Esboço de crítica do colonialismo

Por Vinícius dos Santos Junqueira

Diante do colonialismo, da dominação alienadora, o colonizado busca se libertar. Este objetivo só pode se concluir através da violência, devido às características próprias do regime colonial. A violência se expressa por meio da revolta. A mesma só se torna consequente, efetiva, quando está sob uma forma organizada e elaborada. É o programa de descolonização que dá um norte à revolta do colonizado.

INTRODUÇÃO

Este é apenas um breve e sintetizado estudo – baseado na obra de Frantz Fanon – acerca da colonização e da situação colonial. Buscou-se utilizar um nível elevado de abstração a partir de um determinado exemplo ideal do objeto estudado. Não há neste texto qualquer intenção de pôr um ponto final sobre a questão e muito menos arrogar um ineditismo acerca da mesma. Achamos apenas que estas linhas gerais podem funcionar como um passo inicial para uma compreensão e um debate mais aprofundados sobre o colonialismo.

O TERRITÓRIO

A colonização é uma forma específica de dominação. Ela se dá quando uma sociedade se apodera de um território habitado por outra sociedade. Assim, um povo fica submetido a outro, pois não tem mais a posse sobre o espaço geográfico onde realiza sua vida. A colonização se inicia como alienação material. Para isso, o colonizador, alienador em essência, necessita de uma determinada correlação de forças relativa. Ou seja, necessita de uma superioridade material peculiar, que crie as condições para dominar aquele território. Esta superioridade é, antes de tudo, bélica. A mesma pode se originar a partir de uma desigualdade quantitativa ou qualitativa ou ambas ao mesmo tempo. A desigualdade qualitativa que gera uma superioridade bélica provém de uma superioridade material, ou seja, produtiva. Uma baioneta causa mais estrago que um arco e flecha, sendo o processo produtivo da primeira uma composição mais elevada de conhecimentos técnicos e tempo de trabalho. Para colonizar um povo, alienar seu território, é necessário força material superior para poder exercer a dominação.

A colonização se inicia, realmente, como uma guerra. É uma determinada maior força bélica que gera as condições necessárias para essa forma específica de dominação. Só pode haver um colonizador se houver uma desigualdade material. Esta expressa e, ao mesmo tempo, necessita de uma desigualdade resultante de uma correlação de forças relativa. Esta correlação de forças se expressa através da capacidade militar. Para colonizar é preciso uma força armada. No momento do encontro entre um povo e outro o que determina, em última instância, a situação posterior é a disputa entre suas forças militares. Para dominar um povo e mantê-lo petrificado nesta dominação é necessário recorrer a violência. Eis o fato que conduz Fanon a fazer a afirmação de que “o colonialismo […] é violência em estado bruto”[1]. A dominação colonial só é possível mediante a guerra, ao esmagamento da liberdade e soberania daquela antiga sociedade. “Sua primeira confrontação se desenrolou sob o signo da violência e sua coabitação – ou melhor, a exploração do colonizado pelo colono – foi levada a cabo com grande reforço de baionetas e canhões”[2], afirma acertadamente o psiquiatra martinicano.

A TERRA

Determinado território é, em primeira instância, uma determinada totalidade de terras. Levado às últimas consequências, é uma determinada totalidade de um espaço geográfico composto por céus, águas, terras e subsolos. Tomemos como eixo de análise a primeira sentença. A colonização é a alienação de um território, ou seja, de terras determinadas. O território é o espaço geográfico onde um grupo de indivíduos encontra suas condições de vida. É neste espaço que os humanos podem realizar suas condições de existência. Para realizar as mesmas, a sociedade necessita transformar a natureza presente naquele espaço. Essa transformação possui o nome geral e abstrato de trabalho. É através do trabalho produtivo que a sociedade satisfaz suas necessidades. As primeiras necessidades são fisiológicas: comer, beber e se abrigar. A terra é o meio de produção em que se pode produzir comida e construir moradias. Ela é, essencialmente, o meio de produção elementar.

Arar a terra, plantar e colher. Eis os primeiros passos para se constituir uma sociedade. É nesta relação metabólica e dialética com o restante da natureza que os humanos desenvolvem sua organização social. É no território, nas terras, que eles satisfazem suas necessidades de existência, onde podem construir suas condições de vida. A colonização desestrutura completamente a organização social de um povo pois atinge suas condições básicas de existência. Sendo a mesma uma forma de alienação de um determinado território, ela é necessariamente a alienação de suas terras. É tomar para si o meio de produção elementar de um outro povo e impedir seu acesso à possibilidade de desenvolver autonomamente suas condições de existência. Para isso, o colonizador precisa ocupar o território, estender seus tentáculos o mais longe possível, de forma a abranger todas as terras. O meio para realizar essa façanha é o aparato militar, soldados armados com baionetas e canhões. O povo originário irá tentar defender aquilo que lhe garante sua existência, o seu território. “Para a população colonizada o valor mais essencial, por ser o mais concreto, é em primeiro lugar a terra”[3]. Um deseja se apoderar daquele território, o outro deseja mantê-lo sob sua posse. Este embate entre as duas forças opostas, possível colonizador e possível colonizado, se concretiza na guerra. O antagonismo só irá se resolver através da violência.

O TRABALHO

É através do trabalho que os humanos podem produzir coisas que satisfaçam suas necessidades. Alimentos, roupas, moradias, utensílios etc. Para produzir, os mesmos precisam de meios de produção e matérias-primas que possam ser transformadas no processo produtivo. O meio de produção elementar é a terra, além de também fornecer algumas das matérias-primas necessárias para se produzir. A produção dos bens que satisfazem as necessidades sociais se dá através da relação entre os indivíduos daquela determinada sociedade. Homens e mulheres se relacionam para produzir. O trabalho é social. Contudo, há diversas formas de trabalho, ou seja, de relações de produção. As sociedades pré-coloniais – sejam em África, Ásia e América – produziam a riqueza social recorrendo a determinadas relações de produção. Ao mesmo tempo, os meios de produção estavam sob uma forma específica de relação de propriedade.

Os meios de produção podem pertencer a um indivíduo, a uma família ou a uma comunidade. Essas sociedades pré-coloniais anteriormente citadas tinham, em geral, relações comunais de propriedade. Isso significa que tanto os meios de produção quanto os resultados da mesma pertenciam, em geral, à coletividade como um todo. Vimos que a terra é o meio de produção elementar. Conclui-se que a terra era propriedade comum. Os indivíduos necessitavam estabelecer relações uns com os outros para produzir, as relações de produção em torno da terra condicionavam um trabalho comunal. Produção coletiva, apropriação coletiva. Eis uma generalização abstrata das relações de propriedade e produção nas sociedades pré-coloniais. Veremos o que se passa com a colonização.

A alienação do território, ou seja, das terras, é a alienação dos meios elementares de produção. Assim se esquematiza materialmente a colonização. Logo, se aquelas sociedades pré-coloniais possuíam uma organização social específica, constituída por determinadas relações de propriedade e produção, no processo colonizador serão totalmente desestruturadas. O colonialismo destrói as formas originárias de vida pois obstrui o eixo material delas. O povo colonizador possui suas próprias formas de vida, suas próprias relações de produção e propriedade. Ao colonizar outro povo, ele destrói aquela organização social precedente para impor a sua própria organização social, ou para criar uma completamente nova.

As sociedades pré-coloniais produziam o necessário para suprir suas necessidades. Em alguns casos, havendo excedentes, podiam realizar trocas ou outras formas de distribuição dos bens. Ou seja, essas mesmas sociedades produziam valores-de-uso, que não ingressavam necessariamente na esfera da circulação e da troca. Não se produzia para trocar, mas para usar. A produção estava voltada para o valor-de-uso, não para o valor-de-troca. Haviam trocas, porém a produção não estava determinada por elas. Sejamos diretos: a mercadoria não estava generalizada. As pessoas, de forma coletiva, tinham posse sobre os meios de produção e se apropriavam coletivamente dos frutos do trabalho.

Um povo só busca dominar um território estranho se isso lhe trouxer benefícios. Seria sem sentido mover tamanhas energias e forças para outro lugar do Mundo, entrar em guerra com outro povo e não haver um saldo positivo no fim. A colonização só faz sentido se houver um ganho material ao fim do processo, se o colonizador melhorar suas condições de existência, sua vida material. O povo colonizador possui suas próprias formas de vida, de organização social, de relações de propriedade e produção. As sociedades europeias, momentos antes do início do colonialismo, estavam ingressando num desenvolvimento específico dessas formas citadas. A propriedade não era comunal, era privada. A produção estava se voltando para a esfera da circulação, não para o consumo. A mercadoria estava se generalizando e o processo de generalização da mesma se completou, basicamente, no século XIX.

O encontro entre o possível colonizador com o possível colonizado gera contradições incontornáveis. Em cada lado há formas não somente diversas de organização social, como também antagônicas. De um lado, uma força que quer se apossar de determinado território e impor uma forma de organização social que lhe traga um saldo positivo. Do outro, uma força que quer manter o território em questão sob sua posse e preservar suas formas de organização social. Um antagonismo evidente. A questão só será resolvida pela força última, a violência. A história evidencia que o possível colonizador, a força alienadora, derrotou, por meio da violência, os povos originários das colônias. Então ele impõe as formas de organização social que mais lhe beneficiem.

A primeira dessas formas é a escravidão. A mesma já tinha aparecido em outros momentos e outros lugares da história, porém aqui ela ganha particularidades específicas. Primeiro, a violência necessária para começar o processo de escravidão colonial é de dimensões jamais vistas. Segundo: a escravidão, ao longo do tempo, geralmente se realizou como espólio de guerra ou como pagamento de dívida. Já no colonialismo, a escravidão é um projeto elaborado de como organizar sociedades inteiras. Terceiro, o escravo do mundo colonial é uma mercadoria. O escravo é quantificado nas bolsas de valores europeias. Para realizar o empreendimento colonial escravista era necessário destruir as formas originárias de organização social utilizando o máximo de violência contra a resistência dos povos originários. Em última instância, realizar uma captura.

A escravidão era a relação de produção necessária para realizar a Plantation. Este esquema produtivo voltado para a produção de uma imensa massa de produtos agrícolas e minérios necessitava de uma imensa quantidade de força de trabalho. Jornadas de trabalho insanas com ritmos de produção também insanos que conseguissem elevar o nível de produtividade para que tornasse todo esse empreendimento megalomaníaco rentável. Produção, é claro, voltada para satisfazer necessidades da Europa, salivante por café, açúcar, madeira, ouro, prata, banana e outras coisas. Já o proprietário, via em tudo apenas valor-de-troca, dos escravizados até os produtos finais.

A escravidão e o colonialismo produziram um fato inédito. De um lado, um povo de pele branca era proprietário de tudo e apavorava com seu domínio militar o território alheio. Por outro lado, um povo de pele escura estava estancado pelo povo de pele branca, destituído de sua condição humana. O trabalho assumia uma divisão racial. Proprietários “brancos”, não-proprietários “negros/vermelhos/amarelos”. O mundo material estava cindido, um Cisma completo. Os homens tomaram a aparência pelo conteúdo. Somos dominadores porque somos brancos. Vocês são dominados por que são pretos. A cor da pele, a tal da “raça”, se tornou a chave explicativa daquele Cisma. Os povos brancos pareciam estar determinados por alguma lei incompreensível a serem donos do Mundo.

A segunda forma de organização social encontrada pelos colonizadores a manterem os colonizados em sua posição foi o assalariamento. Chegou o fim da escravidão. Porém seus estragos já tinham sido feitos. Esta nova forma de vida não seria capaz de solucionar o Cisma candente e muito menos tinha qualquer intenção de o fazê-lo. O domínio militar sobre o território e a posse sobre os meios de produção continuaram encarnados nos colonizadores, agora já entendidos como brancos. A mercadoria generalizada na Europa se torna Capital e o mesmo se expande sem limites. As grandes corporações internacionais alocam seus capitais nas Colônias. O colonizado continua sendo mera massa de força de trabalho pronta para ser explorada, empobrecida e mantida estanque em seu devido lugar. A alienação da riqueza, eis o ponto chave da colonização.

A RAÇA

“O Mundo colonial é um mundo dividido ao meio”[4]. Duas forças opostas, antagônicas, em uma batalha mortal. O Cisma acontece na chegada de um povo de pele clara com a intenção e o êxito de colonizar um povo de pele escura. A forma de organização social se manifesta em uma divisão racial do trabalho. Os homens olham em sua volta e se apercebem deste fato abominável: brancos dominadores e negros dominados. Eis que surge a maldita da raça. Assim começa a racialização. Em seu conteúdo, ela é material. Uma classe dominante de uma cor, uma classe dominada de outra cor. Porém, ela, a racialização, é de fato subjetiva pois é uma expressão ideológica das relações materiais. É a forma como os seres entendem o Mundo. Racialismo é ideologia.

O colonizador logo trata de justificar sua dominação. Ela se apresenta como determinada por uma lei incompreensível. Às vezes essa lei é religiosa, outras, biológica. “Sou dominante pois assim foi reservado aos brancos pelo direito divino, está gravado nas escrituras”, diz o colonizador. “Sou dominante porque minha genética racial me atribui mais inteligência e sagacidade”, diz novamente o colonizador. O colonizado, negro, passa a assimilar aquela percepção inicial sobre a aparência. Ele passa a querer ser branco. Para se desenvolver, reconquistar sua condição humana, ele precisa se tornar branco. “Para o negro não há senão um destino. E ele é branco”[5]. As formas de apreensão cognitiva do Mundo – a subjetividade – petrifica as duas metafísicas. A ideologia opera em torno e conjuntamente à subjetividade imediata. A raça apresenta um componente material: a divisão social do trabalho gera um Cisma entre pessoas de pele escura e pele clara. Os homens percebem este fato e passam a classificar as pessoas pela cor da pele. Eis a divisão racial do trabalho. A racialização é a ideologia que racionaliza aquele componente material e passa a justificá-lo.

Nas palavras de Fanon “só há complexo de inferioridade após um duplo processo: inicialmente econômico; em seguida pela interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa inferioridade”[6]. O componente material se liga indelevelmente com a consciência. Objetividade e subjetividade trabalham em conjunto. Este processo é violento nos dois sentidos. Ao oprimir e explorar até as últimas consequências o colonizado, agora negro, se materializa uma violência total. Ao ser tachado e paralisado como negro, alienado por completo, está o sujeito sob uma violência total também, pois está impedido de ser Humano e acessar o Universal. “O branco está fechado na sua brancura. O negro na sua negrura”[7]. Eis o duplo narcisismo.

A INFERIORIDADE

O projeto colonial só se efetiva se a força possivelmente colonizadora, que anseia alienar aquele território, for maior que a força possivelmente colonizada, que anseia defender seu território. Quando isto acontece se apresenta uma relação de desigualdade: uma força é superior e outra, inferior. Estamos nos referindo a uma força material, que se inicia no processo de produção. Quem produz baioneta está qualitativamente à frente, em termos de guerra, de quem produz arco e flecha. Vulgarmente podemos chamar esta desigualdade material de desigualdade econômica. Uma força domina a outra. Aí se estabelece uma relação de superioridade e inferioridade. O possivelmente colonizado ao fim deste processo específico se torna colonizado de fato. Então, se encontra em uma posição de inferioridade. Assim se apresenta a mesma em sua forma objetiva.

Esta inferioridade externa, objetiva, é internalizada pelo colonizado. O mesmo passa a se entender como um sujeito inferior. Frente a isso, ele se depara com o colonizador. Este se entende como superior. O colonizador reivindica o próprio Homem, o Sujeito Universal, o Centro, o Modelo, o Ideal, o Concreto Absoluto. Se torna o Exemplo de Ser.  O colonizado está enclausurado como Não-Ser. Ele não é. Está desumanizado, completamente alienado. Todo Ser busca se realizar enquanto sujeito ideal. O colonizado deseja ser o Concreto Absoluto. Mas este está envelopado por uma capa branca. O colonizado em sua ânsia por ser o Sujeito Universal acaba desejando se tornar o colonizador, o branco. Troca o conteúdo pela aparência.

Eis a epidermização da inferioridade. O colonizado internaliza-a e passa acreditar que a única forma de se desalienar é deixar de ser quem é. Se o Ideal é o branco, desejo ser o branco. As duas metafísicas petrificadas diante de nós.

A VIOLÊNCIA

Vimos que a colonização se dá como alienação de um determinado território, já ocupado, como alienação dos meios de produção e matérias-primas deste território. Ela visa aumentar a riqueza material do povo colonizador. Para isso é necessário empreender uma grande quantidade de forças bélicas que destruam a resistência do possível colonizado. A forma de organização social do povo originário deve ser aniquilada para que o colonizador concretize uma nova forma. O resultado de todo esse processo histórico é uma carga indimensionável de violência, objetiva e subjetiva. O colonialismo é violência.

Ele começa com uma guerra total contra o povo originário, visando tomar seu território. A concretização desta guerra é a dominação total. Os tentáculos do aparato militar-coercitivo do povo colonizador se estendem por todas as áreas da Colônia. Aquele que detém o poder visa mantê-lo. Após o primeiro estágio desta guerra total, o colonizador passa a utilizar suas forças para controlar o colonizado. A violência ganha uma nova forma. Torna-se controle social. As duas forças antagônicas, o colonizado e o colonizador, passam a travar uma nova batalha. O primeiro visa destruir esta situação e o segundo visa conservá-la. O colonizador estende suas armas a todos os lugares. O colonizado busca obter suas armas para resistir e avançar.

O colonizado, enclausurado, em sua ânsia por se humanizar, se revolta. Esta assume diversas formas. Em estado latente, o colonizado, negro, quer tomar o lugar do colonizador, branco. Deseja se tornar o dominador. Deseja se vingar da forma mais violenta possível. Esta violência, às vezes, é canalizada contra o seu próprio povo. Mas estas expressões de revolta por parte do colonizado não alcançam sucesso. Ele continua estancado, preso, desumanizado, alienado por completo. A revolta busca uma forma mais elaborada de vir a ser.

O colonizador nunca irá aceitar pacificamente a perda de seu posto. Logo, o processo de desalienação do colonizado, a descolonização, é violento, assim como sua antítese. O colonizado busca organizar sua revolta e deixá-la sofisticada. Sua revolta se torna um programa, com táticas e estratégias. O primeiro objetivo é pôr abaixo a sociedade colonial.  “A descolonização, que se propõe a mudar a ordem do mundo, é, está visto, um programa de desordem absoluta”[8]. Esta revolta, agora sob uma forma organizada em programa, precisa alcançar forças materiais para se realizar. Estas são, necessariamente, forças bélicas. “O colonizado que resolve cumprir este programa, tornar-se o motor que o impulsiona, está preparado sempre para a violência”[9]. Sua forma acabada, de modo geral e como abstração, é o Exército de Libertação. É nele em que a revolta do colonizado se organiza e se coloca em marcha. Eis que surge o processo de desalienação. A descolonização além de transformar o mundo material, realiza uma transformação interior e subjetiva naqueles indivíduos envolvidos. A descolonização é pedagógica, por isso desalienadora e vice-versa. “O homem colonizado encontra a liberdade na e através da violência. A violência ilumina, porque aponta para os meios e para os fins. Ao nível dos indivíduos, a violência é uma força de limpeza. Liberta o homem colonizado do seu complexo de inferioridade[10].

A NAÇÃO

Toda particularidade está inserida em uma totalidade. Toda totalidade é uma particularidade de outra totalidade maior. A totalidade é a unidade das diversas particularidades de um determinado nível. É a unidade no diverso.

Diante do colonialismo, da dominação alienadora, o colonizado busca se libertar. Este objetivo só pode se concluir através da violência, devido às características próprias do regime colonial. A violência se expressa por meio da revolta. A mesma só se torna consequente, efetiva, quando está sob uma forma organizada e elaborada. É o programa de descolonização que dá um norte à revolta do colonizado. Porém ele precisa se corporificar, se materializar. Isto se dá através de uma organização capaz de apresentar uma força bélica, violenta, maior que a do colonizador. Esta organização – em geral, dado o nível de abstração aqui empregado – é o Exército de Libertação.

Ele é o responsável por organizar o povo colonizado e levar a cabo o programa de descolonização. Então ele precisa, evidentemente, criar a unidade entre os indivíduos colonizados. Esta unidade é necessária para recuperar o território por completo. Esta unidade pode ser categorizada abstratamente como Nação. “A imobilidade a que o nativo está condenado só pode ser posta em causa se […] fizer existir a história da nação, a história da descolonização”[11].

Contudo, nem todos os indivíduos colonizados se sentem parte desta totalidade comum. Identidades e interesses particulares se tornam um obstáculo à construção da Nação, ou seja, a unidade no diverso. Tomemos como exemplo a situação em que diversas etnias presentes em um determinado território, mesmo colonizado, se tornam um dos principais problemas a serem resolvidos pelo Exército de Libertação. Em meio a esta contradição, se apresentam algumas tendências. Uma delas é buscar continuar trabalhando pela criação da unidade, insistindo naquilo que une todos os colonizados: a alienação colonial. Outra tendência é se defrontar com aqueles que não se veem parte integrante desta possível unidade. Isto leva evidentemente à Guerra Civil entre o próprio povo colonizado. Esta situação só é possível pela completa desorganização que o colonizador provoca ao dominar em um mesmo espaço geográfico povos diferentes. O Exército de Libertação geralmente reivindica o território completo da Colônia. Mas uma parte deste território pode ser reivindicada por um grupo que não se sente parte da totalidade do Exército de Libertação. A última tendência possível é o Exército de Libertação não reivindicar o território colonial por completo. Isto, evidentemente, não se concretiza em nenhum momento histórico. O trabalho dele é organizar e concretizar materialmente a descolonização. Isso o impele a buscar a unidade no diverso, aqui ainda entendida como Nação.

É neste imbróglio que se encontram os povos colonizados. Forjar no fogo da luta a unidade no diverso. Ou deixar de reivindicar o Estado-Nação como instrumento de descolonização.

 

[1] Fanon, F. (1968). Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro, RJ: Editora Civilização Brasileira. Pág. 46.

[2] Ibid. Pág. 26.

[3] Ibid. Pág. 33.

[4] OLSSON, Gören. 2014. Concerning Violence. Suécia. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=3R49Dx8H9bo&t=453s.

[5] Fanon, F. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador. EDUFBA. Pág. 188.

[6] Ibid. Pág. 28.

[7] Ibid. Pág. 27.

[8] Fanon, F. 1968. Op. cit., pág. 26.

[9] Ibid. Pág. 27.

[10] OLSSON, Gören. 2014. Op. cit.

[11] Ibid.

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