Por Pierre Macherey, traduzido por Reginaldo Gomes, via Radical Philosophy.
A tradução a seguir foi feita a partir da tradução para inglês publicada na Radical Philosophy com cotejamento do texto original em francês, o que permitiu o acréscimo de algumas notas de rodapé que o tradutor para o inglês optou por não traduzir. É importante que o leitor saiba que a edição base da tradução, publicada na revista Radical Philosophy, é uma versão reduzida do texto. – Nota do tradutor.
O texto que Althusser publicou em 1970 sob o título “Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado”, onde ele expõe a tese da interpelação do indivíduo como sujeito é, sem dúvida, um dos seus textos mais inovadores, mas é também particularmente desconcertante: sua exposição, ao explorar uma retórica que combina elipses e força bruta, acaba construindo um enigma, que o próprio leitor é deixado para decifrar. É em um esforço para ajudar nessa descriptografia que tentaremos confrontar esse texto com Pele negra, máscaras brancas[1], publicado cerca de vinte anos antes. Althusser e Fanon direcionam suas respectivas análises em duas fórmulas de interpelação – “Olhe, um negro!” (Fanon), “Ei, você aí!” (Althusser) – e é interessante comparar uma com a outra como modo de realçar o contraste entre essas duas maneiras de abordar o problema da subjetivação [subjectivation][2].
Ideologia
Vamos primeiro ver como, no texto de Althusser, o chamado “ei, você aí!” é introduzido e interpretado. Tomado em toda a sua trajetória, o raciocínio utilizado no texto – que, não devemos nunca esquecer, é lacunar, mesmo sistematicamente lacunar, se assim podemos dizer[3] – parte de uma tese sobre a reprodução social (“toda formação social para existir, ao mesmo tempo que produz, e para poder produzir, deve reproduzir as condições de sua produção”)[4] para uma tese sobre a ideologia (“a reprodução da qualificação da força de trabalho se assegura em e sob as formas de submissão ideológica”)[5], e a partir daí passamos para uma tese sobre o sujeito (“a ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos”)[6]. É, portanto, o conceito de sujeição ideológica que constitui o pivô dessa sequência argumentativa: a ideologia assujeita, a sua função é assujeitar, desdobrar o processo de subjetivação.
Ao apresentar tudo isso na forma de teses propostas para discussão, Althusser sabia que isso era equivalente a renovar o conceito de ideologia a partir do zero e a lançar uma luz sobre a ideologia que não pode ser encontrada lendo os escritos clássicos de Marx ou seus comentários tradicionais: no que diz respeito à questão da ideologia, a tradição, como Althusser a vê, está de fato encerrada em um impasse. Por que a concepção tradicional de ideologia é insatisfatória? Porque acaba por concebê-la em um sentido defeituoso, por fim, negativo; desse ponto de vista, a ideologia é definida pelo que não é, pelo que deixa de ser, ou, dito de outra forma, pela distância que guarda do real e da sua materialidade, tornando-se um tecido de ilusões, uma cortina de fumaça: nessa perspectiva, a ideologia, como mero “reflexo”, não participa efetivamente do processo de produção social, mas ela se limita a propor, após o fato, uma versão invertida, mistificada, imaginária, que mascara os problemas reais. O que Althusser busca, por fim, é rematerializar a ideologia[7] [rematérialiser l’idéologie], que é a condição sob a qual podemos desenvolver uma concepção positiva dela como um agente efetivo do processo de reprodução social no qual ela está diretamente implicada.
Agora, para atingir esse fim, devemos nos livrar de dois pressupostos sobre os quais repousa a concepção defeituosa da ideologia: o primeiro consiste em privilegiar uma concepção puramente representacional da ideologia que a identifica como uma visão de mundo; o segundo confina as intervenções da ideologia a um papel puramente reativo e repressivo, que a mantém atrás do real e reforça sua caracterização como improdutiva.
Em primeiro lugar, Althusser se propõe a mostrar que, ao contrário do que sugere a palavra que serve para designá-la, a ideologia não se reduz a um sistema de ideias, dominantes ou dominadas, que não muda nada fundamentalmente. É isso que se entende – de uma maneira que, devemos dizer, é obscura à primeira vista – pela decisão de que, ao invés de enfocar as ideologias como concatenações [agencements] de representações, devemos perseguir a questão contra a corrente, a um nível primordial onde o que estamos tratando não é mais esta ou aquela formação ideológica particular, mas a ideologia como tal, “ideologia em geral”, sobre a qual Althusser afirma que “não tem história” e que exibe uma dimensão “oni-histórica”.[8] Em um esforço para rematerializar a ideologia, e reinseri-la no processo de produção e reprodução social, essa maneira de proceder é estranha à primeira vista, na medida em que se refere a uma entidade, a “ideologia em geral”, que se situa em um nível de abstração tal que parece ultrapassar até mesmo a concepção tradicional de distanciar a ideologia do real. O que Althusser ganhar ao falar de ideologia em geral? Ele está tentando fazer um deslocamento da questão da ideologia, propriamente para mudar o seu terreno. Duas hipóteses podem ser apresentadas para caracterizar essa mudança.
Para começar, com referência à categoria de “continente” que desempenha um papel central na epistemologia de Althusser, podemos supor que sua intenção é extrair a questão da ideologia do continente da “história” – no qual foi inscrita pela sua redução a um mero conjunto de concepções de mundo, condenada a seguir as vicissitudes da evolução histórica e comprometida com os conflitos do dia a dia – de modo a transportá-la para outro continente, o continente do “inconsciente”:
nossa proposição: a ideologia não tem história pode e deve (e de uma forma que nada tem de arbitrária, mas que é pelo contrário teoricamente necessária, pois há um vínculo orgânico entre as duas proposições) ser diretamente relacionada à proposição de Freud de que o inconsciente é eterno, isto é, não tem história.[9]
Ao estabelecer essa relação entre ideologia em geral e o inconsciente, e ao enfatizar energicamente, como ele faz aqui, o caráter “necessário” dessa relação, Althusser prepara a concepção “subjetivante” da ideologia que introduzirá um pouco mais tarde, segundo a qual a intervenção da ideologia no processo de reprodução social se reduz à constituição dos indivíduos como sujeitos, constituição para a qual a cena da interpelação constitui a metáfora.
Uma segunda hipótese, que de forma alguma é uma alternativa à precedente: ao substituir uma consideração das ideologias históricas pela da ideologia em geral, que não tem história, Althusser passa de uma concepção gnoseológica, puramente representacional, da ideologia para uma concepção que pode ser chamada de existencial. A ideologia não é uma certa maneira de representar o que existe, historicamente condicionada, mas uma certa maneira de ser ou de fazer ser [faire être] que constitui um incondicionado histórico (Althusser, no entanto, especifica: no horizonte pertencente à história das sociedades de classes).[10]
Aqui, novamente, com a sensação de tatear seu caminho para o desconhecido, ele faz uma declaração um tanto sibilina, que exige a descriptografia:
não são as suas condições reais de existência, seu mundo real que os ‘homens’ ‘se representam’ na ideologia, o que é nelas representado é, antes de mais nada, a sua relação com as suas condições reais de existência. É esta relação que está no centro de toda representação ideológica, e portanto imaginária do mundo real.[11]
Existem, portanto, representações ideológicas, mas os portadores dessas representações não são, em caso nenhum, seus autores responsáveis; “algo é representado para eles”, que é a sua relação com as suas condições de existência. Essa relação é a causa das deformações que acompanham essas representações e, nesse sentido, é imaginária ou pelo menos produtora de efeitos situados no plano do imaginário; mas, por mais imaginário que seja, não é menos real, na medida em que é a forma necessária segundo a qual as condições de vida dos homens se representam, ou talvez seja melhor dizer, se apresentam à consciência, ou seja, para a consciência dos sujeitos cuja admissão devem obrigar. Em outras palavras, por trás de todas essas representações, há, em sua fonte, um processo de apresentação que, para retornar à fórmula que empregamos anteriormente, é uma certa maneira de estar no mundo do qual a ideologia é, em última instância, a causa ou o princípio de condução: essa maneira de estar no mundo é ser-sujeito. A ideologia em geral nada mais é do que esse processo que, segundo a primeira hipótese, mantém uma relação originária com o inconsciente e, consequentemente, é oni-histórica. Se existem representações ideológicas, e se essas representações são imaginárias, é, por assim dizer, no final do processo: elas são os resultados que o processo de ideologização produz no final de seu funcionamento; esses resultados são afetados por um condicionamento histórico já na chegada, mas o processo que lhe deu origem é encenado em outro lugar, que não no terreno da história. Desse ponto de vista, deve-se admitir que a ideologia, antes de assumir a forma de um sistema de visões teóricas, é um comportamento prático, um habitus, poderíamos dizer, para falar como Bourdieu: é por isso que, mesmo que produza efeitos que são imaginários e, como tais, apresentem conotações históricas, é algo totalmente real, como um processo que se desenrola em um outro plano que não o da história ou o da consciência; ele se desenrola no plano do inconsciente, que, por sua vez, não tem história. Então, a ideologia, entenda-se a ideologia como tal, não é, portanto, da ordem da representação, ainda que, no final do processo, se manifeste à consciência na forma de representações: a ideologia não deve ser reduzida a essas manifestações que mantêm uma relação distorcida e, portanto, negativamente marcada com o real; mas deve ser concebida, de um ponto de vista positivo, como o próprio processo, totalmente real, que está na origem dessas manifestações na consciência, a saber, o processo de subjetivação.
Dado este primeiro ponto, passemos ao segundo pressuposto, que diz respeito à concepção da ideologia como reativa e repressiva. No artigo publicado na La Pensée em 1970, e mais tarde reimpresso sem modificações na coleção Positions, o tema é abordado apenas de passagem; no manuscrito original do qual o texto foi extraído, sob o título de “Représsion et idéologie”, entretanto, ele é o objeto de uma longa discussão, que se segue imediatamente a passagem que explica como a ideologia não tem história. Esse desenvolvimento começa da seguinte maneira:
A vantagem dessa teoria da ideologia… é mostrar-nos concretamente como “funciona” a ideologia em seu nível mais concreto, no nível dos “sujeitos” individuais, isto é, dos homens tais como existem, em sua individualidade concreta, em seu trabalho, sua vida cotidiana, seus atos, seus compromissos, suas hesitações, suas dúvidas, assim como em suas mais imediatas evidências.[12]
A referência ao concreto enfatiza, por contraste, o caráter abstrato da concepção repressiva da ideologia, que a reduz a obstáculos [blocages] que supostamente desviam os agentes históricos do pensamento e, eventualmente, da ação em um sentido determinado. Mas a ideologia, sob a condição de ser rematerializada, se apresenta, não de uma maneira restritiva e reativa e consequentemente defeituosa, mas, pelo contrário, como aquilo que nos faz agir e pensar “concretamente”; a sua ação é fundamentalmente constitutiva e, portanto, como acaba de ser demonstrado, existencialmente determinante: no plano das ideias e dos comportamentos, na medida em que ambos são assumidos e suportados por “sujeitos”, ela gera produtos de sua operação os quais ela configura de um modo real. O seu estatuto não é constativo, mas performativo.
Note-se de passagem que, quando desenvolve essa concepção da ideologia, que lhe devolve um papel positivo no processo social, Althusser opera, no plano da teoria marxista, uma viragem que não deixa de se assemelhar àquela em que, sobre um outro plano, Foucault está empenhando no mesmo momento. Sem dúvida, Foucault não se interessa pela questão da ideologia, que considera estar fundamentalmente mal colocada e que é incapaz de ser posta de pé. Porém, se concordarmos em olhar para além das palavras, veremos que aquilo que Althusser almeja sob a rubrica de “ideologia em geral” apresenta um certo número de pontos em comum com o que Foucault, por sua vez, busca pensar a partir do conceito de norma [norme], que, tal como o conceito de ideologia de Althusser, serve para designar um processo de sujeição.[13] O que significa estar sujeito à normas? Isso representa a operação pela qual alguém se constitui como sujeito das normas, a cujo chamado esse sujeito responde conformando-se em acordo à uma racionalidade que vai trabalhar silenciosamente, sem ser notada, porque conseguiu penetrar completamente as mentes e os corpos e assim governá-los: a noção de “biopoder”, introduzida por Foucault, pode ser interpretada nesse sentido, precisamente para entender como aquilo que ele chama de “sociedade da norma”[14] instaura modos de racionalização da vida social que transformam fundamentalmente as condições de exercício da autoridade, de tal maneira que ela não mais assume o aspecto de uma coerção formal de tipo repressivo. Podemos concluir que, o que Althusser está tentando fazer pelo conceito de ideologia, Foucault está, por sua vez, tentando fazer pelo conceito de norma – nomeadamente, mostrar que o que está implicado no termo em questão são lógicas práticas de comportamento, modos de agir, e não sistemas formais de representação que constituem uma ordem à parte da realidade social, com a qual, em meio a transcendência e a proibição, mantém uma relação meramente externa. À questão de saber “o que acontece” a um indivíduo que vive “na ideologia”, Althusser responde, desse ponto de vista, que “este conduz-se desta ou daquela maneira, adota este ou aquele comportamento prático”[15]. O que é determinante na “ideologia”, é que ela faz agir: ela se encarna em atos e, como Althusser especifica um pouco mais adiante, esses atos “se inserem nas práticas”[16], ou seja, nas práticas coletivas, socialmente ordenadas. Essas práticas são acompanhadas de ideias, que pretendem dirigi-las, quando, na realidade, são as próprias práticas que determinam a orientação dessas ideias. Daí esta consequência:
As idéias desapareceram como tais (enquanto dotadas de uma existência ideal, espiritual), justamente na medida em que ficou patente que sua existência estava inscrita nos atos das práticas regulamentadas pelos rituais definidos, em última instância, por um aparelho ideológico.[17]
Nessas condições, alguém poderia perguntar se o termo “ideologia”, formado a partir do substantivo “ideia”, ainda é pertinente: se Althusser o manteve, enquanto lutava para torcer o seu significado, é, sem dúvida, por uma preocupação de permanecer na esteira da “teoria marxista”, mesmo que ele tenha proposto uma versão fundamentalmente heterodoxa dela, uma preocupação que é estranha a Foucault.
Interpelação
Passemos agora a “cena” da interpelação que Althusser emprega no que ele chama de “nosso pequeno teatro teórico”[18], a fim de fornecer uma apresentação concreta da teoria da sujeição que lhe permitiria conceber uma concepção positiva, constitutiva e produtiva e, portanto, não exclusivamente representacional e repressiva, da ideologia:
Sugerimos então que a ideologia “age” ou “funciona” de tal forma que ela “recruta” sujeitos dentre os indivíduos (ela os recruta a todos), ou “transforma” os indivíduos em sujeitos (ela os transforma a todos) através desta operação muito precisa que chamamos interpelação, que pode ser entendida como o tipo mais banal da interpelação policial (ou não) cotidiana: “ei, você aí!”.
Supondo que a cena teórica ocorre na rua, o indivíduo interpelado se volta. Nesse simples movimento físico de 180° ele se torna sujeito. Por que? Porque ele reconheceu que a interpelação se dirigia “certamente a ele”, e que “certamente era ele o interpelado” (e não outro).[19]
Nessas poucas linhas, como pode acontecer em um palco de teatro em um momento de crise, onde a ação chega ao seu ápice, tudo faz sentido.
Antes de mais nada, chama a atenção o fato de a operação ideológica da interpelação ser algo comum, banal, ordinário, ou seja, não tem um caráter excepcional, o que é ilustrado pelo de fato de que ela pode acontecer “na rua”. Uma consequência disso, explica ainda Althusser, é que ela “praticamente jamais deixa de atingir seu homem”[20], e apresenta assim um caráter universal: é por isso que, tendo dito que a ideologia “recruta” indivíduos como sujeitos, ele imediatamente corrige a formulação especificando que ela recruta todos – o que, de imediato, retira desse recrutamento o fascínio de um procedimento seletivo que classifica as pessoas entre aquelas que são dignas de se tornarem sujeitos e aquelas que não o são. Na ideologia, todos são “chamados”, e não há como escapar disso. É por isso que, na medida em que se trata de um procedimento de identificação, que leva a constatação de que “é ele mesmo”, seria inapropriado reduzi-lo ao modelo estrito de um controle policial da identidade, que apresenta, em um cenário de culpabilidade, um caráter sobretudo repressivo, no contexto de uma caçada que pode conduzir à uma sanção e a um rebaixamento. Se a ideologia interpela, é lançando um chamado que se dirige a todos e a que todos, sem exceção, não só devem responder, mas responder efetivamente, assumindo, “reconhecendo”, que eles tem de se posicionar de acordo com as formas que o chamado destina para eles, de tal maneira que eles não são livres para ignorá-la, não aderindo completamente a ela: nesse caso particular, a resposta está, de certo modo, contida na pergunta, sem possibilidade de evasão e assim o comportamento desencadeado pelo envio da mensagem parece ser seguido automaticamente.[21]
Em segundo lugar, deve-se notar que o procedimento de interpelação, diretamente associado ao envio de uma mensagem, é apresentado de imediato como um ato de linguagem [fait de langage], do qual extrai precisamente o seu caráter universal, isto é, a sua tendência para saturar o campo em que intervém.[22] Se os indivíduos são ideologicamente assujeitados, é na e através da linguagem que oferece ao seu ser-sujeito a sua estrutura comum e universal de recepção: os sujeitos “têm lugar” na linguagem no duplo sentido de que eles vêm a ser, precisamente ao ser do sujeito, no campo da linguagem e que este campo lhes abre o espaço onde são chamados a tomar o seu lugar. Ao sustentar que só existe sujeito na e através da linguagem, Althusser se inscreve na linhagem de Lacan, relido à luz de Deligny, de quem retoma a ideia de que é o simbolismo da linguagem que dá conta de explicar a constituição dos indivíduos em sujeitos, ou seja, o seu recrutamento, estabelecimento, identificação como sujeitos tendo já o seu lugar traçado no interior de sua ordem, uma ordem que, ao invés de ser imposta do exterior em nome de um constrangimento negativo e repressivo, faz deles o que eles são, os produz como sujeitos da linguagem, ou sujeitos na linguagem, existindo como sujeitos na medida em que ocupam o lugar que lhes pertence ou que lhes é atribuído no campo da linguagem.[23] Note que quando Foucault apresenta a ideia de uma “ordem do discurso”, que prepara sua própria teoria da subjetivação, ele o faz de uma perspectiva bem próxima a essa.[24]
Em terceiro lugar: o chamado para entrar e ocupar um lugar no campo da linguagem, assume, no quadro alegórico da cena da interpelação, a forma de uma mensagem na qual todas as palavras foram cuidadosamente pesadas: “Ei”, a interjeição que lança a mensagem, apresenta o fascínio de uma convocação urgente, cujo envio desencadeia como reação um movimento na direção oposta, uma virada de 180°, ou seja, um gesto que, tacitamente, significa que o chamado foi, com certeza, de fato ouvido, ou seja, que a necessidade urgente de responder foi respeitada. “você” é a própria palavra da identificação: ela designa o fato de que a mensagem, longe de ser lançada no vazio, é programada, tal como o drone das operações militares, de modo a atingir o objetivo preciso que visa, a saber, se assim se pode dizer, um “você”, qualquer um que seja dotado da capacidade de autenticar a pertinência do chamado com a fórmula “sim, sou eu”, ou seja, um sujeito, um verdadeiro sujeito. Finamente, “aí” assinala a distância aberta em um espaço que contém lugares a ocupar, lugares que, como o seu próprio nome indica, “ocorrem” num campo maior no interior do qual estão dispostos uns em relação aos outros, de tal maneira que se é sempre um sujeito à distância, precisemos: a uma certa distância que permite localizar a posição de sujeito que é chamado a ocupar: ser sujeito, nesse sentido, é assumir uma posição em um campo.
Finalmente, uma última observação, a mensagem assim formulada tem a forma de um enunciado. Um enunciado estranho, de fato! Destinado a qualquer um fora do palco, não parece ele mesmo ser dirigido por alguém, o que dá a distância que acabamos de discutir uma aparência quase fantástica. De onde o chamado é lançado? Quem o lançou? Não sabemos, e o chamado retira justamente sua força persistente dessa mesma ignorância. A voz que enuncia a mensagem não é a voz de alguém; não é a voz de um sujeito; ou pelo menos, se esta voz tem um sujeito, este não é diretamente identificável. Na sequência do texto, onde Althusser toma a ideologia religiosa cristã como exemplo[25] para ilustrar sua teoria da interpelação, ele escreve:
A interpelação dos indivíduos como sujeitos supõe a “existência” de um Outro Sujeito, Único, e central, em Nome do qual a ideologia religiosa interpela todos os indivíduos como sujeitos. Tudo isto está claramente escrito no que justamente se chama a “Escritura”: “Naquele tempo, o Senhor-Deus (Jeová) falou a Moisés das nuvens. E o senhor chamou Moisés: “Moisés!” “Sou (certamente) eu!, disse Moisés, eu sou Moisés teu servo, fale e eu escutarei!” E o Senhor falou a Moisés, e lhe disse: “Eu sou Aquele que É”.[26]
Toda a questão consiste em saber se este “Outro Sujeito”, a quem Althusser chama mais tarde de “o Sujeito por excelência”, ainda é um sujeito. Podemos duvidar disso: quando Deus “falou” a Moisés, ele o fez escondendo-se na nuvem; e, para se identificar, fez uso de uma pirueta, contendo-se em declarar “Eu sou Aquele que É”, o que, tomado literalmente, não significa nada, mas em virtude de um excesso em vez de uma deficiência. Em todo caso, por qualquer lado que o vejamos, esse Outro Sujeito, de cuja parte a mensagem é enviada, é um sujeito oculto, um Deus absconditus, cujo paradeiro, ou quem ele é, no sentido da existência ordinária, são desconhecidos, o que é a chave para a sua radical alteridade. Na cena da rua, que é a versão profana da interpelação, esse caráter transcendente e estritamente anônimo da voz através da qual o chamado é lançado é traduzido pelo fato de que ele é dirigido para a pessoa que ela constitui em sujeito por trás, falando pelas costas, que é precisamente o que torna ela um incitamento para se virar.[27]
A teoria da interpelação não para por aí, porque Althusser explica em seguida que os sujeitos da interpelação não se tornaram, propriamente falando, sujeitos como resultado da interpelação, no fim de um processo temporal que se desdobra de sua causa em direção aos seus efeitos, porque eles são “sempre já sujeitos”[28], o que contradiz literalmente a apresentação da cena da interpelação: isso equivale a dizer que o chamado não é realmente responsável pela operação de se virar que constitui o sujeito, essa operação já é realizada antes mesmo de a mensagem ter sido endereçada, de tal maneira que, não só a resposta é automaticamente desencadeada pela pergunta, como também a antecipa; é como se a pergunta fosse feita a posteriori, o fato de ter sido formulada depois tem o caráter de mera confirmação (nesse caso, o chamado tem simplesmente o caráter de lembrete). Mas deixemos de lado, por um momento, esse ponto difícil, que é capital, e que trataremos no final; e, tendo em conta a cena da interpelação tal como foi narrada anteriormente, confrontemos ela, com vista a melhor especificar suas características, com a cena bastante diferente narrada e comentada por Fanon em Pele negra, máscaras brancas, cujo significado está concentrado na reação: “Olhe, um negro!”
Cara a cara
Pele negra, máscaras brancas, publicado em 1952 na coleção “Esprit” na Éditions du Seuil, com prefácio de Francis Jeason, um amigo próximo de Sartre, não é nem uma obra de filosofia nem de teoria política: o seu autor, Frantz Fanon (1925-1961), afirma que tinha planejado fazer dela a sua tese de Medicina. Foi parcialmente composta no ambiente excepcional do hospital Saint-Alban onde, após os seus estudos de medicina em Lyon, Frantz Fanon residiu por dois anos: foi lá que ele fez o seu estágio como chefe de clínica [chef de clinique]; mais tarde, depois de obter a sua titulação, ele foi destacado para o hospital psiquiátrico de Bilda, o início de sua carreira argelina que mais tarde o levou a engajar-se com a FLN [Frente de Libertação Nacional]. [29]
Obra escrita por um médico, Pele negra, máscaras brancas estuda, em um estilo incomum entre os acadêmicos, um “caso” que Fanon, ele próprio negro de origem antilhana, tinha experenciado diretamente: o de ser, não um sujeito em geral, mas um sujeito de um tipo totalmente particular, um sujeito “de cor”, exposto, a todo momento, a ficar cara a cara com a interjeição “olhe, um negro!”, isso desencadeia nele o fenômeno da “dupla consciência”, tal como descrito em 1903 pelo teórico americano William E. Du Bois, que era ele mesmo um negro de origem haitiana, no seu livro As almas do povo negro[30] [Les âmes du peuple noir]. O livro de Du Bois começa da seguinte forma:
Encontram-se soterradas aqui muitas coisas que, se lidas com paciência, podem relevar o estranho significado de ser negro, na alvorada do século XX.[31]
Cinquenta anos mais tarde, Fanon considera que as análises de Du Bois ainda são validas, e que “ser Negro” [être Noir], um fenômeno mais do que nunca marcado pela sua “estranheza” [étrangeté], continua a constituir um problema, e mais precisamente, um problema mental ao qual a medicina psiquiátrica pode ser chamada a investigar.
A interjeição “olhe, um negro!”, como Fanon a menciona em seu livro, não é encenada no que Althusser chama de um “pequeno teatro teórico”. Fanon fixa a sua atenção nela porque a ouviu na vida real, porque foi endereçada a ele pessoalmente. Veja como ele relata essa experiência traumatizante no capítulo V do seu livro, intitulado “A experiência vivida do negro”:
“Olhe, um negro!” Era um estímulo externo que me futucava de passagem. Eu esboçava um sorriso. “Olhe, um negro!” Era verdade, eu me divertia. “Olhe, um negro!” O círculo pouco a pouco se estreitava. Eu me divertia abertamente. “Mamãe, olhe o negro, estou com medo!” Medo! Medo! E eis que agora eu era temido. Queria me divertir com isso até engasgar, mas isso se havia tornado impossível para mim.[32]
O que é mais marcante nessa exposição é que ela sublinha a progressividade do processo pelo qual se instala – na mente de quem, aqui, diz “eu” – o sentimento de que ele não é um sujeito como os outros, mas que é um sujeito com algo mais, ou talvez devêssemos dizer algo menos, porque o mais em questão é a cor, uma característica que é negativamente conotada, como ausência do sem cor [absence d’incoloration]: parte-se de uma observação, ligada à intervenção de um estímulo exterior que é o olhar de um observador sobre o seu corpo e sobre a sua pele, observação que inicialmente tem um valor objetivo; depois se desenvolve, na mente da pessoa que experimenta essa provação, uma tensão psíquica crescente, que vai do divertimento, que é uma forma de aceitação, ao sentimento de que há ali algo de inaceitável, algo estritamente insuportável, pelo menos em condições normais. É como se o sentido da frase penetrasse, pouco a pouco, a pessoa que, por assim dizer, a recebe de frente, na cara, até que finalmente ela tomasse posse completa dele, o transindo. O sujeito que emerge do desenrolar desse processo não é, como aquele de que Althusser fala, um sujeito que se virou, mas um sujeito duplo, divido entre a necessidade de dizer sim (“era verdade”) e o desejo de dizer não (“isso se havia tornado impossível para mim”), uma espécie de double bind que deveria ser objeto de uma análise especifica, na medida em que é virtualmente um portador de efeitos patológicos.
“Olhe, um negro” é, como “Ei, você aí”, uma sequência linguística. Mas, em um olhar mais atento, o seu estatuto é completamente diferente. A fórmula althusseriana da sujeição tira sua eficácia de seu caráter puramente verbal: ela é lançada por trás de uma fonte que escapa sistematicamente ao olhar (quando Deus fala a Moisés escondendo-se na nuvem, a sua presença é resumida apenas a sua voz). “Olha, um negro!”: essa frase é dita na cara e é o prolongamento de um olhar cujo veredito apenas explicita, um veredito irrevogável na medida em que é apresentado desde o início como uma mera observação cuja neutralidade não pode ser posta em questão; no limite, as palavras nada mais fazem do que traduzir a impressão sentida, podendo as vezes até não serem pronunciadas, e é isso o que acontece mais frequentemente, a surpresa que a interjeição “olha!” reproduz é, antes de mais nada, um efeito de postura, por exemplo, um movimento de recuo, que fala por si. Para Althusser, o sujeito é definido pelo lugar que ocupa no espaço da linguagem, o seu estatuto depende da ordem do dizível; para Fanon, porém, o sujeito, ou pelo menos esse sujeito ao contrário dos outros que é o sujeito de cor, é constituído como tal na ordem do visível, em plena luz, por assim dizer, e isso muda tudo.
Salta aos nossos olhos o que essencialmente diferencia as duas cenas de interpelação. A análise de Fanon se apresenta como um encontro cara a cara: muito concretamente, é um encontro entre um homem de cor e uma criança branca que, aliás, dirige a sua resposta “olhe, um negro!”, não para quem deu a ele o pretexto, mas para a sua mãe, em cujos braços busca refúgio para se proteger contra um evento inesperado que ele parece interpretar espontaneamente como uma ameaça potencial (na realidade, essa interpretação nada tem de espontâneo). Althusser organiza o dispositivo da sua cena de interpelação de maneira a não deixar espaço para esse tipo de troca, cuja forma primordial não é um diálogo verbal, mas uma simples troca de olhares que se cruzam, por um lado, o olhar da criança que repousa sobre a pele negra do homem que o encara, e, por outro lado, o olhar que este último tem, não propriamente sobre a criança, mas sobre o olhar da criança, um olhar que ele vê e através do qual ele se vê como “um negro”, isto é, o representante de uma essência que carrega a marca, o estigma, da estranheza, ou seja, de uma absoluta, irremediável, alteridade.
Por isso mesmo compreendemos melhor qual o objetivo perseguido por Althusser ao construir sua teoria da subjetivação: ele a fez de modo a esvaziá-la de tudo o que pudesse se assemelhar a uma relação intersubjetiva, do tipo, por exemplo, daquela representada, para Fanon, pelo encontro entre dois olhares que se cruzam. As consequências dessa escolha são capitais: o resultado é que alguém se torna sujeito, por assim dizer, sozinho, e nem mesmo por meio desse tipo de encontro cara a cara consigo mesmo que constitui em Lacan o episódio do estádio do espelho[33]; enquanto que, com Fanon, alguém só se torna esse sujeito, diferente de qualquer outro que é o homem de cor, ao entrar em relação com os outros, por exemplo, essa criança assustada com a presença de alguém que, em retorno, sob o peso desse olhar que fixa ele, nesse duplo sentido que o toma como alvo e que lhe atribui um lugar[34], produz a – em todos os aspectos estranha – experiência do que é “ser negro”.[35] A teoria althusseriana da subjetivação se serve das contribuições da psicanálise como antídoto aos ensinamentos da fenomenologia, que se inscrevem na perspectiva da intersubjetividade e desenvolvem a partir daí uma concepção do “eu como um outro”, ou seja, o eu tal como ele se reconhece no olhar do outro. A psiquiatria tal como Fanon a pratica mantém com a psicanálise uma relação distante[36]: o que é certo é que, do seu ponto de vista, a situação traumatizante resumida na reação “olhe, um negro!”, que faz intervir uma relação com o outro, uma situação que, como vimos, se dá em plena luz, traz a consciência para o primeiro plano e não pressupõe nenhuma referência a um inconsciente[37], ou pelo menos ao que poderíamos chamar um inconsciente subjetivo, ou o inconsciente de um sujeito.[38]
Deste ponto de vista, parece que as duas posições teóricas não poderiam ser mais claramente separadas. Por um lado, encontramos em Althusser uma concepção do processo de subjetivação que se pretende “científica”, ou seja, objetiva, e em consequência não-subjetiva, isto é, não atolada nos pressupostos inconscientes que poluem a consciência do sujeito e deturpam a sua posição, combinando reconhecimento e desconhecimento [méconnaissance]: tais pressupostos desviam a atenção do lugar onde a posição de sujeito realmente ocorre, a saber, a ordem linguística do simbólico onde só há lugar, na melhor das hipóteses, para uma relação com o Outro com letra maiúscula (relação vertical), mas certamente não para o outro com letra minúscula (relação horizontal): o primeiro efeito do chamado lançado de fora do palco é isolar quem o recebe, suspendendo as relações que ele poderia ter com outras pessoas.[39] Por outro lado, com Fanon, encontramos uma concepção desse processo de subjetivação desenvolvida à luz da experiência particular, experiência no sentido mais forte do termo subjetivo, que um homem de cor pode vir a ter de seu “ser negro” (ou “amarelo”, ou “vermelho”, pouco importa, tudo menos “branco”, o “branco” não sendo supostamente uma cor, mas a marca do sem cor); esta concepção, que procura aproximar-se o mais possível dos dados da experiência vivida, do “sentimento” dessa experiência dramática, confere um lugar central à relação que, no contexto determinado do colonialismo, se estabelece entre sujeitos que se reconhecem entre si, o que parece permitir interpretá-la em termos de intersubjetividade como a encontramos em Hegel relido pelo prisma da fenomenologia. Para resumir esquematicamente essa oposição, Althusser é o anti-Ricoeur, algo que não se pode dizer de Fanon.[40]
No entanto, não é possível parar por aí. Fanon, que não era um filósofo de formação, mas um médico (muito) interessado em filosofia, era um espírito livre, cuidando para não se inscrever em nenhuma tradição determinada: ele se valeu de referências teóricas de onde quer que elas viessem, sejam elas de Hegel[41], Freud, Sartre ou outros teóricos (brancos), sem se obrigar a respeitar ao pé da letra seus sistemas de pensamento. Em um exame mais profundo, parece que a sua apresentação da temática da intersubjetividade como forma de reconhecimento é mais distorcida: quando se refere a ela, não é como um modelo, dotado com seu próprio manual de instruções e pronto para uso, mas como uma hipótese de trabalho cuja aplicação ao “caso negro” nos permite criticá-la e, no limite, invalidá-la.[42] No início do capítulo de Pele negra, máscaras brancas dedicado à “experiência vivida do negro”, Fanon aponta:
Enquanto o negro estiver em seu lar, não precisará, exceto por ocasião de lutas internas de menor gravidade, pôr seu ser à prova de outrem. É óbvio que existe o momento de “ser para o outro”, de que fala Hegel, mas qualquer ontologia se torna irrealizável em uma sociedade colonizada e civilizada. Isso parece não ter recebido atenção suficiente daqueles que escreveram sobre a questão. Existe, na Weltanschauung de um povo colonizado, uma impureza, uma tara que impugna qualquer explicação ontológica. Talvez possam objetar que o mesmo acontece a qualquer indivíduo, mas isso significaria mascarar um problema fundamental. A ontologia, quando se admite de uma vez por todas que ela deixa de lado a existência, não nos permite compreender o ser do negro. Pois o negro já não precisa ser negro, mas precisa sê-lo diante do branco.[43]
O que Fanon quer dizer é que a palavra “ser”, que designa o objeto próprio da ontologia, muda de sentido quando se dirige a alguém que não é apenas um sujeito puro e simples [tout court], sentir-se-ia tentando a dizer um sujeito normal, mas um sujeito que, além disso, preenche as condições que lhe permitem ser rotulado como negro, no quadro da relação com os outros própria ao contexto colonial, um tipo de relação que não se reduz aos critérios ordinários da análise ontológica: com efeito, na figura singular conotada pela designação “ser negro”, ser não é apenas ser, mas é também de um certo modo não-ser, ser em falta. Mas o que é que está faltando? O que falta é aquela marca irrefutável, indelével, do sem cor que seria a brancura. O que a experiência vivida do negro revela é, portanto, o limite contra o qual esbarra a especulação sobre o ser enquanto ser, que é incapaz de dar conta do que é “ser” neste caso específico em que o ser também é ser enquanto não-ser [être en tant qu’on n’est pas], o que não é de todo a mesma coisa.
É por isso que Fanon, ainda que de maneira totalmente diferente de Althusser, se distancia do tema da intersubjetividade no sentido hegeliano de “ser para o outro”: se ele explora a categoria do reconhecimento, é com o propósito de contestar suas apostas mais básicas. De fato, a interpelação projetada por uma criança de pele clara para um homem de pele escura, “olhe, um negro!”, ainda que formalmente ocorra no contexto de um encontro cara a cara onde dois olhares se cruzam à vista de todos, pressupõe um pano de fundo que está repleto de impensado e não dito. É isso que explica o fato de que, como observamos, a interpelação nem precisa ser explicitamente verbalizada para produzir os seus efeitos. Mas temos de ir mais longe: no caso em que o chamado “olhe, um negro!” é de fato pronunciado pela criança, é ela mesma quem está falando? Ela não é apenas o porta-voz ou o eco de uma observação da qual ela mesma não é a autora, e que não sai de sua boca de forma espontânea, mas que foi ditada por outra voz, uma voz que permanece silenciosa? E essa outra voz, que fala através dela, manipulando-a como num ato de ventríloquo, é realmente a voz de alguém, a voz de um sujeito identificável e localizável? Parece antes que esta voz, cuja fonte está oculta, exibe um caráter impessoal, e que a sua função não é a de comunicar uma mensagem transferindo-a de um emissor para um receptor.
É uma voz anônima, que usa o corpo que possui como ressonador, tornando vã a tentativa de responsabilizar alguém em particular: pode-se ser tentado a dizer, em uma linguagem diferente da de Fanon, que é a própria voz da ideologia que transmite os pensamentos e as palavras a serem expressas, submetendo-as a estereótipos pré-fabricados que estão destinados a serem refeitos de maneira automática. Sob essa hipótese, já não faz sentido falar de intersubjetividade: o encontro entre duas pessoas frente a frente é apenas uma ocasião para a reprodução de um modo relacional cujas formas já estão fixas, em condições que a ontologia tradicional é incapaz de dar conta. É esse modo relacional que deve ser examinado em primeiro lugar, tarefa que Fanon realiza com os meios que a filosofia lhe fornece.
A situação
Fanon estudou filosofia por conta própria. O único ensino regular que teve nesta disciplina consistiu nos cursos sobre a psicologia da criança que Merleau-Ponty ministrava na Faculté des Lettres de Lyon na altura em que aí estudava medicina, cursos que ele frequentou como ouvinte. Além disso, lia, lia muito, buscando em suas leituras filosóficas algo que pudesse utilizar para elucidar uma questão que, entre outras, o preocupava: o que é, exatamente, ser negro? Como o fato de carregar o qualificativo “negro” modifica fundamentalmente o fato do “ser”, a ponto de virar de cabeça para baixo o projeto de uma ontologia? Em meio a todas essas leituras, uma teve para ele uma importância decisiva: Réflexions sur la question juive que Sartre publicara em 1946, e que é citado e comentado longamente em Pele negra, máscaras brancas.[44] Para Fanon, parecia que as análises de Sartre sobre a questão do que é exatamente “ser judeu”, isto é, ser percebido e “reconhecido” como judeu, poderiam ser transpostas para aquela de saber o que é “ser negro”, ou seja, na linguagem de Fanon, ser “fixado” como negro.[45]
Em primeiro lugar, Fanon ficou claramente impressionado com a capacidade excepcional de Sartre de reconstruir, como se fosse de dentro, a concretude vivida de uma experiência, seja aquela ligada ao fato de ser judeu, ou aquela ligada ao fato de ser queer como Genet, ou o de ser um burguês que se refugiou na arte como Flaubert etc.: e quando Fanon evoca o jogo de olhares que se cruzam cuja lição se concentra na reação “olhe, um negro!”, ele o faz em um estilo que poderia ser chamado de sartreano, com a nuance, porém, de que é o seu próprio caso que ele está estudando, o do “negro”, enquanto que, quando Sartre fala do judeu, é na medida em que ele próprio não é judeu, que é o que lhe permite desenvolver a consciência tética da condição judaica à qual o próprio judeu não se inclina espontaneamente (e o mesmo vale para o queer, o burguês que se refugia na arte etc.) Mas Sartre não exerceu somente uma influência estilística em Fanon, nutrida pelo fascínio pelo “vivido” que é a marca da especulação fenomenológica. Ele também lhe trouxe um certo número de conceitos, que lhe permitiram apoiar em novas bases o problema que o preocupava.
O mais importante desses conceitos, que cumpre uma função central em Sartre e dá ao seu “existencialismo” sua dimensão específica, dimensão que não encontraríamos equivalente em outros filósofos também catalogados como existencialistas, Kierkegaard ou Gabriel Marcel por exemplo, é o de “situação”. Não se é judeu, nem negro, nem, no limite, nada (homossexual, mulher, artista, ladrão etc.) em um sentido absoluto, em termos de estar em si, mas sempre em uma situação, isto é, em um plano que é tanto o ser para si quanto o ser para os outros, em um determinado contexto histórico. “Ser negro” ou “ser judeu” não é uma determinação primária, objetiva, capaz de ser identificada isoladamente como se tivesse algum tipo de valor por si só, mas é o produto de uma determinada situação – no caso analisado por Fanon, uma situação em que o olhar do homem de cor corre o risco de cruzar com o da criança branca aterrorizada, que, refugiando-se nos braços da mãe, significa a sua diferença irredutível, transformada por uma marca de infâmia. Uma situação é um conjunto complexo de relações que confrontam as pessoas umas com as outras em um contexto no qual suas relações são predeterminadas, ou seja, chamadas a ter lugar em uma determinada ordem ou para responder a certas normas. É, portanto, uma combinação paradoxal de liberdade e necessidade que, vista do ângulo da liberdade, é instável e, vista do ângulo da necessidade, é regulada por um condicionamento histórico que se desdobra em um plano que não é o das intenções individuais, porque repousa sobre a organização global da sociedade. Por exemplo, não se é negro sozinho, diante de si mesmo, mas no quadro próprio de uma sociedade colonial, onde se exerce uma certa forma de dominação que instala o branco numa posição de superioridade: fora dessa situação de tipo muito particular – que é o resultado de uma evolução, e sobre a qual Fanon pensa que só uma revolução, mesmo uma revolução violenta, pode pôr fim[46] – o pressuposto segundo o qual o branco não é uma cor, as únicas cores sendo preto, ou amarelo, ou vermelho etc., para não falar dos homenzinhos verdes descendentes de Marte, esse pressuposto se desmorona, perde toda a sua credibilidade e deixa de se impor com as marcas da evidência.
Antes de prosseguir, voltemos à questão da subjetivação da qual partimos. Revisitada à luz do conceito de situação, ela apresenta um outro aspecto, que nos obriga a afirmar que nunca se é sujeito puro e simples, ou sujeito em sentido absoluto, mas apenas sempre sujeito em situação, em situação colonial ou imperial, por exemplo, como no caso estudado por Fanon. Como resultado, Sartre escreve a propósito da condição judaica, que a posição do sujeito é “sobredeterminada” [surdéterminée]:
[…] A raiz da inquietação judaica é aquela necessidade pela qual o judeu se interroga incessantemente e finalmente toma o lado de um personagem fantasmagórico, desconhecido e familiar, impalpável e íntimo, que o persegue e que não é outro senão ele mesmo, ele mesmo como ele é para o outro. Pode-se dizer que é assim com todo mundo, que todos temos um personagem familiar que nos é íntimo e que nos escapa. Claro: isso não é, no fundo, senão nossa relação com o Outro. Mas o judeu, como nós, tem um personagem e, além disso, é judeu. O que está em jogo, para ele, é algo como uma reduplicação da relação fundamental com o outro. Ele é sobredeterminado.[47]
Em casos como o de “ser judeu” ou “ser negro”, é impossível ser simplesmente um sujeito no sentido geralmente implicado pelo fato de estar em relação ao outro e estar exposto ao seu olhar: ser sujeito implica uma referência a algo mais, um suplemento do ser que é sinalizado na passagem de Réflexions sur la question juive pela fórmula “além disso”. Esse aspecto da questão da subjetivação parece ter escapado a Althusser, que o descartou com o mesmo gesto com que se distanciou das considerações da intersubjetividade, sem compreender que, revisitado à luz de um conceito como o de situação, assume uma significação totalmente diferente daquela implicada pela relação ordinária com o outro teorizada pela fenomenologia. E foi isso, sem dúvida, o que levou Althusser, para dar conta do ser-sujeito como o fez com sua teoria da interpelação, a privilegiar a dimensão vertical, transcendente e, como Butler justamente diagnostica, religiosa da operação pela qual alguém se torna um sujeito[48], não em geral ou em sentido absoluto, mas em uma situação. Agora, o que muda dizer que alguém se torna sujeito em uma situação? A consequência disso é que, como acabamos de dizer, nunca alguém se torna um sujeito puro e simples, mas um sujeito “sobredeterminado”, ou seja, um sujeito qualificado de acordo com as normas da situação e, portanto, um sujeito de certo tipo, moldado pela lógica própria desse tipo – por exemplo, no caso examinado por Fanon, um sujeito suporte do “ser negro”, mas também poderia ser um sujeito masculino ou feminino, um velho ou jovem, gordo ou magro, loiro ou moreno, grande ou pequeno, inteligente ou estúpido, rico ou pobre, heterossexual ou homossexual, ariano ou não-ariano, ou mesmo – por que não? – um sujeito cru ou cozido. Qualquer tipo, sejam suas conotações físicas ou culturais, são determinados pela relação que mantém com outro tipo: os tipos e suas diferenças se constituem em situação. É por isso que nunca se é um sujeito no sentido geral da ontologia, mas um certo tipo de sujeito, por exemplo, alguém que, além de ter que responder “sou eu mesmo” à interpelação que lhe é lançada de trás e/ou de cima, tem que reconhecer “sim, eu sou um negro” como foi compelido a fazer pelo olhar que recai sobre seu corpo escuro por uma criança pertencente à raça pálida dos colonizadores. Ser negro não é simplesmente ser um sujeito, mas ser um sujeito com algo mais (ou menos), que não pode ser conotado como tal – que não pode ser “reconhecido” ou “fixado” – a não ser no contexto próprio da situação que, no caso do colonialismo, é uma relação de dominação. A pergunta que deve ser feita, e que Althusser não faz, é se essa análise se aplica ou não a todos os casos, ou seja, ser sujeito nem sempre é ser sujeito qualificado, padronizado, sujeito para e sob normas, imediatamente identificados segundo critérios impostos pela situação (critérios segundo os quais se é branco ou não, ou mais geralmente dentro da norma ou fora da norma), critérios que extraem simultaneamente sua legitimidade (aparente) e sua eficácia (real) da situação. Segundo Althusser, a operação ideológica recruta todos os sujeitos sem exceção: mas ele não diz que, se ela inscreve todos em seus registros, o faz no quadro de uma operação que, no entanto, é uma operação de seleção, e que é capaz de tomar a forma de rebaixamento; sem dúvida, todos são chamados a “ser” sujeitos, mas não sujeitos da mesma espécie, não qualificados segundo critérios que os tornariam todos iguais ou de igual qualidade, apenas alguns deles sendo reconhecidos como dignos de usar o rótulo “como os outros”; os outros, ao contrário, são identificados como não iguais aos outros, mas diferentes e, portanto, vulneráveis à tolerância ou à rejeição. Se levarmos a sério essa dificuldade, devemos reconhecer que Sartre, por meio de Fanon, foi além de Althusser, e relança a questão da subjetivação em outra direção.
[1] Frantz Fanon, Peau noire, masques blancs, Seuil, Paris, 1952. [Trad. bras.: Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020].
[2] Propomos esse encontro sem qualquer consideração pela questão da influência ou do confronto. Althusser nunca se refere a Fanon. Mas nada nos impede de levar as duas posições ao diálogo, a fim de compreender melhor o que as especifica.
[3] Como uma ladainha latejante, ele repete a fórmula: “Mas, deixemos esse ponto” [Mais laisson cela].
[4] Althusser, Positions, Éditions Sociales, Paris, 1976, p.68. [Trad. bras.: Posições II. Rio de Janeiro: Graal, 1980, p.48].
[5] Ibid., p. 73; p. 128. [Trad. bras.: ibid., p.53].
[6] Ibid., p. 110; p.160. [Trad. bras.: ibid, p.87].
[7] É isso que visa a tese segundo a qual “a ideologia tem uma existência material” (ibid, p.105; p.155), que busca trazê-la de volta do céu das ideias no qual foi arbitrariamente confinada.
[8] Ibid., p.100; p.151.
[9] Ibid; p.152. [Trad. bras.: Posições II. Rio de Janeiro: Graal, 1980, p.78].
[10] Essa restrição é formulada na p.101; p.152: “em toda história (= a história das formações sociais envolvendo classes sociais)”.
[11] Ibid., pp.103–4; p.154. [Trad. bras.: Ibid, p.81].
[12] Trad. bras.: ALTHUSSER, Louis. Sobre a reprodução. p.198-199.
[13] Note-se, porém, que entre a perspectiva de Althusser e a de Foucault, subsiste uma diferença fundamental. Foucault está longe e mesmo totalmente ao contrário de pensar que a intervenção das normas tem um caráter oni-histórico, transversal a todas as épocas da história.
[14] Essa sociedade da norma se instaura durante a segunda metade do século XVIII: ela estabeleceu todo um novo tipo de “relações de poder”, que não mais dependia da intervenção violenta de uma autoridade externa ao campo que ela controla e se concentrava sobre si mesma em virtude de sua posição transcendente.
[15] Trad. bras.: Sobre a reprodução, p.207.
[16] Ibid., p. 107; p. 158.
[17] Trad. bras.: Ibid., p.283.
[18] Ibid., p. 114; p. 163.
[19] Trad. bras.: ALTHUSSER, Louis. Posições – II. Rio de Janeiro: Graal, 1980, p. 90-91.
[20] Ibid., p. 114; p. 163.
[21] Na leitura que ela propõe da cena da interpelação em The Psychic Life of Power (Stanford University Press, Stanford CA, 1997, Chapter IV, ‘Conscience Doth Make Subjects of Us All: Althusser’s Subjection’, pp. 106–31), Butler concentra sua atenção justamente no caráter automático dessa relação entre chamado e resposta, de onde ela conclui que o conceito althusseriano de sujeição permanece tributário do modelo de consciência religiosa. O espírito de sua análise é resumido nesta passagem: “A preocupação aqui tem um objetivo textual mais específico, qual seja, mostrar como as figuras – exemplos e analogias – influenciam e ampliam as conceitualizações, enredando o texto numa santificação ideológica da autoridade religiosa que ele só pode expor ao reencenar essa autoridade.” Em outras palavras, Althusser teria caído de joelhos (e com as mãos unidas?) na armadilha que a ideologia religiosa, precisemos, a ideologia religiosa cristão, preparou para ele. Apresentei essa leitura de Althusser por Butler em um texto “Judith Butler et la théorie althussérienne de l’assujettissement”, que está acessível no site da UMR STL. [Trad. bras.: BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p.97].
[22] Marx havia esboçado essa maneira de ver as coisas apresentando de passagem a ideologia, em seu manuscrito L’idéologie allemande, como “a linguagem da vida social”. A ideologia é uma linguagem: ela fala às pessoas a quem dirige a exigência premente de escutá-la, de responder ao seu chamado.
[23] Essa ideia esteve no centro do artigo de Althusser sobre “Freud et Lacan”, publicado na La nouvelle Critique em 1964-65, também retomada na coletânea Positions, da qual constitui a abertura.
[24] Quando Foucault se refere a essa “ordem do discurso”, ele não está trazendo o representacional ao primeiro plano: na verdade, para ele, essa ordem consiste em uma concatenação de elementos, palavras por exemplo, que são não substitutas das coisas, mas as coisas por direito próprio; não subsiste, portanto, à distância do real, opondo-se a ele, por exemplo, mas é um componente dele por direito próprio; é real, e mesmo, no limite, o real do real.
[25] Segundo Butler, esse exemplo não foi escolhido por acaso, mas representa o caso por excelência em que o indivíduo se constitui como sujeito pelo procedimento de interpelação.
[26] Althusser, Positions, p. 118; p. 167. [Trad. bras.: Posições 2, p.95].
[27] Uma boa ilustração desse dispositivo poderia ser fornecida pela enigmática pintura de Magritte, La Reproduction interdite: essa pintura apresenta, em primeiro plano, visto de trás, um personagem que se olha em um espelho colocado à sua frente; o espelho lhe devolve uma imagem dele mesmo onde também é visto por trás. G. Perec, que se interessou particularmente por esta pintura, comenta-a da seguinte maneira em uma entrevista publicada em 1978 na Magazine littéraire, “La maison des romans”: “Esta foi a expressão mais exata do significado de ‘você’” (En dialogue avec l’époque, éd. Joseph K., 2012, p. 84). Ou seja, ele a interpreta precisamente como uma cena de interpelação onde o sujeito é cortado em dois pelo procedimento de reduplicação ao qual ele é submetido, sem a possibilidade de juntar as peças. O interpelado, literalmente, perde o rosto, ou seja, a possibilidade de ser visto de frente: ele não é mais do que um “você”, isto é, nessa configuração precisa, um dorso.
[28] Ibid., p. 115; p. 164.
[29] Foi em Saint-Alban que o Dr. François Tosquelles, um emigrante político espanhol, inventou o que depois dele seria chamado de “psicoterapia institucional”, um método que revolucionaria completamente a assistência psiquiátrica. Saint-Alban foi um lugar de intensa criação intelectual: Eluard e Tzara ficaram lá durante a guerra; foi aí que começou a germinar a ideia do que hoje se chama l’art brut, graças ao Dr. Lucien Bonnafé; Canguilhem, que ali se refugiou no final da guerra, escreveu sua tese em medicina, l’Essai sur quelques problèmes concernant le normal et le pathologique; depois, Fernand Deligny também foi para lá. Tudo isso criou uma atmosfera extraordinária, na qual a reflexão apaixonada e extraordinária de Fanon encontrou naturalmente seu lugar.
[30] Trad. bras.: DU BOIS, W. E. B. As almas do povo negro. São Paulo: Veneta, 2021.
[31] Ibid., p.18.
[32] Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020, p.78.
[33] No desenvolvimento de uma criança, o estádio do espelho, que tem lugar antes da aquisição da linguagem, coincide na evolução da criança com o aparecimento do eu, tal como ele se projeta e se “reconhece” naquela relação especular pela qual entra no regime de o imaginário. Mas esse eu, efetivamente duplicado, ainda não é o sujeito que, por sua vez, é constituído pelo acesso ao simbólico.
[34] “E já me dissecam os olhares brancos, os únicos verdadeiros. Sou fixado. Uma vez ajustado seu micrótomo, eles objetivamente realizam cortes na minha realidade. Sou traído. Sinto, vejo nesses olhares brancos que não é um homem novo que está entrando, mas um novo tipo de homem, um novo gênero. Um negro, ora essa!” (Peau noire Masques blancs, éd. cit., p. 119). [Trad. bras.: Pele negra, máscaras brancas, p.81].
[35] “Sou um negro – mas obviamente não sei isso, pois sou isso.” (Peau noire Masques blancs, chap. VI « Le nègre et la psychopathologie », éd. cit., p. 187). [Trad. bras.: Pele negra, máscaras brancas, p.126]. Ser negro é uma condição objetiva, que não é sentida espontaneamente como tal por seu portador; ela vem a ser subjetivada [subjectivée] somente quando o olhar branco cai sobre sua pele negra.
[36] Fanon cita de passagem Lacan, cujo artigo sobre a família publicado na Encyclopédie française de Wallon claramente o influenciou.
[37] “Como o drama racial tem lugar a céu aberto, o negro não tem tempo de o ‘inconscientizar’.” (Peau noire Masques blancs, éd. cit., p. 150). [Trad. bras.: Pele negra, máscaras brancas, p.104].
[38] Fanon está interessado em outro aspecto do inconsciente: o inconsciente coletivo, que é cultural e não subjetivo no sentido de subjetividade individual. Esse inconsciente coletivo corresponde ao poder das normas, conforme analisado por Foucault.
[39] O que é próprio da ideologia religiosa é precisamente que ela interpela seus sujeitos um por um, cada um por si.
[40] Pele negra, máscaras brancas, não esqueçamos, foi publicado na coleção “Esprit” das Éditions du Seuil, portanto, em um ambiente que é onde se desenvolverá a pesquisa realizada por Recoeur.
[41] O último capítulo de Pele negra, máscaras brancas, “O negro e o reconhecimento”, conclui com um parágrafo intitulado “O negro e Hegel” (éd. cit. p. 209-214), onde a fórmula “negro imundo” é examinada do ponto de vista da luta entre o senhor e escravo.
[42] Fanon procede com a psicanálise da mesma forma, interessando-se por ela justamente por seus limites: transposta para outro terreno, ela não funciona mais (segundo ele, não encontramos vestígios do triângulo edipiano na família antilhana).
[43] Peau noire Masques blancs, éd. cit., p. 113-114. [Trad. bras.: Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020, p.77].
[44] Fanon não é mais “sartreano”, no sentido de aderir globalmente a um sistema de pensamento, do que é “hegeliano” ou “freudiano”. Ele trouxe um olhar lúcido para o trabalho de Sartre, separando o que lhe parecia útil do que não era. Ele rejeita, por exemplo, o relato entusiástico e incendiário de Sartre sobre a temática da Negritude em “Orphée noir”, texto que Sartre escreveu para servir como introdução à Anthologie de la nouvel e poésie nègre et malgache (1948) de Senghor.
[45] Sobre o judeu e o negro, Fanon diz que são “irmãos na desgraça”: “Foi meu professor de filosofia, de origem antilhana, que me alertou um dia: ‘Quando ouvir falar mal dos judeus, fique atento, estão falando de você’. E achei que ele tinha razão num sentido universal, compreendendo naquilo que eu era responsável, em meu corpo e em minha alma, pelo destino reservado ao meu irmão. De lá para cá, entendi que ele basicamente queria dizer: um antissemita é necessariamente um negrófobo.” (Peau noire Masques blancs, éd. cit., p. 124). [Trad. bras.: Pele negra, máscaras brancas, p.85].
[46] Esse é o tema central da obra que Fanon publicou em 1961 nas Éditions Maspero, Les Damnés de la terre, para a qual Sartre escreveu o prefácio.
[47] Réflexions sur la question juive, éd. Gallimard, 1954, p. 96.
[48] Nessa perspectiva vertical, onde o olhar que sanciona a operação de reconhecimento vem de cima e emana de uma fonte que permanece oculta, todos os sujeitos se equivalem. Quando Cristo diz “Deixai vir a mim as crianças”, não especifica se essas crianças devem ser negras, brancas ou de qualquer cor: nesse sentido, pode-se dizer que os sujeitos que ele convoca são simplesmente determinados, e não sobredeterminados. Mas essa mensagem se configura graças a uma operação de abstração, pela qual a ideologia religiosa se autoriza a fingir que, para ela, todos os sujeitos são iguais, qualquer que seja sua situação. Mas fora da perspectiva que define essa operação de abstração, uma operação que apaga artificial e artisticamente as diferenças, não é assim.