Por Ana Botner.
Esse texto é uma proposta de estudo, pensada em diálogo com uma leitura de Althusser, em que a discussão em pauta é pensar qual o tema central, a ser desenvolvido, para obtermos um avanço substantivo na teoria marxista. Tomo esse texto emprestado para começar, ou recomeçar, uma conversa sobre os objetos centrais de pesquisa da teoria marxista hoje, em 2022. É, além disso, um pedido de retomada à prática – para um olhar voltado a observar e extrair das experiências revolucionárias no século XXI respostas que talvez ainda não estejam formuladas, esquematicamente, no campo teórico do marxismo.
Começarei aqui com a passagem de uma proposição de Althusser, escrita em 1967, no texto “a tarefa histórica da filosofia marxista”:
A tese que proponho é simples: a filosofia marxista (o materialismo dialético) representa hoje o link definitivo em que depende o futuro da teoria marxista e, consequentemente, a concepção correta para a união entre a teoria marxista e o movimento dos trabalhadores.
Althusser, nessa passagem, influenciado por Lenin em seus escritos no “o que fazer?”, e por sua famosa frase “sem teoria revolucionária não há prática revolucionária”, propõe um foco primário e urgente em torno da filosofia marxista. Althusser aponta, também, que sem a luta no campo teórico pela correta acepção da teoria marxista, sem a constante retificação e reforço da teoria marxista contra todas as formas de pressão – concepções pequeno burguesas ou burguesas no seio do movimento revolucionário, sem os princípios corretos que unem a teoria e a prática, as distorções podem levar a consequências sérias ou extremamente sérias, provocando um movimento contra revolucionário dentro do partido ou demais frentes de luta popular.
Mao Tsé Tung em seu texto “sobre a prática”, escrito em 1937, coloca questões fundamentais sobre a epistemologia marxista, a teoria do conhecimento marxista, em meio a uma luta contra as concepções errôneas do marxismo dentro do partido. É um texto que visava desbancar e criticar as posições dogmáticas, aqueles homens de partido com um conhecimento extenso da literatura marxista, mas sem criatividade teórica ou com pouca experiência e confiança na prática da revolução chinesa. E, ao mesmo tempo, criticar as posições empiristas, dos homens que negam a teoria e se apegam apenas a suas experiências pessoais, sem se dar conta do todo.
Para uma crítica da segunda concepção – a concepção empirista – e, retornando a discussão, em concordância com as posições de Althusser em seu texto supracitados, é necessário compreender que a luta no campo teórico é apenas mais uma expressão da luta de classes, e a crítica rigorosa a desvios subjetivistas, de concepções burguesas ou pequeno burguesas é fundamental para o sucesso de qualquer processo revolucionário.
O marxismo, como escreve Althusser, não é só mais uma ideologia, ou seja, não é só mais uma interpretação subjetiva da realidade, mas sim uma teoria científica capaz de, para usar a famosa expressão dita por Lenin, fazer a análise concreta da situação concreta (Althusser, 2003, p.169)
Estudar o marxismo é, portanto, apreender abstrações científicas que refletem fielmente a realidade objetiva, é aprender, por meio de uma experiência indireta, a essência dos problemas, as contradições que a percepção sensível não é capaz de captar por si mesma (Tsé Tung, 1999, p.17). A luta pela correta acepção do marxismo, é uma luta pelo reconhecimento da realidade objetiva, uma luta pela verdade. Mas não é, entretanto, uma luta da verdade pela verdade, não é uma produção de verdade para a contemplação, é uma luta com um propósito objetivo: em curto prazo, o fazer da revolução, e a longo prazo, a chegada ao comunismo.
E por isso, a disputa no campo teórico, entre tantas interpretações que se autointitulam de marxistas, é fundamental. Não há múltiplos marxismos, como nos aponta Althusser, há só uma concepção correta – a abstração científica que reflete mais profundamente a realidade objetiva.
Em sobre a prática, e em concordância com a proposição de Althusser, Mao retorna à teoria marxista, especialmente a sua filosofia, o materialismo dialético, para confrontar problemas concretos de organização e estratégia políticas da revolução, em busca de uma unidade da prática política dentro do partido, entendendo que era fundamentalmente um erro de concepção, de falta de compreensão do que é o marxismo e o que é a epistemologia marxista. No entanto, o dizer de Mao é claro: não se trata de, primeiramente, resolver os problemas intrínsecos a teoria, separadamente da prática, e sim de produzir conhecimentos autênticos, em desenvolver a teoria marxista com base em experiências diretas.
Desse modo, estudar a teoria marxista é, também, participar ativamente de um projeto revolucionário, podendo ser tanto local como nacional, mas é, sobretudo, extrair das experiências revolucionárias, ou de movimentos progressistas em curso, seja em seu país ou no estrangeiro, lições teóricas, pois: “os que negam a sensação, a experiência direta, a participação pessoal na prática que modifica a realidade, não são materialistas”.
Para exemplificar, Mao cita Lenin e sua contribuição para um salto qualitativo na teoria marxista – a formulação do conceito de imperialismo, e complementa: “Marx, Engels, Lenin e Stalin puderam criar sua teoria não só em razão do seu gênio, mas, sobretudo, porque tomaram parte na prática, correspondente a sua época, da luta de classes e das experiências científicas, sem essa última condição, nenhum gênio teria chegado ao sucesso” (Tsé Tung, 1999 p. 18)
Vou aqui lembrar de uma passagem de Mao, em seu texto “em oposição ao culto aos livros”, que corrobora seus pensamentos do texto anterior: não seguimos as ideias de Marx porque ele é um profeta (e chega a zombar de qualquer tipo de misticismo em volta de sua figura) mas as seguimos simplesmente porque se provaram corretas no curso da revolução, se provaram corretas para a luta que estava levando a cabo.
Espero aqui fazer uma proposição, um pouco diferente da de Althusser. Hoje, em 2022, é comum ouvir que todas as experiências revolucionárias morreram, é necessário ressuscitá-las do zero, e autores como Zizek digam que é a hora de um retorno ao pensamento – antes de começar uma prática revolucionária. Mas, o fato é que já existem movimentos revolucionários em curso hoje – as guerras populares nas Filipinas e Índia. Essa última, existente desde 1967, é uma guerra popular dirigida pelo Partido Comunista da Índia (Maoista), cujos militantes são normalmente referidos como “naxalitas”, em alusão à aldeia de Naxalbari, em Bengala Ocidental, onde teve início o processo revolucionário. Em julho de 2021, 54 anos depois no início do movimento revolucionário, são contados mais de 70 distritos com presença ativa do Partido – com maior ou menor adesão à construção de um Poder Popular dentro dessas áreas.
A proposta talvez seja essa: ao invés de um retorno cego ao pensamento, por que não entender os processos em que a luta de classes está mais agudizada? Entender, por exemplo, por que todas essas revoluções em curso adotam o maoismo como o verdadeiro desenvolvimento do marxismo-leninismo.
É impressionante o silêncio sobre as revoluções (do nosso tempo!) nesses países. Há momentos, diz Lenin, que a prática política faz invenções equivalentes a descobertas teóricas, e a teoria tem o trabalho de depois extrair ensinamentos e tirar as consequências (Althusser, p.166). O momento de um retorno à teoria pura, mas sim de voltar nossos olhares para a prática: um espectro ronda o nosso tempo, e é dever de todos os intelectuais marxistas perceber e estudar esses pontos de pressão, extrair os ensinamentos vindos das experiências práticas do século XXI. E isso, claro, sem perder de vista todo o progresso já feito do desenvolvimento da teoria marxista, pois é justamente com esse aporte, esse “guia para ação”, como Mao caracteriza o marxismo, que poderemos aprender e participar da construção de uma segunda onda da revolução proletária mundial.
E ainda, e não menos fundamental, é estudar os pontos de pressão dentro da realidade brasileira, investigar as entranhas da nossa sociedades, investigar todas as classes e as relações entre elas, investigar nossa posição como país ainda subdesenvolvido, investigar as contradições principais dentro do nosso país – a questão imperialista, a questão do campo, a questão de classe; ao mesmo tempo que apoiando movimentos verdadeiramente democráticos e de vanguarda no nosso país, como a atuação da Liga dos Camponeses Pobres – movimento de luta pela terra com atuação principal em Rondônia.
Mas, também, e aqui está meu acordo com Althusser, que luta no campo teórico deve ser tão importante quanto, que é mais do que necessário combater interpretações subjetivistas do marxismo, assim como necessário desmascarar interpretações de mundo não marxistas, e o avanço da filosofia marxista, de uma concepção mais aprimorada do materialismo dialético – que nunca conseguiu em Marx algo tão esquematizado como a economia política – certamente é um dos passos imprescindíveis da luta de classes no campo da filosofia, mas ela não pode ser, em nenhum grau, separada da prática, ou seja, separada da participação ou tentativa de construção de um processo revolucionário.
O marxismo é, talvez, a filosofia mais difícil, porque exige de nós não apenas a contemplação, mas a transformação da realidade – e é por isso, também, a mais bonita.
ALTHUSSER, Louis. The Humanist Controversy and Other Writings. Editora VERSO, 2003.
TSÉ TUNG, Mao. Sobre a prática e sobre a contradição. Ed. Expressão Popular, 1999.
https://anovademocracia.com.br/no-226/11742-a-construcao-do-novo-poder-na-india