Por A. Moraes, via Medium
A partir de indicadores sociais, podemos notar o papel central das relações de dominação patriarcal e colonial na fundação da sociedade brasileira. A necessidade de superar a estrutura legada por elas nos leva a investigar suas origens e mecanismos de alienação, de modo a conduzir de forma acertada e eficaz as lutas por emancipação.
Segundo a concepção materialista, o fator determinante, em última instância, na história é a produção e a reprodução da vida imediata que, no entanto, se apresentam sob duas formas. De um lado, a produção de meios de subsistência, de produtos alimentícios, habitação e instrumentos necessários para isso. De outro lado, a produção do mesmo homem, a reprodução da espécie. A ordem social em que vivem os homens de determinada época histórica e de determinado país está condicionada por esses dois tipos de produção: de um lado, pelo grau de desenvolvimento do trabalho e, de outro, pela família. [1]
O sexo feminino constitui, assim como as pessoas negras, grupos majoritários no Brasil: segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua de 2019, as primeiras correspondem a 51,8% da população brasileira, e 56,2% se declaram como pretos (9,4%) e pardos (46,8%). Considerando sexo e cor, a maior parcela é de mulheres negras, que correspondem a 28,7% do total [2]. O desenvolvimento das lutas de classes em âmbito global e nacional tornou esses grupos, no Brasil, não apenas maiorias, mas maiorias oprimidas, se destacando na estratificação da classe trabalhadora ao assumirem as posições mais precarizadas na divisão do trabalho — veja-se, por exemplo, o baixo valor de sua força de trabalho (não-remunerada, no caso do trabalho doméstico feminino) e sua baixa empregabilidade [a] — e por estarem sujeitas a condições de elevada violência [3] — seja policial, doméstica ou pela negação do direito ao próprio corpo [4]. Visando a emancipar esses e todos os grupos explorados e oprimidos sob a dominação burguesa, precisamos analisar os processos históricos que resultaram em suas condições atuais, investigando os mecanismos de alienação em suas semelhanças e diferenças.
A racialização das pessoas negras e a feminilização das mulheres compartilham o fato de terem marcado a inferioridade em particularidades físicas dos corpos dominados, promovendo o que o psiquiatra martinicano Frantz Fanon chamou de interiorização ou, no caso das pessoas negras, de “epidermização dessa inferioridade” [5]. A interiorização, ressalta Fanon, decorre de um processo econômico que, no caso dos negros, remonta ao empreendimento colonial europeu de fins do século XV, na fase inicial de desenvolvimento do capitalismo (a “assim chamada” acumulação primitiva de capital [6]). A violenta desumanização constitutiva do processo de racialização, que aliena os colonizados de seus corpos e de sua história [b], possibilitou o saque de recursos naturais e o domínio de povos inteiros pelas nações europeias. A invasão da América, com o extermínio de milhões de nativos, e o sequestro de contingentes gigantescos da África para trabalho escravo definiram bases fundamentais sobre as quais se desenvolveria a sociedade brasileira.
É importante notar, no entanto, que a marcação da inferioridade em traços biológicos das “raças” colonizadas teve a função histórica de dar racionalidade — primeiro religiosa, depois pseudocientífica — à exploração, em outros povos, de uma propriedade universal do ser humano: a força de trabalho. A partir do empreendimento colonial, estabeleceu-se uma diferenciação social baseada nas particularidades físicas de colonizadores e colonizados que determina diretamnte as condições fisiológicas, psicológicas e sociais dos dominados; todavia, fora de condicionantes históricos, os traços biológicos envolvidos no processo de racialização assumem pouca ou nenhuma relevância para os indivíduos de cada grupo [c]. Sendo assim, é possível vislumbrar, na superação radical da sociedade burguesa racializada, uma nova relação entre os seres humanos na qual as diferenças fenotípicas percam o caráter de marcador social e não influenciem qualquer aspecto da vida.
A inferiorização do sexo feminino, por outro lado, se desenvolveu com vista ao controle masculino de uma característica exclusiva da fêmea humana: a capacidade reprodutiva. A dominação do corpo da mulher consistiu, há cerca de 5 mil anos [7], em uma necessidade histórica das surgentes sociedades patriarcais, se consolidando como estrutura social básica a partir de então. Friedrich Engels, em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, apresenta a domesticação de animais e a criação de gado como elementos centrais do desbalanceamento de poder entre mulheres e homens nas famílias pré-monogâmicas, já que a fartura proveniente desse desenvolvimento das forças produtivas conferiria ao homem — proprietário dos rebanhos e das ferramentas correlatas segundo a divisão sexual do trabalho de então — maior relevância dentro da família [8]. A impossibilidade de afirmar a paternidade da prole devida à frouxidão dos laços conjugais era um obstáculo à transmissão hereditária das novas riquezas, e o relevo social recém-adquirido pelos homens permitiu que se promovesse a transição da linhagem materna para a paterna, tornando imperativo o controle da sexualidade da mulher e o estabelecimento da monogamia:
[A família monogâmica] baseia-se no domínio do homem com a finalidade expressa de procriar filhos cuja paternidade fosse indiscutível e essa paternidade é exigida porque os filhos deverão tomar posse dos bens paternos, na qualidade de herdeiros diretos. A família monogâmica se diferencia do casamento pré-monogâmico por uma solidez maior dos laços conjugais que já não podem ser rompidos por vontade de qualquer das partes. Agora, como regra, só o homem pode rompê-los e repudiar sua mulher. Ao homem, igualmente, é concedido o direito à infidelidade conjugal, sancionado ao menos pelo costume […], e esse direito se exerce cada vez mais amplamente, à medida que se processa o desenvolvimento social. Quando a mulher, por acaso, recorda as antigas práticas sexuais e tenta renová-las, é punida mais rigorosamente do que nunca. [9]
Para assegurar a fidelidade da mulher e, por conseguinte, a paternidade dos filhos, a mulher é entregue incondicionalmente ao poder do homem. Mesmo que ele a mate, não faz mais que exercer um direito seu. [10]
A subjugação da mulher pelo homem, com a consolidação do patriarcado e da família monogâmica, inaugurou a era histórica das sociedades antagônicas, das quais se tornou, segundo Engels, a “forma celular”:
Foi a primeira forma de família que não se baseava em condições naturais, mas em condições econômicas e, de modo específico, no triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva que havia surgido espontaneamente. Os gregos proclamavam abertamente que os únicos objetivos da monogamia eram o domínio do homem na família e a procriação de filhos que só pudessem ser seus e que estavam destinados a herdar suas riquezas. […] A monogamia, portanto, não entra de modo algum na história como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como a forma mais elevada de casamento. Pelo contrário, surge sob a forma de subjugação de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos, ignorado, até então, em toda a pré-história. Num velho manuscrito inédito, redigido em 1846 por Marx e por mim, encontro o seguinte: “A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação de filhos”. Hoje posso acrescentar que a primeira oposição de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher, na monogamia e que a primeira opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino pelo masculino. A monogamia foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, inaugura, juntamente com a escravidão e as riquezas privadas, aquele período que dura até nossos dias, no qual cada progresso é simultaneamente um relativo retrocesso e no qual o bem-estar e o desenvolvimento de uns se realizam à custa da dor e da repressão de outros. Ela é a forma celular da sociedade civilizada, na qual já podemos estudar a natureza das oposições e das contradições que atingem seu pleno desenvolvimento nessa sociedade. [11]
E cita Marx:
“A família moderna contém em germe não apenas a escravidão (servitus) como também a servidão, pois, desde o começo, está relacionada aos serviços da agricultura. Ela contém em si, em miniatura, todos os antagonismos que se desenvolverão mais tarde na sociedade e em seu Estado.” [12]
Os fundadores do materialismo histórico encontraram na hierarquização dos sexos a origem das sociedades de classes, tendo a patrilinearidade sido apontada por Engels como “a derrota do sexo feminino na história universal”:
O homem tomou posse também da direção da casa, ao passo que a mulher foi degradada, convertida em servidora, em escrava do prazer do homem e em mero instrumento de reprodução. [13]
Nota-se que a dominação das mulheres pelos homens se desenvolveu com vista à sua biologia particular, sendo impossível superar sua condição sem levar esse fato em questão. Mais do que isso, a dominância patriarcal não poderia sair mais fortalecida ao borrarem-se as diferenças entre dominador e dominada, entre agressor e agredida, entre violador e violada. As particularidades biológicas femininas, diferentemente dos fenótipos, levam a experiências que independem do momento histórico e da sociedade em que estão inseridas: a menstruação, a gestação, o parto, o puerpério, a amamentação, a menopausa, o metabolismo hormonal, a compleição e todas outras experiências e particularidades das fêmeas condicionam suas necessidades fisiológicas seja em uma sociedade pré-patriarcal, patriarcal ou pós-patriarcal. Se após a superação de sua condição inferiorizada as particularidades biológicas seguirão determinando elementos da vida das mulheres, desconsiderá-las hoje, enquanto vigora o sistema que as domina, violenta, mutila e assassina, assume o valor de uma agressão direta a sua existência e resistência, um apagamento das múltiplas formas de violência direcionadas especificamente contra as mulheres. As palavras de Engels, de 1891, não perderam relevância:
Esse rebaixamento da condição da mulher, tal como aparece abertamente sobretudo entre os gregos dos tempos heroicos e mais ainda dos tempos clássicos, tem sido gradualmente retocado, dissimulado e, em alguns lugares, até revestido de formas mais suaves, mas de modo algum eliminado. [14]
Dadas a longevidade e a onipresença do patriarcado enquanto estrutura social básica ao redor do mundo — qualquer que seja o projeto político, o modelo econômico ou a matriz cultural —, a condição da mulher não pode ser tratada como um detalhe ou uma questão menor por aquelas e aqueles que buscam a emancipação completa da humanidade. Não é à toa que V. I. Lênin tenha se dedicado profundamente, desde o início da década de 1910 e ainda mais destacadamente após a Revolução de Outubro, à agitação em torno da organização política e da necessidade de emancipação das mulheres para a construção da nova sociedade:
Infelizmente, ainda pode dizer-se de muitos companheiros: “Raspa um comunista e encontrarás um filisteu!” Evidentemente, deve-se raspar no ponto sensível, em sua concepção sobre a mulher. […] A vida doméstica de uma mulher constitui um sacrifício diário, feito por mil ninharias. A velha supremacia do homem sobrevive em segredo. […] Devemos varrer por completo a velha ideia do “patrão”, tanto no Partido, como entre as massas. É uma tarefa política nossa não menos importante que a tarefa urgente e necessária de criar um núcleo dirigente de homens e mulheres, bem preparados teórica e praticamente para desenvolver entre as mulheres uma atividade de Partido. [15]
O patriarcado é a base sobre a qual se desenvolveram todas as sociedades de classes, o modo de reprodução da vida a partir do qual se desenvolveu o modo de produção capitalista. É dever de todas e todos nós lutar contra toda forma ideológica de encobrimento das dinâmicas patriarcais de exploração, contrapondo com a perspectiva materialista da história as concepções difundidas pelo senso comum liberal. A emancipação das mulheres exige uma análise concreta de nossa realidade, e o fim da exploração de um ser humano por outro não poderá se realizar sem que se tornem classe para si aquelas que foram as primeiras escravizadas.
A democracia, inclusive a democracia para aqueles que foram oprimidos pelo capitalismo, incluindo o sexo oprimido, não é suficiente para nós. […] A principal tarefa [do movimento operário feminino] é colocar a mulher como parte constitutiva do trabalho socialmente produtivo, libertá-las da “escravidão doméstica”, libertá-las da estupidificação e da humilhação que as subjugam ao eterno cuidado da cozinha, do berçário. Essa luta será longa e exigirá uma alteração radical tanto dos costumes quanto da moral social. Mas isso, no fim, levará ao triunfo completo do comunismo. [16]
Notas
[a] As tabelas a seguir apresentam dados de rendimento médio e ocupação da PNAD Contínua do 4º trimestre de 2021 [17]:
Segundo a metodologia do IBGE, adolescentes em idade escolar, universitários dedicados somente a estudos, donas de casa que não trabalham fora e aposentados constituem a parcela fora da força de trabalho. As pessoas desocupadas são aquelas disponíveis para trabalho, mas que não encontram oportunidade [18]. Os maiores percentuais de presença na força de trabalho e empregabilidade são apresentados por pessoas brancas (à exceção do segundo critério, no qual pessoas pardas apresentam um índice levemente superior) e homens. O altíssimo percentual de mulheres fora da força de trabalho (duas vezes o de homens e metade do total de mulheres), refletindo a centralidade da dominação patriarcal na sociedade brasileira, mostra que uma análise concreta de nossa realidade não pode se esquivar da desigualdade histórica entre os sexos.
[b] Diz Fanon, em Os condenados da Terra:
Talvez não tenha sido suficientemente demonstrado que o colonialismo não se contenta de impor sua lei ao presente e ao futuro do país dominado. Ao colonialismo não basta encerrar o povo em suas malhas, esvaziar o cérebro colonizado de toda forma e todo conteúdo. Por uma espécie perversão da lógica, ele se orienta para o passado do povo oprimido, deforma-o, desfigura-o, aniquila-o. […] Quando refletimos nos esforços empregados para provocar a alienação cultural tão característica da época colonial, compreendemos que nada foi feito por acaso e que o resultado global pretendido pelo domínio colonial era convencer os indígenas de que o colonialismo devia arrancá-los das trevas. O resultado, conscientemente procurado pelo colonialismo, era meter na cabeça dos indígenas que a partida do colono significaria para eles o retorno à barbárie, ao aviltamento, à animalização. [19]
[c] Isso explica por quê a racialização não é definida apenas pela cor da pele, e sim pela relação de poder e dominação entre povos. Povos originários de todo o mundo, chineses, eurasiáticos, indochineses, muçulmanos e outros povos não-brancos sofrem da racialização, que toma em muitos casos elementos culturais para legitimar a dominação e o extermínio. Vale lembrar que os irlandeses, de tez branca, são um povo historicamente brutalizado e colonizado pelos ingleses.
Referências
[1] Friedrich Engels. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Prefácio à primeira edição, de 1884. Lafonte, p. 10. São Paulo, 2020. Grifo nosso.
[2] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Tabela 6408 — População residente, por sexo e cor ou raça. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua anual, 2019. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/6408.
[3] Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da Violência 2021. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/publicacoes.
[4] Andrea Dip. Aborto inseguro é das principais causas de morte materna e mulheres negras sofrem mais. Agência Pública, 28 mai. 2021. Disponível em: https://apublica.org/2021/05/aborto-inseguro-e-das-principais-causas-de-morte-materna-e-mulheres-negras-sofrem-mais/.
[5] Frantz Fanon. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA, p. 28. Salvador, 2008 [1952]. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/05/Frantz_Fanon_Pele_negra_mascaras_brancas.pdf.
[6] Karl Marx. O capital. Crítica da economia política. Nova Cultural, 2ª ed., v. 1, t. 2, p. 261 et seq. São Paulo, 1985 [1867].
[7] Heleieth Saffioti. Gênero, patriarcado, violência. Expressão Popular, 2ª reimpressão, p. 60. São Paulo, 2011 [2004].
[8] Friedrich Engels. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Lafonte, p. 75–8. São Paulo, 2020 [1891].
[9] Ibid., p. 85. Grifos nossos.
[10] Ibid., p. 80. Grifo nosso.
[11] Ibid., p. 89. Grifos nossos.
[12] Ibid., p. 79. Grifo nosso.
[13] Ibid., p. 78. Grifo nosso.
[14] Ibid., p. 79. Grifo nosso.
[15] Vladimir Ilitch Lênin citado por Clara Zetkin. Lênin e o movimento feminino (1920). Em: O socialismo e a emancipação da mulher. Editorial Vitória, 1956. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/zetkin/1920/mes/lenin.htm.
[16] Vladimir Ilitch Lênin. Sobre o Dia Internacional das Mulheres. Pravda, 4 mar. 1920. Em: A emancipação das mulheres e a revolução proletária. LavraPalavra Editorial, 1ª ed, p. 140. São Paulo, 2021.
[17] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. PNAD Contínua — Divulgação Trimestral — 4º trimestre 2021. Tabelas 5436, 6405, 4093 e 6402. 24 fev. 2022. Disponíveis em: https://sidra.ibge.gov.br/home/pnadct/brasil.
[18] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desemprego. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php.
[19] Frantz Fanon. Os condenados da Terra. Civilização Brasileira, p. 175. Rio de Janeiro, 1968 [1961].