiano (a de Spinoza) é disposta a serviço de uma historiografia que reproduz esse mesmo dualismo. O relato de Israel subordina os processos históricos materiais às ideias, que são apresentadas em livros que, de acordo com Lilti, são famosos agora, mas que nem sempre o foram. Os trabalhos de d’Holbach, Helvétius e Diderot não podem ser considerados mais influentes do que outros textos, incluindo manuscritos clandestinos, jornais e discursos, na ausência de um história material que evidencie o que foi realmente publicado, disseminado e lido por atores históricos desde o século XVI.

Essas elisões são o efeito da historiografia idealista de Israel, que Lilti diagnostica com precisão. Como seu ensaio permanece sem tradução para o inglês, vale a pena citá-lo longamente:

“Meu objetivo aqui é não repetir os velhos debates opondo história social e história intelectual. O que parece mais impressionante, a nível metodológico, é que Israel para aqui, nesta afirmação de uma mudança intelectual da qual trata-se de refazer a história na forma de uma progressão frustrada, mas inexorável, de um radicalismo coerente e combativo, estruturado pelo Spinozismo. Ele parece desconhecer toda uma outra corrente da história intelectual, que insistiu nos limites do gesto interpretativo, nos subterfúgios da coerência, na profunda dimensão instável das significações textuais. Essa abordagem, alimentada pela obra de Michel Foucault ou pelas advertências de Jacques Derrida, então defendida por autores como Dominick LaCapra, poderia, porém, ter alertado Israel contra o uso homogêneo e coerente de categorias como ‘espinosismo’, ‘Iluminismo radical’ ou ‘modernidade’, com as quais é importante ser sensível ao deslizamento das significações, à ambiguidade dos textos, à performatividade dos enunciados filosóficos e às operações interpretativas dos historiadores. Mesmo permanecendo no quadro de uma história intelectual mais clássica do Iluminismo, podemos lembrar a advertência de Franco Venturi contra o impasse idealista de uma história das ideias acoplada à reconstituição da coerência dos sistemas filosóficos, em completa contradição com precisamente a dimensão não sistemática do pensamento iluminista”.

O ensaio de Lilti é amplo em suas implicações para os estudiosos, mas é especialmente relevante àqueles de nós que se fundamentam tanto teórica quanto praticamente em uma análise marxista. Uma análise materialista das “revoluções burguesas” mostra não apenas que esses episódios históricos foram erroneamente equacionados com advento de direitos democráticos (direitos os quais foram, na verdade, só conquistados pela luta de massas contra a burguesia esclarecida), mas também que o próprio conceito historiográfico[9] de “revolução burguesa” associa, de forma equívoca, a emergência das relações de propriedade capitalistas com uma visão de mundo de uma “classe média” mal definida. À luz disso, a leitura de Israel acerca da Revolução Francesa e sua reivindicação de que seu legado emancipatório pode ser continuado hoje, abraçando e estendendo as suas ideias, são impossíveis de aceitar.

Para uma compreensão materialista da história, é óbvio que nenhuma ideia pode alterar o conjunto material das relações sociais, a não ser que seja incorporada dentro de processos materiais de transformação social e política. Claro, isso não é de forma alguma contrário a uma leitura informada do Iluminismo e suas consequências. Uma vasta literatura de estudiosos marxistas sobre Spinoza existe na Europa, representada por figuras como Louis Althusser, Gilles Deleuze, Etienne Balibar, Pierre Macherey, Antonio Negri e muitas outras. Israel praticamente ignora essa escola e explicitamente rejeita seu termo médio – representado, para ele, por Michel Foucault – como anti-iluminismo e, portanto, regressivo. Lilti, familiarizado com essa literatura e sensível à sua importância, apresenta uma leitura crítica da obra de Israel que demole o uso superficial e instrumental do Iluminismo nos debates intelectuais contemporâneos. Para uma esquerda anglófona que possui, para seu eterno descrédito, definida sua perspectiva teórica em oposição às correntes continentais, os problemas de Lilti são um desafio essencial.

O que está em jogo aqui não é somente a ideologia restritiva e limitadora do marxismo anglófono. É também a possibilidade de reivindicar e continuar o legado de um corpo de pensamento verdadeiramente revolucionário, que está situado dentro de processos de transformação concreta. Atribuir a ideia de racionalidade universal à transformação da sociedade é um absurdo filosófico para Spinoza. Sua heresia devastadora, precisamos rememorar, foi afirmar que mente e corpo são a mesma substância. Superstição, então, é causada pelos limites dos corpos em suas tentativas de perceber e entender a natureza. Esse ponto foi mais bem compreendido por Althusser, cujo famoso ensaio sobre ideologia[10] é essencialmente um longo comentário marxista do apêndice do livro I da Ética.

Ademais, Spinoza equipara razão com os encontros de outros corpos que aumentam o poder de ação de um corpo. O intelecto é inseparável da prática concreta, e, portanto, racionalidade é o efeito das relações materiais. Está situado no campo de forças que moldam e limitam sua eficácia.

Spinoza considera “esperança” uma emoção, em última análise, passiva, razão pela qual não esperaremos alguma mudança na perspectiva do marxista anglófono. Em vez disso, sugeriremos que marxistas são guiados pela razão para além de uma invocação fácil e equivocada do Iluminismo, para uma prática da filosofia que carrega o legado subterrâneo de Spinoza para o presente. Como Warren Montag, cujo Bodies, Masses, Power serve enquanto orientação no marxismo em vez de uma apropriação positivista de Spinoza, alega em uma entrevista com Salvage[11]: “a filosofia deve, antes de qualquer coisa, entender a conjuntura teórica e política na qual existe a fim de agir eficazmente, isto é, deve confrontar sua própria existência material”.

E quanto ao próprio Iluminismo? Aqui, podemos recorrer à análise incisiva de Michel Foucault[12] em sua conferência “O que é Iluminismo?” em 1978. Como Foucault indica, o Iluminismo, “enquanto um conjunto de eventos políticos, econômicos, sociais, institucionais e culturais do qual ainda dependemos em grande medida, constitui um campo privilegiado para análise”. Mas realizar essa análise não significa que se deve ser “a favor” ou “contra” o Iluminismo. Na verdade, isso é chantagem intelectual, à qual é imperativo recusar:

“Isso até significa precisamente que se deve recusar tudo que pode apresentar-se em uma forma simples e autoritária alternativa: você ou aceita o Iluminismo e permanece dentro da tradição racionalista (isso é considerado um termo positivo por alguns e utilizado por outros, pelo contrário, como censura); ou você critica o Iluminismo e, então, tenta escapar de seus princípios de racionalidade (que podem ser interpretados, mais uma vez, como bons ou ruins). E nós não nos libertamos dessa chantagem ao introduzir nuances ‘dialéticas’ enquanto procuramos determinar quais elementos positivos e negativos podem estar presentes no Iluminismo”.

Há quem se recuse a fazer referências a Foucault, visto que, hoje, é um autor injuriado por social-democratas devido a um posicionamento sem piedade para com o Estado de bem-estar social. Claro, seus pronunciamentos antimarxistas superficiais, levados muito a sério tanto por adeptos quanto por detratores, não deveriam obscurecer o diálogo produtivo conduzido por ele com a teoria marxista[13] , mas também com os trabalhadores encarcerados[14] e com o movimento pelo  direito ao aborto[15], todos essenciais à sua prática política como um companheiro de viagem do maoísmo francês dos anos de 1970.

Quanto à acusação agora em voga de que Foucault era “brando” para com o neoliberalismo, deve-se notar, em primeiro lugar, que repetir afirmações morais a-históricas a respeito do Estado de bem-estar social, como se fossem uma oração ao Pai Nosso, não é um substituto para o entendimento de como os Estados capitalistas adotaram e eventualmente abandonaram essa configuração. Foucault tratou o neoliberalismo com o mesmo rigor intelectual aplicado ao Iluminismo, visando não a um julgamento moral, mas à escrita da história de um modo particular de governar. Como Johanna Oksala[16] escreve em um comentário astuto acerca do debate sobre Foucault e neoliberalismo:

“A abordagem de Foucault… implica que o neoliberalismo e o Estado não podem ser entendidos como simplesmente antitéticos entre si, mas, sim, como combinação na forma de um conjunto, racionalmente coordenado, de práticas governamentais. Portanto, as apostas políticas não se resumem a ser a favor ou contra o Estado. Foucault não estava sofrendo de ‘Estado-fobia’ e alertou explicitamente a esquerda contra isso. Nosso problema atual, por outro lado, não é a ‘erosão do Estado’, mas sua reorganização neoliberal”.

Certamente, não é tarde demais para deixar de lado o salto de fé baseado em interpretações reducionistas da história e aceitar a tarefa tão bem descrita por Foucault: uma investigação histórica sobre o modo como nossa subjetividade contemporânea foi constituída pelo Iluminismo. Ao enveredarmos por este caminho, adotemos também a humildade de Foucault: “Eu não sei se deve ser dito hoje que a tarefa crítica ainda implica fé no Iluminismo; eu continuo a pensar que essa tarefa requer trabalhar nos nossos limites, isto é, um trabalho paciente dando forma à nossa impaciência por liberdade”.

Notas:

[1] O texto original não apresenta notas de rodapé e, por isso, acrescentamos para que os links, indicados no corpo do próprio texto pelo autor, possam ser acessados diretamente nessa edição. (N.T).

[2] https://www.jacobinmag.com/2017/03/jason-reza-jorjani-stony-brook-alt-right-arktos-continental-philosophy-modernity-enlightenment/ (N.T)

[3] https://newrepublic.com/article/130774/bernie-left-need-now-radical-enlightenment (N.T)

[4] https://press.princeton.edu/books/paperback/9780691152608/a-revolution-of-the-mind (N.T)

[5] https://tnr-reg.onecount.net/onecount/form/display.php?id=1b73609a-5e22-43ba-845d-da089d3e802f&src_code=1243 (N.T)

[6] https://www.thenation.com/article/archive/mind-enlightenment/ (N.T)

[7] https://newrepublic.com/article/100556/spinoza-kant-enlightenment-ideas (N.T)

[8] https://www.nybooks.com/articles/2014/07/10/very-different-french-revolution/ (N.T)

[9] https://newleftreview.org/issues/i43/articles/nicos-poulantzas-marxist-political-theory-in-britain (N.T)

[10] https://www.marxists.org/reference/archive/althusser/1970/ideology.htm [Trad. brasileira: ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1983]. (N.T)

[11] https://salvage.zone/online-exclusive/althusser-spinoza-and-revolution-in-philosophy-an-interview-with-warren-montag/ (N.T)

[12] https://foucault.info/documents/foucault.whatIsEnlightenment.en/ (N.T)

[13] https://viewpointmag.com/2012/09/12/towards-a-socialist-art-of-government-michel-foucaults-the-mesh-of-power/ (N.T)

[14] https://viewpointmag.com/2016/02/16/manifesto-of-the-groupe-dinformation-sur-les-prisons-1971/ (N.T)

[15] https://viewpointmag.com/2016/03/02/the-biopolitics-of-birth-michel-foucault-the-groupe-information-sante-and-the-abortion-rights-struggle/ (N.T)

[16] https://itself.blog/2015/01/04/foucault-and-neoliberalism-aufs-event-johanna-oksala-never-mind-foucault-what-are-the-right-questions-for-us/ (N.T)

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