Por Lucas Andreto
I – O irracionalismo como ideologia hegemônica do Capital
Fala-se muito na anti-ciência e no “negacionismo”. As palavras entraram para o vocabulário comum na mídia burguesa, nas redes sociais, nas conversas do cotidiano. O conceito, no entanto, descreve um fenômeno, mas não o explica. A crítica comum de hoje vê no negacionismo e na anti-ciência uma característica de indivíduos e grupos extremistas, que simplesmente não aceitam a realidade. Tomado dessa forma, o negacionista científico aparece como um vilão, sua personalidade está determinada por intenções malignas, pelo fanatismo religioso, posição política extremista ou ainda pela insanidade. Assim, o fenômeno pouco é atribuído as contradições de nossa sociedade, mas sim a desvios de comportamento e de moral, ou então a transtornos de ordem psicológica.
Aqui, pretendemos defender que o que chamamos hoje de “negacionismo científico” nada mais é do que a forma mais recente do que o filósofo húngaro Gyorg Lukács chamou de irracionalismo em seu livro A Destruição da Razão. A teoria de Lukács nos mostra a razão que opera na anticiência e no negacionismo, mas também que esses termos tomados isoladamente, são eles mesmos mistificadores. Lukács demonstrou em seu livro que a negação da ciência principalmente na sua capacidade de interpretar a sociedade tornou-se uma necessidade da manutenção da sociedade capitalista. Sob a teoria de Lukács, os grupos “negacionistas” de hoje não podem ser explicados por si mesmos como loucos ou mal intencionados, mas como sintomas de interesses reais das classes dominantes.
Lukács definiu o irracionalismo como uma determinada forma de ideologia reacionária. Deixou bem claro que não é a única, e muitas vezes não é hegemônica. Mas pertinentemente notou que com a ascensão do imperialismo estadunidense após a Segunda Guerra Mundial, o irracionalismo havia se tornado a sua ideologia oficial e, dessa forma, aspirava universalidade.
Pensamos que para o Brasil esta nota é particularmente importante. Nosso país traçou um caminho muito diferente daquele da Alemanha no terreno da filosofia e da ciência. Em vez do surgimento e amadurecimento de uma ideologia reacionária com propósito de combater teorias revolucionárias que existiam na mesma época, assistimos em nossa história a imposição violenta de ideologias colonizadoras. Nesse sentido, por quase todo o período colonial imperou aqui a escolástica em sua vertente restauradora, surgida na Europa em resposta à Reforma Protestante. Mesmo a língua portuguesa foi imposta como língua obrigatória por lei pela Coroa Portuguesa, nitidamente como um mecanismo de dominação. Até o século XVIII, o território que chamamos hoje de Brasil não viu imprensa ou produção científica. No século XIX, com o Império, o Brasil foi, nas palavras de Nelson Werneck Sodré, objeto, mas não sujeito da ciência. Nosso ambiente natural e nossa sociedade passaram a ser estudadas por cientistas europeus, mas nós mesmos nada produzimos. A questão muda com o advento da República e principalmente depois da Revolução de 1930 tivemos o desenvolvimento quantitativo e qualitativo do nosso complexo científico-tecnológico. Assim, também o debate filosófico ganha corpo aqui a partir do século XIX, com o empirismo, a metafisica e o liberalismo. O positivismo torna-se particularmente importante no final do século XIX e começo do XX.
De toda maneira, é nítido que o irracionalismo durante muito tempo não foi a forma ideológica hegemônica das classes dominantes em nosso país. Existiu nitidamente nas teorias da “vocação agrária do Brasil”, nas campanhas pela eugenia e o darwinismo social – fortes particularmente durante a Primeira República e os anos 1930 – e no integralismo. Mas o que imperou nesse sentido durante os séculos XIX e XX estava muito mais próximo do que Carlos Nelson Coutinho chamou de “miséria da razão” – uma espécie de racionalismo formal, não dialético – do que o irracionalismo que nos fala Lukács. A ascensão do irracionalismo como ideologia burguesa dominante no Brasil se dá justamente a partir da vitória do imperialismo estadunidense sobre a União Soviética. É nesse momento que, aos poucos, as universidades brasileiras passaram a conviver com um peso crescente do pós-modernismo e do pós-estruturalismo em seus departamentos de ciências humanas. De tal sorte, também o irracionalismo foi, para nós, inserido à maneira colonial, tal como as ideologias burguesas que o precederam: como “civilização transplantada”, mais uma vez tomando um termo de Werneck Sodré [1].
Portanto, nosso texto tem como objetivo primeiro apresentar o irracionalismo como forma ideológica de dominação do imperialismo hegemônica nos dias atuais, pelo menos no Brasil, do qual a “negação da ciência” e o desprezo pela cultura são duas de suas formas de expressão. Buscaremos demonstrar a universalidade dessa ideologia por meio da crítica de sua presença em formas de pensamento aparentemente distintas: o bolsonarismo, o democratismo liberal e o racionalismo formal dos paladinos da ciência.
Ao fim, salientamos o fato importante de que todas essas formas particulares de ideologia irracionalista em nossos dias cumprem o mesmo objetivo do irracionalismo clássico estudado por Lukács: combater o socialismo como projeto de sociedade da classe operária, daí o anticomunismo presente em todas elas.
II – Uma introdução ao conceito de “irracionalismo” em Lukács
O objeto núcleo da preocupação de Lukács em A Destruição da Razão é aquilo que ele chama de “irracionalismo”, que seria uma determinada corrente da filosofia que surge como resposta reacionária aos grandes problemas da humanidade. O irracionalismo seria uma forma de reação ao desenvolvimento dialético do pensamento humano, de maneira que sua história é determinada pelo processo das lutas de classes, das principais contradições sociais existentes na época das revoluções burguesas e acompanha o desenvolvimento da ciência e da filosofia. O irracionalismo responde os problemas da sociedade colocando-os como soluções e supõe a impossibilidade de resolvê-los. Assim, o pensamento irracionalista é, efetivamente, uma capitulação da razão perante as contradições operantes na sociedade.
Aqui, o debate entre Schelling e Hegel, abordado por Lukács, é exemplar. Schelling, de modo geral, enfrentava os mesmos problemas socio-históricos que Hegel: a crise fatal da sociedade monárquica, com todos os seus critérios ideológicos que fundamentavam o Antigo Regime esboroando, de maneira a surgir novos critérios sociais de orientação. O que até então passava pela religião e pela percepção mística da realidade, por uma concepção do mundo como um mistério divino acessível apenas à Deus dissolvia-se conforme nascia a sociedade burguesa. Os critérios agora eram outros: o indivíduo, a livre concorrência, o mérito do trabalho, a razão científica, a República, a democracia. Kant, a esse respeito, escreveu suas críticas (da razão prática e da razão pura). Os impasses deixados em aberto por ele foram o tormento e a razão de ser do idealismo alemão. Schelling reagiu contra esse esfacelamento do mundo monárquico buscando encontrar um lugar central de fundamentação do mundo para os valores religiosos aristocráticos contra a razão iluminista, a fim de preservá-los.
Assim, Schilling, por meio de sua filosofia da natureza, insiste na existência de uma “intuição intelectual” que não é reflexão, mas que é unidade sem mediação entre sujeito e objeto e que é na arte que essa intuição manifesta-se plenamente. A intuição intelectual de Schelling permitiria um acesso à verdade desprovido do trabalho da razão, despojado de conceito. Schelling insurgia principalmente contra o trabalho do entendimento – que para Hegel é o momento da consciência em que se manifesta o caráter contraditório do objeto por ser, ao mesmo tempo, coisa una e múltipla – em dividir o objeto do conhecimento em múltiplas partes para melhor conhecê-lo (procedimento fundamental para a ciência moderna). Para Schelling, objeto é uno e indivisível, como criação divina, não pode perder sua integralidade.
Hegel não aceitou essa concepção, pois o acesso à verdade do objeto só é possível por meio do trabalho da razão, do confronto conflituoso e cheio de percalços entre sujeito do conhecimento e objeto. O critério da verdade para Hegel está na experiência dialética deste trabalho para conhecer o objeto, e não em uma intuição carente de mediações. Lá no ponto em que Schelling recua no trabalho da razão, negando o entendimento, Hegel segue abordando a categoria do entendimento como um momento necessário do conhecimento, que se desdobra em outra forma fenomenológica do conhecimento a partir de suas contradições internas.
Lukács salienta o caráter aristocrático da ideia de “intuição intelectual”, pois implicava que apenas um grupo seleto de pessoas capazes de “intuir” a verdade em um lapso, como num acesso do homem à Deus, seriam capazes de conhecê-la. Assim, a ciência perderia seu caráter democrático, na qual qualquer ser humano tem capacidades de acessar o conhecimento das coisas por meio do trabalho da pesquisa científica, do método, da construção teórica.
Em Lukács, os grandes problemas filosóficos de uma época são determinados pela luta de classes, ao mesmo passo que a determinam na medida em que as ideias tomam força material quando se apoderam das massas. Assim, Schelling não tinha qualquer problema cognitivo. Era seu engajamento com o Antigo Regime e com a casta aristocrática e clerical que determinava as conclusões de sua filosofia, que colocavam limite à sua razão [2].
III – O irracionalismo como razão capitalista
A luta de classes é precisamente a questão que os democratas de hoje, supostos defensores da ciência e da razão desconsideram. São incapazes de encontrar no pensamento anticientífico e negacionista, isto é, no irracionalismo, suas bases materiais, sua razão de ser e seu papel ideológico fundamental porque o seu próprio irracionalismo fundamenta-se na negação da existência das lutas de classes. Mas não apenas. O irracionalismo não é somente uma ideologia de conservação da ordem, mas seu caráter reacionário, de negação dos valores e princípios iluministas que fundamentaram as revoluções burguesas em proveito de critérios de fundamentação social que remontam uma visão místico-teológica do mundo são capazes de preparar terreno para as formas políticas de dominação mais agressivas que já surgiram na humanidade. Exatamente por isso, a trajetória fundamental do irracionalismo traçada por Lukács em seu livro começa com Schelling contrapondo-se à Revolução Francesa e termina com Hitler e o terror nazista.
Entretanto, com a solidificação do poder de classe da burguesia – e principalmente depois da Primavera dos Povos, ocasião em que o proletariado tenta sua primeira revolução como classe independente – o irracionalismo toma um caráter acentuado e torna-se uma forma ideológica cada vez mais preponderante na intelectualidade burguesa. Isso ocorre porque a defesa da sociedade capitalista passa a ser um obstáculo para dizer a verdade à respeito da sociedade. Não é possível defender um sistema social indefensável sem trair a razão em maior ou menor medida. Essa passagem é ilustrada pela conclusão que Marx chegou a respeito dos economistas que surgem a partir da segunda metade do século XIX
Na França e na Inglaterra, a burguesia conquistara o poder político. A partir de então, a luta de classes assumiu, teórica e praticamente, formas cada vez mais acentuadas e ameaçadoras. Ela fez soar o dobre fúnebre pela economia científica burguesa. Não se tratava mais de saber se este ou aquele teorema era verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial, cômodo ou incômodo, se contrariava ou não as ordens policiais. O lugar da investigação desinteressada foi ocupado pelos espadachins a soldo, e a má consciência e as más intenções da apologética substituíram a investigação científica imparcial. [3]
Assim, se até 1848 – quando o antagonismo de interesses no seio do chamado Terceiro Estado ainda não havia ficado explícito e a burguesia ainda não estava totalmente alocada como classe dominante – os intelectuais burgueses eram capazes de levantar questões pertinentes sobre o caráter da sociedade capitalista e mesmo fazer críticas sinceras aos intelectuais jacobinos ou socialistas, a partir do momento em que a classe burguesa torna-se dominante e seu conflito com o proletariado é declarado, sua produção, principalmente nas áreas da filosofia, economia e história passam a ser dominadas pela apologia do capitalismo e consequentemente pelo silêncio das contradições sociais sistêmicas, pela tergiversação dos problemas essenciais, e mesmo pela falsificação da história. A etapa monopolista do capitalismo, o imperialismo, apenas aumenta essas tendências na ideologia burguesa, chamada a defender um modelo de dominação de classe cada vez mais violento e marcado pela barbárie. O irracionalismo passa a ser a expressão da lógica destrutiva do capital em forma de ideias, aparece, portanto, como a razão do capital.
Ao longo de sua exposição sobre o irracionalismo como ideologia do imperialismo, Lukács expõe uma série de características elementares da filosofia irracionalista: arbitrariedade, caráter contraditório, precariedade dos fundamentos, argumentações sofísticas, desprezo pelo entendimento e pela razão, glorificação da intuição (capitulação ou preguiça frente ao trabalho intelectual), teoria aristocrática do conhecimento, repulsa ao progresso social, mitomania, agnosticismo, repulsa pela realidade objetiva e negação da capacidade de sua cognoscibilidade, redução do conhecimento à uma utilidade puramente técnica, apelo à intuição para captação da “verdadeira realidade” que é vista como uma irracionalidade caótica. A consequência intelectual de uma filosofia com tais características é que ela só pode responder aos seus adversários através da tergiversação, da calúnia e da demagogia, apresentando uma completa incapacidade dos representantes do irracionalismo em estudar realmente seus adversários para lhes fazer a crítica.
Em termos de consequências científicas, o irracionalismo cumpre o papel de desqualificar as ciências humanas, ou melhor, as ciências que estudam a sociedade. Retira delas o caráter de objetividade, cientificidade, faz delas áreas de conhecimento de grande relatividade e subjetivismo e, assim, estabelece o postulado de que não é possível para a humanidade entender a sociedade que vive, “a razão se vê expulsa de todos os domínios da atividade social do homem”. É claro, se os seres humanos não podem compreender de fato a sociedade em que vivem, também são incapazes de transformá-la. O mundo social como um mistério está fora do controle humano.
Portanto, a “anticiência” e o “negacionismo” dos dias atuais têm pouco a ver com burrice, loucura, delírio, vilania ou qualquer outro tipo de incapacidade intelectiva individual ou coletiva. Ambos são apenas a forma fenomênica que a razão do Capital aparece para aqueles que pensam por critérios outros que não apenas a maximização de lucros, a dominação de classe e a manutenção da ordem social a todo custo.
IV – O bolsonarismo como mito irracionalista
É desnecessário esforço para evidenciar o irracionalismo presente nos discursos e nos atos de Bolsonaro, de maneira que qualquer fala do Presidente brasileiro escolhida a esmo seria uma prova cabal e inevitável. Possivelmente seja melhor mostrar como Jair Bolsonaro tornou-se, de fato, um mito. Todos os elementos constitutivos da ideologia que chamamos “bolsonarista” são pequenos mitos que sintetizam-se em um mito maior. Podemos pensar no mito da ditadura militar brasileira como redentora da nação no combate ao comunismo e à corrupção, no mito do Partido dos Trabalhadores (PT) como um partido comunista, no mito do golpe cultural gramscista que estaria em marcha no Brasil da Nova República, no mito do “comunista” como elemento desagregador da sociedade (cumprindo o papel que o judeu tinha na ideologia nazista), e tantos outros. Em sua maioria criados pelo ideólogo bolsonarista Olavo de Carvalho, que não fez mais do que versões “brasileiras” de fantasias políticas da extrema direita do imperialismo estadunidense, todas essas historietas que contém muito pouco de verdade, cumprem o mesmo papel do “mito” soreliano da greve geral [4].
É necessário enfatizar que Georges Sorel deixou claro que não havia importância que o seu “mito” da greve geral não fosse mais do que uma realidade parcial ou mesmo mero produto da imaginação. O que importa é que o “mito” condense inteiramente uma organização de imagens capazes de invocar instintivamente todos os sentimentos de revolta das massas, agrupando-as em conjunto. Essas imagens socialmente compartilhadas, ainda que jamais tenham sido verdade, ou ainda que jamais venham a ser verdade de acordo com os objetivos que propõe, cumprem o papel de ser força propulsora dos que nela acreditam, de fazer agir ativamente aqueles que veêm o mundo segundo essas imagens. O conjunto mitológico é um elemento de força, um meio de trabalho sobre o presente no objetivo de transformá-lo. O mito soreliano não deixa de convergir com a definição que Lukács deu ao recurso ideológico da burguesia decadente ao “mito” como forma de interpretar o mundo: “algo inventado subjetivamente, mas com pretensões de constituir uma objetividade – insustentável do ponto de vista da teoria do conhecimento -, uma objetividade que só pode se apoiar em fundamentos extremamente subjetivistas” (LUKÁCS, 2020. p. 339).
Assim, todo o constructo mitológico bolsonarista nada mais é do que uma imagem redentora que impulsiona aqueles que nela acreditam a agir, a lutar pelo Presidente da República. Que toda ela seja fundamentada em mentiras e meias verdades, pouco importa, pois o importante é seu resultado prático de mobilização de massas para objetivos determinados. O “mito” é apenas um instrumento, cujo caráter e constituição são determinados pelas finalidades às quais serve. Jair Bolsonaro, nesse sentido, não é mais um homem, mas a “imagem” condensada do mito criado e fomentado pela extrema direita brasileira, a soldo do imperialismo estadunidense há mais de uma década e que contou com inúmeros operadores.
O objetivo a ser conquistado com a construção do mito Jair Bolsonaro era realizar no Brasil uma verdadeira “revolução a favor da escravidão”, como disse Marx ao referir-se à Guerra Civil nos EUA. Isto é, mobilizar massas principalmente da classe média para defender de maneira militante e possibilitar, por meio da ascensão de um governo de extrema direita, uma completa reforma no Estado e na vida social, nas relações sociais em todas as dimensões, principalmente nas relações de trabalho, que tivesse como resultado a re-primarização da economia do país, o completo sequestro do orçamento público pelo capital financeiro internacional, a criação de um mercado interno com uma força de trabalho de baixíssimo valor e a redução do Estado brasileiro à um Estado satélite dos interesses norte-americanos na América Latina visando a atual batalha geopolítica dos EUA contra a aliança China-Rússia.
V – O liberalismo como ideologia irracionalista
Apenas a construção do mito Jair Bolsonaro para efetivar, por meio de um neofascismo, a salvação dos grandes capitalistas e do mercado financeiro internacional deveria ser o suficiente para não restar dúvidas de como nosso sistema só pode se manter fazendo uso do irracionalismo mais extremado como ideologia. Mas os ideólogos da burguesia interna brasileira tratam de exercer o irracionalismo de outro jeito, fazendo turvar o caráter de classe do projeto político bolsonarista dividindo o governo Bolsonaro em duas alas: uma “ideológica” e irracional e outra “pragmática” e, portanto, racional.
Um caso exemplar, é o texto de Demétrio Magnoli publicado na Folha de São Paulo ainda no começo de 2019. Em “Para Paulo entender Olavo”[5], Magnoli sustenta que Olavo de Carvalho e Paulo Guedes são partidários de “revoluções” divergentes e se coloca, juntamente com Paulo Guedes, ao lado dos liberais herdeiros do iluminismo, enquanto Jair Bolsonaro e Olavo de Carvalho seriam partidários de “um passado mítico de soberanias estatais absolutas”. Assim, Magnoli apresenta Paulo Guedes como um estranho no ninho da serpente bolsonarista. O que um liberal, iluminista, estaria fazendo em meio a bruxos fascistas? Ao fim do texto, recomenda, para o bem-estar de Paulo, que ele se afaste de Bolsonaro antes que lhe aconteça algum mal.
Dois anos depois, Paulo Guedes vai muito bem no governo Bolsonaro, enquanto olavetes de carteirinha como Abrahan Weintraub e Ernesto Araújo foram obrigados a criar asas e abandonar o ninho. A resolução do mistério é que a “revolução” de Paulo e Olavo era a mesma e foi Demétrio que não entendeu nenhum dos dois. Não por ser incapaz, mas porque não podia declarar aos seus leitores que a sua “revolução”, o seu próprio liberalismo econômico, compartilhado por Paulo Guedes é a razão de ser, é a economia política da “revolução” de Jair Bolsonaro e Olavo de Carvalho.
Estado mínimo e conservadorismo nos costumes foram as palavras de ordem da direita brasileira desde antes do golpe de Estado de 2016. Se voltarmos no tempo, chegaremos à conclusão que eram também os princípios das propostas da União Democrática Nacional (UDN) e do golpe de 1964. Se quisermos voltar ainda mais, podemos perceber que a Primeira República era pouco mais do que conservadorismo nos costumes e liberalismo econômico. Essas duas pautas vão muito bem juntas, pois um Estado conservador e repressivo, disposto a combater violentamente as lutas do proletariado é a ferramenta necessária para a vida de um liberalismo oligárquico e entreguista, disposto a deixar toda a população na mais degradante miséria em prol de um grupo muito pequeno de burgueses. O que a análise de discursos esconde, caro Demétrio, a luta de classes revela.
O tempo em que o liberalismo exerceu um papel emancipatório na história da humanidade foi fugaz, durou o período das revoluções burguesas e, mesmo aí, eivado de elitismo, um caráter antipovo bastante acentuado e, quando no poder, não pestanejou em fazer o Estado intervir devidamente para esmagar qualquer tentativa do proletariado participar da tal “democracia”, como foi o caso do massacre de junho de 1848 na França. Nunca é demais lembrar que, ainda no processo da Revolução Francesa, enquanto os “proto-totalitários” jacobinos aboliram a escravidão nas colônias francesas, os “democrata-liberais” girondinos a restauraram tão logo assumiram o poder.
No que diz respeito particularmente ao aqui e agora, e especificamente a Paulo Guedes, seria difícil encontrar paralelo com outro momento em que o liberalismo representou tão explícitamente a destruição da razão. Paulo Guedes não cansa de dizer que os números da economia irão subir, que ao realizar tal e qual privatização o “Brasil irá decolar” e outras coisas parecidas. Quem não se lembra das falas do Ministro da Economia de que “com R$ 3 bilhões, R$ 4 bilhões ou R$5 bilhões a gente aniquila o coronavírus” ou então que “se fizer muita besteira, o dólar pode ir a R$5”? Ou então suas eternas promessas de crescimento econômico exponencial do país e que a saída da crise econômica que o seu próprio governo colocou o Brasil seria em “V”, bem como tantos outros impropérios que se mostraram extraordinariamente distantes da realidade. Não é difícil para qualquer um que acompanha os discursos do Ministro acreditar que eles funcionam em linha inversamente proporcional à verdade. Quando Paulo Guedes faz uma afirmação, o decorrer dos fatos o responde com uma negação infinita.
Paulo Guedes não pode jamais dizer a verdade, pois suas palavras têm de ser um eterno voto de fé ao capital financeiro. O Brasil tem de parecer um paraíso, tudo aqui tem de ser perfeito e funcionar bem para atrair os credores. E se a realidade trata de dizer o contrário, é necessário que Paulo contradiga a realidade e jogue para o futuro um sucesso que tem como objetivo único propagandear o país como uma bela mercadoria para que as grandes empresas imperialistas se interessem em comprá-lo. O otimismo tem de ser a tônica do discurso voltado para as apostas em cima de apostas, da especulação sem limites que reina no mercado financeiro. Do liberalismo neoclássico de Paulo Guedes aos manuais de auto-ajuda vendidos nas bancas de revistas, a ideia de que “tudo vai bem, tudo legal” e de que “não se pode pensar negativo” é o mito irracionalista que sustenta ideologicamente a permanência de uma sociedade em flagrante decadência e estado de barbárie generalizado [6].
Mas o bolsonarismo é apenas o cume do irracionalismo. É a expressão do nível que a ideologia do imperialismo pode chegar em um país de via de desenvolvimento “prussiano-colonial”. Não é demais lembrar que a submissão dos países desse tipo ao poderio dos países imperialistas esteve ligada historicamente com o baixo nível de desenvolvimento da ciência e da tecnologia, o que ia de encontro com o papel de país agroexportador das suas economias na divisão internacional do trabalho.
Muito pior do que qualquer coisa que Bolsonaro fala ou pensa a respeito de si mesmo, é o que seu governo faz. Nesse sentido, nada deixa mais claro seu obscurantismo do que a verdadeira cruzada contra a educação, a ciência e a cultura promovida por ele desde o primeiro dia de mandato. Trata-se de uma política de desmantelamento de instituições científicas e de falência planejada das universidades e centros de pesquisa.
VI – Os limites ideológicos da razão miserável
Uma terceira categoria de intelectuais brasileiros que pode ser inserida no nosso contexto geral da ideologia dominante marcada pelo irracionalismo são os cientistas de YouTube e TV, Atílas, Pirulas e congêneres, com canais e redes sociais de tamanho considerável na internet e, supostamente, empedernidos defensores da ciência. Uma vez que a razão foi expulsa das ciências humanas (vistas como subjetivistas, “Soft Science”), não é de se surpreender que a coroa da objetividade científica tenha caído na cabeça das ciências da natureza. Famosos por seu papel no combate ao negacionismo científico (principalmente no contexto da pandemia), a divulgação da ciência e de posições a favor do desenvolvimento da ciência brasileira, caracterizam-se também por constantes defesas das parcerias publico-privadas nas universidades públicas e da defesa do financiamento privado (ou público privado) da pesquisa, geralmente sob a alegação do atual contexto de corte de gastos (inevitável?) do Estado brasileiro à ciência. Com um conteúdo de produção intelectual visivelmente empirista, nossos paladinos da ciência quando declaram-se em assuntos sobre a sociedade e a política só conseguem ver resultados imediatos e particulares. A generalidade e a abstração, quando comparecem, só pode ser na forma de números, tabelas e estatísticas, mas jamais de uma teoria que expresse a lógica de funcionamento da sociedade. A ausência de uma análise da formação social brasileira (o que inclui uma análise histórica) bem como a completa ausência de uma crítica da economia política os impedem de ver que o financiamento privado ou público-privado apenas reforça o caráter de economia dependente, agroexportadora, dominada por nações estrangeiras, do Brasil, que em última análise, é a razão principal para o não-desenvolvimento da ciência brasileira e para a reprodução de uma sociabilidade obscurantista, fundamentada em crenças místicas e religiosas.
Assim, esses intelectuais que a priori cumprem trabalho importante na defesa da ciência, cometem o erro de defender justamente a estrutura econômica que sistematicamente bloqueia a ciência brasileira e, acabam com isso, aderindo ao programa econômico-social de nossa burguesia liberal associada ao imperialismo. Ou em outras palavras, acabam aderindo ao programa de Paulo Guedes e Bolsonaro, que é exatamente cortar o orçamento público para obrigar as universidades a buscar financiamento privado e assim submeter toda a produção científica do país aos interesses imediatistas do agronegócio, do capital financeiro e das empresas privadas em geral. Devemos questionar então que tipo de ciência será produzida como consequência de sua completa submissão aos interesses empresariais em troca de financiamento, e especialmente, que impacto isso teria nas ciências humanas que provavelmente passariam a ser financiadas apenas se encontrassem em todas as sociedades e períodos históricos, comprovações cabais do mito irracionalista do empreendedorismo e do self-made-man.
VIII – A Frente Única Anticomunista
Por último, mas não menos importante, é necessário dizer que o elemento de coesão ideológica presente em todas as vertentes dos intelectuais orgânicos de nossas classes dominantes é o anticomunismo. É inacreditável e mesmo escandaloso notar como os discursos de bolsonaristas, pós-modernos, liberais em geral e paladinos da ciência convergem e tornam-se praticamente iguais nesse ponto. Parece já ser um passado esquecido que a cruzada contra o comunismo tenha sido o principal motor da propaganda e das ações do nazi-fascismo, ao mesmo passo que parece ser ignorado que quando todos os democratas tem como bandeira o “combate ao comunismo”, o próprio conteúdo da democracia muda completamente.
Qual é a consequência objetiva de uma “democracia” anticomunista? Antes de qualquer coisa, ela estabelece um limite na liberdade que é o questionamento do capitalismo. Há liberdade, até que o capitalismo seja questionado seriamente como sistema de produção e reprodução da vida social, então a liberdade acaba e o que temos é o “combate ao totalitarismo”, leia-se, a desqualificação no debate público e a perseguição policial aos que ousarem agir contra o capitalismo. Ao pensarmos que o capitalismo é o sistema impulsionador do abismo social entre as classes, da crescente dominação dos monopólios, da predação do meio ambiente, da cada vez maior degradação da vida social, das constantes crises e ondas de desemprego, etc perceberemos, portanto, que o limite dessa democracia é aceitar combater apenas problemas de superfície, sem jamais realmente resolver os problemas essenciais da sociedade e que cada vez mais levam-na à barbárie.
Outro elemento vital do anticomunismo é o medo das massas. A democracia que tem como leitmotiv combater o comunismo não teme verdadeiramente a bota de soldados totalitários esmagando a face humana, seu medo real são os trabalhadores organizados, tomando controle de fábricas e ruas, fazendo impor seus interesses sobre os interesses burgueses, apresentando a todas as outras classes sociais o socialismo como projeto de sociedade antagônico à ordem do Capital. Uma “democracia” anticomunista só pode ser um regime político que não pode ouvir falar de sindicatos combativos, movimentos sociais atuantes e partidos de oposição consequentes e que tiram o seu poder diretamente do povo. Nenhum aspecto de “democracia direta” ou “popular” seria tolerado, pois identificado imediatamente como comunismo. O monopólio privado da educação, da saúde, da imprensa, o alto preço dos alimentos e bens de consumo básicos ou suntuários excluiria a imensa maioria da população de seu acesso, criando um contexto de vida imensamente restritiva. O combate à organização dos trabalhadores para melhorar suas condições de vida, colocaria uma pá de cal em qualquer tipo de liberdade real.
Neste ponto, vemos que o anticomunismo como conteúdo de um regime democrático faz com que ele negue a si mesmo. A democracia faz uma passagem ao seu contrário, vira uma regime oligárquico vil, com política decidia sempre de maneira palaciana e de acordo com os interesses das classes dominantes. O combate à luta organizada da classe trabalhadora insere nessa “democracia” a monstruosa cara da ditadura. Não é um projeto político que parece muito “racional”, nem “científico”, mas é o projeto que, na prática, defendem os liberais, falsos opositores do bolsonarismo e, mesmo sem admitir abertamente, os nossos “iluministas” da atualidade, sempre avessos ao negacionismo e ao fascismo, mas ainda mais ao comunismo, pois partidários dessa “democracia” que viemos a conhecer muito bem e que avança cada dia mais. Que esse tipo de democracia se pareça em demasia com a democracia vigente hoje nos EUA, marcada pelo banditismo e levando o país às portas de uma guerra civil, é certamente uma mera coincidência. E nesse sentido, as palavras de Lukács sobre a democracia americana servem muito bem para nós brasileiros sabermos que tipo de democracia nossas classes dominantes e seus ideólogos querem para o Brasil: “[…] uma democracia que funciona dentro da normalidade, e que pode obter de fato, sem romper formalmente com a democracia, tudo aquilo que Hitler aspirava […] que pode gradualmente evoluir para um sistema de opressão fascista sem ter de sofrer nenhum tipo de mudança formal”.
IX – Conclusão
Esperamos ter mostrado (ao menos em linhas gerais) como o “negacionismo” de nosso tempo não é uma questão de inteligência ou de sanidade mental. Trata-se de um sintoma de um sistema social em cada vez mais avançado estágio de decadência. Os combatentes do fascismo negacionista que levantam como armas a democracia em abstrato, ou a ciência em abstrato, não fazem mais que brandir uma espada de papel, visto que o irracionalismo negado imediatamente, retorna mediado pela apologética direta do capitalismo, sistema irracional por excelência, e pelo anticomunismo visceral que se explicita pelo combate ideológico ao marxismo e pela ojeriza à política de massas, buscando construir um regime político oligarquico. A própria manutenção do Brasil como um país submisso ao imperialismo norte-americano, nesse sentido, pressupõe a destruição do complexo científico, tecnológico e universitário brasileiro. Portanto, hoje, não é possível realmente defender a ciência, a razão, sem defender um projeto de emancipação da sociedade, sem defender o socialismo, sem lutar cotidianamente por ele. Aqui, cabem perfeitamente as palavras de Marx: “é correto que as armas da crítica não podem substituir a crítica das armas, mas a teoria também se torna força material quando se apodera das massas”.
Notas:
[1] Cf. SODRÉ, N. W. Síntese de História da Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980 _____. A Ideologia do Colonialismo: seus reflexos no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Vozes, 1984.
[2] Para toda essa discussão, Cf. LUKÁCS, G. A Destruição da Razão. São Paulo: Instituto Lukács, 2020. Principalmente os capítulos sobre Schelling.
[3] MARX, K. O Capital. São Paulo: Boitempo, 2017. P. 86.
[4] Assim como na Alemanha pré-nazista, o Brasil presenciou o surgimento de uma reescrita da história em forma de mito. Houve, pelas mãos da extrema direita, a criação de uma “história mitológica do Brasil”. Isto é, uma história que não contém nenhuma responsabilidade científica, mas sim uma imagem entusiástica, trágica e maniqueísta da história do Brasil com o objetivo de politizar massas para o fascismo brasileiro. São os livros “politicamente incorretos” da História do Brasil, bem como os documentários produzidos pelo “Brasil Paralelo”. Cf. SOREL, G. Reflexões sobre a Violência. Rio de Janeiro: Vozes, 1993.
[5] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2019/03/para-paulo-entender-olavo.shtml
[6] Hoje sabemos, contudo, que a defesa econômica de Paulo Guedes não era apenas a defesa dos interesses de sua própria classe, mas também de si mesmo. A alta do dólar e a desvalorização do real favoreciam os interesses do agronegócio e dos banqueiros, seria ingenuidade não imaginar que como parte desses burgueses do capital financeiro, Paulo Guedes não buscava enriquecer a si mesmo com offshores no exterior. Ao menos, podemos dizer que Guedes seguiu perfeitamente Adam Smith: ao buscar seus interesses particulares mesquinhos, realizou os interesses universais de sua classe social.
Referencial bibliográfico
COUTINHO, C. N. O Estruturalismo e a Miséria da Razão. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
LUKÁCS, G. A Destruição da Razão. São Paulo: Instituto Lukács, 2020.
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