Por Jorge Alemán, traduzido por Maria Caroline C. Gomes
Durante o século XX aconteceu uma experiência inédita que mostrou e deixou definitivamente claro um aspecto que ligava a organização coletiva com o terror, o chamado totalitarismo. Além das diferentes análises que tentaram interpretá-lo em sua verdadeira essência, quase todos concordam que essa formação histórica, admitindo a diferença crucial entre o stalinismo e o nacional socialismo, tenta garantir sua coesão, sua plenitude como identidade, seu fechamento como sociedade consistente e realizado, desencadeando uma lógica de terror e eliminação de toda existência que é percebida como uma ameaça à totalidade alcançada.
Depois de Aristóteles, a grande invenção política moderna foi o totalitarismo, como um estado de terror capaz de capturar a própria linguagem em suas redes. Dessa experiência sinistra da política surgiram diversos pensadores que tentaram pensar a democracia como o reverso autêntico e a cura do totalitarismo, como a verdadeira prevenção e “cura” da vocação totalitária. Para esses autores, a democracia como tal deveria ser apresentada como uma estrutura parcial, sempre melhorável, inacabada e constituída a partir de um vazio que não poderia ser preenchido ou fechado por um líder ou uma lei racial ou uma lei “científica da História”. Assim, as democracias ocidentais falaram por meio de seus representantes o idioma favorito, tanto à esquerda quanto à direita, do antitotalitarismo.
Mas nesta nova mutação do Capitalismo, que chamamos de Neoliberalismo, a disjunção totalitarismo ou democracia tornou-se opaca e mascara uma nova questão, de que as verdadeiras decisões tomadas pelos mercados nunca são votadas, e que o é o Neoliberalismo que funciona como um dispositivo de pretensões totalizantes, tanto tentando fechar qualquer lacuna social que mostre a inevitável heterogeneidade do social, como negando qualquer antagonismo com o nome de “greta”, “tensão” e, finalmente, denunciando como “totalitárias” as experiências populares que, por desejarem não seguir os passos do Mestre corporativo, precisam sustenta-se em um discurso ideológico que exige uma militância social que vai além da vida institucional, vida que, até o tempo das experiências populares contra hegemônicas, desmaiava em uma imobilidade inerte.
Um exemplo claro de tudo isso é o atual governo argentino, que se anunciou como um governo “liberal”, “republicano” e democraticamente inspirado pelos tons da autoajuda e dos coaches. Apenas alguns dias foram suficientes para observar a verdade do que estava em jogo. Primeiro, seus mercenários midiáticos das grandes correntes se encarregaram de mostrar o governo popular como totalitário, preparando assim a deslegitimação pertinente que lhes permitiria fazer qualquer coisa, reprimir trabalhadores na rua como faziam anos atrás, atacar contra os centros de direitos humanos com ameaças de bomba, apresentar os intelectuais e artistas que apoiaram o projeto popular anterior como abduzidos (usando a adesão a Hitler como fenômeno explicativo) ou em todo caso contratados pelo Estado. Por isso, como estão desmantelando um Estado totalitário, que já havia construído um relato sobre sua aventura, a intenção ilimitada de destruí-lo se manifesta em toda a sua potência, mesmo sem calcular as próprias condições de governabilidade, que o projeto neoliberal ainda tem que demonstrar.
De qualquer forma, devido às exigências de segurança e aos protocolos de controle que a governança neoliberal exige, se produziu uma transformação perversa da oposição entre totalitarismo e democracia. Agora é o Neoliberalismo, cujo verdadeiro funcionamento é o de um novo “estado de exceção”, que tendencialmente não poderá ser regulado democraticamente, que exibe sua vocação totalitária à maneira de um festival, acusando qualquer experiência que deseje de ser totalitária, e já não ataca a propriedade privada ou incentiva a propriedade coletiva, inclusive aqueles projetos populares que só desejavam a existência da inclusão social.
Que os ricos nunca ataquem contra eles e votem em quem sabe protegê-los e um grande segmento da população se renda ao projeto neoliberal, não é alheio ao que temos invocado aqui. O Neoliberalismo seduz e aprisiona com o ilimitado, com o começo absoluto, com o presente permanente da TV, com a imediatez sem rodeios das mídias técnicas e com um novo tipo de identificação próprio da pulsão de morte em sua expansão democrática, podendo fazer-me um grande dano, inclusive perder tudo para destruir o outro. Fazer a vítima para matar, e assim o novo governo neoliberal argentino chama de “amor” que o suposto totalitarismo anterior não entendia por que assumiu confrontos, enquanto preparava a devastação geral.
O capitalismo em sua forma histórica neoliberal funciona como um estado de exceção sem golpe militar. A partir de regras e procedimentos de aparência institucional, a democracia é progressivamente destruída como sede da soberania popular. Os pensadores que apresentam um nó estrutural entre democracia e capitalismo deveriam rever sua posição. O capitalismo precisa cada vez menos de democracia, se entendermos por ela a possibilidade de inventar a partir do comum diferentes práticas que permitam a emergência do sujeito e não da fábrica neoliberal de subjetividades, comandada apenas pelo mais de gozar. Nos planos neoliberais cada um imagina realizar sua própria subjetividade e, ao mesmo tempo, homogeneizar e nivelar tudo, incluindo procedimentos repressivos de diferentes profundidades. Vamos olhar ao nosso redor.
Origem do texto: Horizontes neoliberales en la subjetividad. Olivos: Grama Ediciones, 2016.
* Maria Caroline C. Gomes é Psicanalista e mestranda em psicologia pela UFSJ. E-mail: mcarollinec@gmail.com