Por Bénédicte Vidaillet*, via Cairn com traduzido por Maria Betânia F. Champagne e revisado por Wael de Oliveira
Resenha do livro A herança política da psicanálise: por uma clínica do real, escrito por Florent Gabarron-Garcia.
Esta é uma obra tão apaixonante quanto salutar. Publicada recentemente pela editora engajada La Lenteur, ela lavra a via das resistências necessárias para conservar acesa a chama daquilo que mantém o ser humano do lado da vida, da liberdade e do desejo, em um mundo dominado pela propagação tecnológica avassaladora, pela normalização gestionária e pelo controle burocrático.
O autor, Florent Gabarron-Garcia, psicanalista, psicólogo clínico e mestre de conferências na Universidade Paris 8, dá continuidade aqui ao trabalho iniciado com sua tese de Psicopatologia e Psicanálise, defendida em 2014. Seu propósito, declinado sob diversos ângulos, visa a restituir à psicanálise sua força subversiva e seu alcance político. O que está em jogo, e que não é pouca coisa, aparece destacado desde o início no prefácio dos editores, que lembram que uma certa psicanálise, cujo predomínio no campo institucional eles lamentam, abandonou há muito tempo toda ideia de transformação social e política, rebaixando todo desejo um pouco subversivo com uma interpretação de imaturidade ou de « recusa da castração » : assim, « se você sonha com abandonar seu chefe ou mudar o mundo, é que você ainda não acabou de resolver seus problemas com papai-mamãe » (p. 12). Palavras que provavelmente farão eco à experiência dos leitores cujo interesse pela ação política e os engajamentos serão regularmente acolhidos com a expressão condescendente de colegas psicanalistas convencidos de que sua própria postura de « recuo » garantiria uma fidelidade ortodoxa à doutrina psicanalítica e totalmente cegos ao fato de que, muito pelo contrário, com sua « neutralidade », engajam-se politicamente no lado da ordem dominante e de sua reprodução.
Os diferentes capítulos do livro ordenam-se em torno de partes que são entradas diferentes no assunto e podem ser lidas de maneira independente, sem deixar de constituir um conjunto coerente. A introdução faz mais do que abrir o assunto e apresentar a articulação da obra: estabelece as bases de uma história política da psicanálise, cuja origem remonta à própria fundação da disciplina, mas foi apagada da história oficial posteriormente transmitida nas principais escolas psicanalíticas, muito influenciada pela releitura ideológica feita por Ernest Jones em sua biografia de Freud. Apoiando-se em inúmeras fontes, Florent Gabarron-Garcia lembra-nos como os psicanalistas do início do século XX se preocupavam com as questões de emancipação, influenciados pela efervescência revolucionária e pelo contexto político nos quais estavam mergulhados. E eis que, de repente, a psicanálise e seus fundadores se animam, apoiam-se na História, restituindo-lhe, assim, toda a sua densidade.
Lembrando que « a concepção social-democrata na qual Freud se situava inscrevia-se, em grande parte, na herança do marxismo » (p. 18), o autor retraça os vínculos estreitos entre as primeiras gerações de analistas e as correntes políticas da época, de Ferenczi, amigo próximo de Freud, muito influenciado primeiramente pela pessoa e pelas ideias de Georg Lukacs, que deixará marcas na história da filosofia marxista, e posteriormente influenciado pelas teorias socialistas de Karl Polanyi, a Hélène Deutsch, próxima de Rosa Luxemburgo, passando por Landauer, Fromm, Fenichel, Reich e muitos outros.
Em 1918, no congresso de Budapeste, Freud pronuncia seu célebre discurso sobre a « psicoterapia popular » : lamentando o fato de a psicanálise dirigir-se, até aquele momento, às « classes sociais favorecidas » e a um « número muito reduzido de doentes », ele formula a esperança de « que, um dia, a consciência social despertará e lembrará à coletividade que os pobres têm os mesmos direitos tanto a uma ajuda psíquica como a uma ajuda cirúrgica » e promove o surgimento de clínicas gratuitas dirigidas por psicanalistas 1. É nesse contexto marcado pelos eventos relativos ao socialismo e ao marxismo na Europa, na esteira das revoluções russas de 1917, da revolução húngara de 1919 e da revolta espartaquista de janeiro de 1919 em Berlim, que nasce a policlínica de Berlim, cuja orientação política é expressa pela própria escolha ortográfica, o «i» de ‘poli’ significando a Cidade e a política. Uma dúzia de clínicas gratuitas surgirão, assim, no espaço de uns 20 anos, por exemplo, em Viena, Londres, Budapeste, Paris, Roma ou… Moscou. É em Moscou, efetivamente, que foi criada a primeira policlínica pública à qual estava ligado um abrigo infantil, em 1921, enquanto os textos de Freud são traduzidos e editados pela biblioteca dos sovietes – esse sucesso da psicanálise na Rússia e depois na União Soviética será depois condenado pela virada reacionária que acontecerá no país no final dos anos 1920.
Enquanto a historiografia oficial tende a reter as posições pessimistas e desiludidas de Freud em 1929, em O mal-estar na cultura, Florent Gabarron-Garcia relembra, de maneira muito oportuna, que o Freud de 1927, no início de O futuro de uma ilusão, declara abster-se ainda de todo julgamento « sobre a grande experiência cultural atualmente em seu início 2 » na União Soviética e critica as culturas nas quais « a satisfação de um certo número de participantes pressupõe a opressão de outros, talvez mesmo da maioria », o que « cria insatisfação em um número expressivo de participantes e incita-os à revolta », culturas que não têm « nenhuma possibilidade de se manterem duravelmente, e nem o merecem, tampouco 3 ». Ele situa a evolução ulterior de Freud em um novo contexto político particular, que vê o desenvolvimento de políticas totalitárias com a ascensão do nazismo e do fascismo na Europa e a influência crescente de Stálin na União Soviética a partir de 1929. Essa análise da evolução das considerações teóricas de Freud sobre a sociedade, a cultura e a política, em função da História extremamente mutável e conflitual do início do século XX, permite descristalizar suas posições mais conhecidas e insuflar novamente uma dialética que mostra o quanto a teoria e a clínica psicanalíticas estão estreitamente ligadas ao contexto político no qual se desenvolvem. Essa dialética atua nos conflitos que atravessam o próprio movimento psicanalítico: as posições assumidas diante do tratamento dado aos analistas judeus, a colaboração na França, ou o movimento revolucionário espanhol, ou as experiências feitas depois da guerra até o final dos anos 1970, que se baseiam na psicanálise como uma crítica da alienação originária do marxismo para repensar a assistência aos pacientes e seu lugar na Cidade (psicoterapia institucional, antipsiquiatria, etc.).
É nesse contexto e com o objetivo de reavivar a legitimidade de uma indexação da psicanálise sobre a política que se situa o trabalho de Florent Gabarron-Garcia. Para fazer isso, ele se baseia em sua experiência na célebre clínica de La Borde e na instituição psiquiátrica « clássica », e em seu próprio percurso de formação em psicanálise em uma escola lacaniana de referência. Ele critica, em primeiro lugar, o dispositivo da “apresentação dos pacientes”, central na transmissão da psicanálise no seio das escolas lacanianas, e que ele acredita que pode levar a um forçamento teórico, pelo fato de apoiar-se em uma concepção estruturalista sistemática da psicose que não leva em conta progressos posteriores do próprio Lacan. Ele também questiona a própria possibilidade de uma abordagem psicanalítica quando ela está inserida em um ambiente psiquiátrico, no qual a violência institucionalizada não é questionada, em relação à função da psiquiatria na sociedade, assim como é ocultada a maneira como a psicose necessita organizar a instituição de tratamento. A problematização crítica da apresentação de pacientes constitui principalmente um ponto de partida de onde o autor nos leva a práticas e lugares nos quais se experimenta precisamente uma outra maneira de conceber a psicose e, consequentemente, de tratar os pacientes, apoiando-se particularmente no debate crítico e metapsicológico iniciado por Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo4.
A parte seguinte é particularmente instrutiva, na medida em que, longe de acentuar as diferenças caricaturais entre os partidários de uma psicanálise com obsessão pela função edipiana, de um lado, e, de outro, os partidários de um anti-Édipo que jogam fora o bebê psicanalítico com a água do banho edipiano, Florent Gabarron-Garcia destaca o diálogo epistemológico entre o pensamento de Lacan, tal como ele se desenvolve, em particular a partir dos anos 1970, e o pensamento de Deleuze et Guattari. A tese do autor, apoiada pela identificação precisa das correspondências e paralelos entre as duas obras, é que “o movimento do “último Lacan” retoma, de certa maneira, a orientação clínica e política de Deleuze e Guattari » (p. 30). O acompanhamento preciso das datas de publicação de O anti-Édipo (1972) e das reflexões de Lacan a partir dessa data permite sustentar essa hipótese de influências cruzadas (não reivindicadas em Lacan). Lacan teoriza muito cedo o Édipo não como um mito universal, mas como um mito contingente, um entre outros possíveis5, o caráter de universalidade restringindo-se à função simbólica. São inúmeras as críticas lacanianas ao Édipo, e o próprio Lacan aconselha prudência quanto ao uso que pode ser feito de suas proposições teóricas sobre a foraclusão; é nele que Deleuze e Guattari vão buscar um dos motivos de sua própria crítica do Édipo, denunciando uma interpretação unilateral e redutora do pensamento de Lacan. A partir dos anos 1970, Lacan inverte a primazia do simbólico em favor do real, o que o levará a desenvolver a ideia do inconsciente real. O anti-Édipo aparece então como uma exploração radical dessa concepção, renovando a abordagem do inconsciente, como inconsciente real de Lacan fazendo eco ao inconsciente “maquínico” ou “produtor” de Deleuze e Guattari. O conceito de “sinthoma” forjado por Lacan no estudo do caso de Joyce permite ultrapassar uma concepção estruturalista da psicose considerada sob um ponto de vista deficitário, como um insucesso, um fracasso essencial. Com Joyce, a constituição subjetiva é um artefato, e não uma questão edipiana. A língua é apreendida como « alíngua » e compreendida inicialmente, mais do que pelo seu lado simbólico, pelo lado do real para o sujeito, do lado do corpo e do prazer.
Como demonstra Florent Gabarron-Garcia ao expor diversos casos de cura de crianças ou de pacientes diagnosticados pela instituição psiquiátrica como “psicóticos”, o fato de apegar-se a uma tal concepção do inconsciente e da loucura tem implicações clínicas importantes. Situar o real no centro da investigação analítica permite uma outra exploração metapsicológica e uma outra prática, diferentes daquelas envolvidas numa concepção estrutural que reifica (ou objetifica) a psicose ao pensá-la como um fracasso.
O primeiro tipo de consequência tem a ver com a orientação da transferência e seu manejo. Com o empreendimento de Deleuze e Guattari, que atribui ao inconsciente um status de produtor, o analista se deixa afetar pela linguagem do delirante. « O mundo delirante não depende de um fracasso ou de uma negatividade, de uma impossibilidade de desejar por “falta da falta”, etc., mas mergulha na imanência dos processos de produção do inconsciente no socius. Como o desejo se fabrica e sustenta um ser que o porta? […] Como as linhas desejantes podem tornar-se linhas de morte? Eis algumas questões de onde se deve partir para entender o delirante e abrir um trabalho com ele » (p. 154). Uma tal concepção vem apoiar o desejo do analista engajado de trabalhar com pacientes em que o rótulo “psicóticos” poderia desencorajar de escutar e tratar.
Outra consequência, a partir do momento em que o inconsciente é o inconsciente real, decorre do fato de o Real também ser o Real da História, com seus dramas, seus horrores, suas contingências. O processo sócio-histórico no qual todo sujeito está mergulhado atravessa o inconsciente de um extremo a outro. A agressividade e a violência não dizem respeito unicamente a uma causalidade intrapsíquica ligada a uma psicogênese relacionada à família, mas também têm a ver com uma causalidade diretamente ligada à história, às condições sócio-históricas que podem referir-se a uma violência de classe, à exploração social, aos efeitos devastadores da guerra, da colonização, etc. Além disso, trata-se também de levar em consideração a maneira como esses elementos podem ser ouvidos e integrados ao trabalho com o paciente. Por fim (e sem esgotar as consequências clínicas e terapêuticas consideradas pelo autor), a concepção do inconsciente aqui defendida leva a reintegrar fortemente o funcionamento das estruturas “de tratamento” que podem fazer eco ao sintoma do paciente. Nesse caso, como aquele que mais delira é também aquele que é mais susceptível de sofrer a violência institucional, há casos em que o sujeito confinado, amarrado, torna-se o sintoma da instituição que, em troca, mantém o sintoma do sujeito. O trabalho do analista passa a ser, então, por um lado, não negar a violência institucional objetiva que se exerce sobre o paciente, mas, por outro, « não perder de vista a análise das razões mais obscuras que acorrentam o paciente à violência desses dispositivos e que o impedem de abandoná-los » (p. 209). O desafio terapêutico passa a ser, então, permitir que o paciente se desembarace desse prazer mortífero em que se encontra prisioneiro, e que mantém o processo repressivo, para apoiar « outros processos de desejo, outros caminhos de subjetivação diferentes dos da lei repressiva » (p. 210).
Uma última palavra se impõe sobre a conclusão da obra que vem prolongar as reflexões iniciadas na introdução. O autor se baseia, dentro do contexto da Rússia do início do século, na análise de revoltas, algumas delas abortadas em razão da renúncia dos próprios insurgentes, assustados pelo alcance de suas ações e não prontos ainda para suportar as mudanças de coordenadas simbólicas que elas implicavam. Ele se interroga então sobre « esse desejo de revolta que, por um certo tempo, tinha feito com que saíssem de sua condição de dominados para se tornarem “sujeitos revolucionários” » (p. 226). Essa é uma questão que a psicanálise dominante não se coloca, a concepção edipianizada da História conduzindo ao descrédito a priori de toda possibilidade de mudança revolucionária. A hipótese do inconsciente real permite, porém, refutar esse descrédito: nenhuma lei estrutural necessita da dominação social. Sendo assim, uma questão pertinente do ponto de vista analítico é perguntar-se por que, em um dado momento, as leis e a violência impostas pelo poder se mostram ineficazes ao ponto de os sujeitos não mais se reconhecem nelas e passarem a contestá-las. Por que, ao contrário, na maior parte do tempo, manifesta-se o desejo de um mestre de apoiar a manutenção da servidão e a reprodução da ordem social por aqueles que sofrem seus efeitos, impedindo assim o surgimento de um outro vínculo social? É aqui que o autor aplica um golpe decisivo ao Édipo, concebido como precisamente o que vem apoiar essa reprodução, fazendo da revolta política legítima contra o poder o equivalente inconsciente da morte do pai, o que a torna, então, impossível. Pelo contrário, o sujeito que coloca em questão a dominação, longe de ter regredido a um estado infantil arcaico, abre em si o caminho de um desejo capaz de perturbar a ordem simbólica e de modificar as condições de sua própria subjetivação. É a via incentivada pela abordagem de Deleuze et Guattari, cuja concepção de um inconsciente produtor e criador destaca o quanto o desejo é capaz de virtualizações que extrapolam o status quo social e permitem experimentar novas configurações políticas sociais. Não há dúvida de que a obra de Florent Gabarron-Garcia vai suscitar, pelo viés da psicanálise, o interesse de leitores sensibilizados pela psicossociologia e pela maneira como esta última se preocupa com os vínculos entre os processos psíquicos e os processos sociais e reflete sobre as questões da alienação e da emancipação, levando em conta sistematicamente os contextos institucionais, organizacionais, sociais e políticos que favorecem uma ou outra.
- S. Freud, « Les voies nouvelles de la thérapeutique psychanalytique », 1919, in La technique psychanalytique, Paris, Puf, 1981, p. 140-141.
- S. Freud, L’avenir d’une illusion, 1927, Paris, Puf, 1995, p. 9.
- Ibid., p. 1
- G. Deleuze et F. Guattari, L’Anti-Œdipe, Paris, Minuit, 1972.
- J. Lacan, Le Séminaire I (1953-1954), Les écrits techniques de Freud, Paris, Le Seuil, 1975.
* Bénédicte Vidaillet é professora na Université Paris-Est Créteil e psicanalista
[Na foto: (A psicanalista e militante comunista Marie Langer nas Brigadas Internacionais, Espanha em 1936)]