Por Alvaro Moreira Lima
O presente artigo visa discutir o dilema da dissociação entre a dimensão estética da literatura e a sua dimensão social, de modo a mostrar o quão problemática é essa diferenciação. Defende-se assim a relação de influência recíproca entre essas duas dimensões da literatura a partir do romance de José Falero, “Os Supridores” (2020), que versa sobre uma história vibrante parecida com a de muitos dos ‘crias’ das favelas do Brasil. O supra-sumo da literatura marginal brasileira.
O DILEMA DA DISSOCIAÇÃO E A OBRA DE JOSÉ FALERO
“Quanta gente tu já viu fazer isso, Marques? Uma pá de mano que se criou contigo, que jogou bolita no barro contigo, que foi no baile a primeira vez contigo. Tudo mortinho da silva. Mas a gente tá aqui. Eu nem sei como, mas a gente tá aqui. Se esquivando das bronca, contrariando as estatística, dando um jeito de comer e beber, tirando onda quando dá pra tirar onda. A gente tá aqui porque a gente não é de barro, nem de vidro, nem de cera; a gente é pica dura” (FALERO, 2020: 140).
“O crime tá aí, e sempre vai tá, fazendo sorrir, fazendo chorar” – Kayin. O crime, 2021.
Segundo Raymond Williams, no século XVIII, o público leitor cresceu, assim como a indústria literária europeia com editoras e revistas com milhares de assinantes. Tais fenômenos tiveram impacto direto no conteúdo das obras dos literatos do período e na maneira como os mesmos se viam. Nesse sentido, no início do século XIX, como resposta, não somente aos ditames do público leitor e ao mercado, mas também a aceleração, produtividade e pragmatismo, que foram marcas desse período, os literatos passaram a cultivar cada vez mais a ideia de que a produção artística/literária, era algo absolutamente dissociado da dimensão mundana, material e contemporânea.
Nessa perspectiva, a produção deles era uma ‘realidade maior’, qual surgia de uma mente genial, à frente de seu tempo e, que em razão disso, deveria ser valorizada (1). Tal concepção, que no século XIX, tinha um caráter defensivo, no século XX, passou a ter um caráter afirmativo e comum no meio artístico. Porém, mesmo que tenha sido cultivada durante muito tempo e, que tenha resquícios no presente, essa concepção não tem lastro nenhum na realidade. Para trabalhar essa questão, é interessante partir para o romance “Os Supridores” de 2020 escrito por José Falero.
O autor conta a história de Pedro e Marques, dois supridores de uma das filiais da rede de supermercados Fênix, de Porto Alegre-RS. A trama se passa entre os anos de 2009 e 2011, tratando dos dilemas destes dois jovens moradores da periferia da cidade, que crescem na pobreza e que, na juventude adulta trabalham exaustivamente para receber um salário péssimo, o qual garante somente a sobrevivência aos trancos e barrancos.
Pedro, virou um assíduo leitor nas longas idas e vindas do trabalho e, com tal hábito, passou a elaborar ideias sobre sentimentos e percepções que lhe causavam incômodo no dia a dia: Por que era pobre se trabalhava tanto? Por que tanta exploração? Por que seus pais e avós foram tão ou mais pobres quanto ele? Por que o mundo é como é? Etc (2).
Encontrou nas obras de Karl Marx, algumas dessas respostas e as transmitiu para seu amigo, Marques. Ao qual, num diálogo constante, convenceu de que o capitalismo era extremamente injusto e de que o patrão era um porco explorador. Sempre com analogias, explicações perspicazes e tiradas brilhantes, numa espécie de atualização do marxismo para a linguagem periférica porto-alegrense.
Diante dessa situação de pobreza e exploração estrutural, ambos viram como única saída o criar uma ‘cooperativa’ de tráfico de maconha e iniciaram o negócio. Envolveram familiares, lucraram muito, passaram por apuros e, no final, Pedro terminou preso e sua quadrilha desmontada. Depois de tal introdução da obra, cabe perguntar: Uma trama tão bem escrita e criativa como essa, só poderia sair da cabeça de um gênio certo? E a relação que tal trama tem com a realidade brasileira é pura coincidência, certo?
As perguntas são irônicas, é óbvio. A começar pela dissociação entre arte/artista e realidade. Em primeiro lugar é imperativo dizer que toda ficção parte de uma realidade, nesse sentido, mesmo que toda literatura tenha um ‘Q’ de fuga da realidade, é impossível que a mesma não tenha marcas do seu período. Isso porque toda obra literária se dá numa lógica dialética, de ser produto e também produtora de seu tempo (CANDIDO, 2009).
Segundo Raymond Williams (2011), o sentimento pessoal do poeta, romancista/escritor, tem muito a ver com o estado de espírito, dilemas religiosos, questões econômicas etc., de sua época. Assim como as escolhas estéticas de vocabulário, perfil psicológico dos personagens e ritmo da trama tem a ver com as intenções do autor e a realidade a qual ele tem contato. Ou seja, o diapasão – aqui entendido como até onde se estende e em que sentido se estende a imaginação – da imaginação de um escritor/artista tem origem no mundo em que ele vive.
Sobre as escolhas estéticas de Falero, é importante tomar nota que os diálogos na trama são todos em linguagem coloquial e gírias da periferia de Porto Alegre. Aspecto que dá maior verossimilhança da história com a realidade, gera identificação em leitores periféricos e cumpre um papel importante no que diz respeito a popularizar a reflexão e crítica da exploração do trabalhador e da pobreza.
Logo, pode-se dizer que o tipo de história escrita por Falero tem origem na realidade das periferias do Brasil e em sua própria história de vida, considerando que ele mesmo foi supridor de supermercado e cresceu numa favela. Sua abordagem acerca do tráfico de drogas tem marcas temporais de 2009/2010/2011 e do presente imediato. É, nessa perspectiva, também uma reflexão acerca da política de guerra às drogas e do encarceramento em massa, que existem há décadas no Brasil e foram aprofundadas nos governos petistas – período contemplado pelo seu romance (3).
Acerca da questão do suposto ‘gênio criador’, voltamos ao registro de Antônio Candido para dizer: todos os seres-humanos têm o impulso de fabular (4), logo todos podem escrever, inclusive um homem que adquiriu o hábito da leitura na juventude adulta, em meio aos cansativos turnos de trabalho. Falero não é gênio atemporal, apesar de ser um ótimo escritor. É um homem de seu tempo, escrevendo sobre seu tempo e com um realismo ácido que não deixa dúvidas que a materialidade está incrustada em suas escolhas narrativas e artísticas.
Isso, porque ela (a materialidade na literatura) é incontornável, tendo em conta que as mãos de quem escreveu esse romance já descarregou muitos caminhões e mexeu com muita argamassa; a cabeça que imaginou a ficção dos diálogos entre os personagens e o desfecho dos mesmos já refletiu sobre o porquê de tanta miséria no intervalo dos trabalhos, entre um cigarro e outro e os olhos que se fixaram no papel e na tela do computador para escrever este livro, viram muitos dos seus partirem por causa da pobreza e do tráfico de drogas.
O REALISMO ÁCIDO DOS ‘CRIAS’ E A RELAÇÃO ENTRE NARRADO E VIVIDO
Acredito que a síntese desse realismo ácido está nas escolhas estéticas/literárias do último capítulo de “Os Supridores”, quando o personagem Luan, morre com um tiro na nuca, depois de seu grupo estar prestes a conseguir matar os últimos integrantes da quadrilha que assassinou sua mãe e sua amada. E também nas últimas páginas do livro, quando o brilhante Pedro vai parar na ‘tranca’. Esse realismo é conhecido por todos os ‘crias’ dos guetos desse nosso Brasil e é sintetizado no ditado de que “O crime não é o creme” e no verso do rapper/trapper Kaiyn: “nóis sabe o peso da caneta, conhece o estrago das bereta” – Kayin e Kyan. Dono do Lugar, 2021.
Contudo, pode-se dizer que apreender e discutir a dimensão social e política da literatura e de outras modalidades de fabulação/arte (música, cinema e telenovela por exemplo), é fundamental para compreender a sociedade na qual vivemos, as correlações de força, a História do nosso país e nosso lugar dentro dela. Ao fim e ao cabo, aqui falo do narrado e do vivido, entendendo que sempre um influi no outro. Leiam “Os Supridores” (2020) e as crônicas de “Mas em que mundo tu vive?” (2021), ambos livros de José Falero. Não vão se arrepender, é rap em forma literatura.
NOTAS:
- “Eles definiam, enfaticamente, sua vocação superior, mas vieram a defini-la e a enfatizá-la porque estavam convencidos de que os princípios sobre os quais a nova sociedade estava sendo organizada eram ativamente hostis aos princípios necessários da arte. (…). “Artistas, nessa disposição de espírito, chegaram a se ver como agentes da “revolução para a vida” em sua capacidade como portadores da imaginação criativa” (WILLIAMS, 2011: 64 & 66).
- Nessa entrevista, o autor do livro, afirma que mesmo antes de ler Marx, o personagem Pedro era o tipo de trabalhador que sabia que era explorado e tinha sua vida precarizada. Sendo essa leitura, uma visão mais elaborada e elucidativa dos ‘porquês’ dessa condição de vida. Entrevista de Breno Altmann com José Falero. “JOSÉ FALERO: UM TAPA NA LITERATURA CHIQUE – SUB40”. Opera Mundi, 16/09/2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=elnS96h8IU4 Acessado em: 04/02/2022.
- É importante mencionar que a política de guerra às drogas não é resultado exclusivo de legislações e inércia dos governos petistas nesse campo, é resultado também das políticas dos governos dos Estados na área de segurança pública. Não se visa discutir a fundo esse tema, somente mencionar como no período do qual o livro aborda (2009/2010/2011) e quando ele foi publicado (2020) a guerra às drogas e o encarceramento em massa estiveram à todo vapor no Brasil. Eis algumas referências para pensar sobre o assusnto: OLLIVEIRA, Cecília. “Lula é responsável, junto com Dilma, de incrementar o Estado Policial que se volta contra ele”. The Intercept, 25/01/2018. Disponível em: https://theintercept.com/2018/01/25/lula-dilma-policial-violencia-pt/ Acessado em: 04/02/2022.
IGLECIO, Patrícia. Lei de drogas completa dez anos sob fortes críticas e a certeza de que a guerra às drogas não dá certo. Justificando, 20/09/2016. Disponível em: http://www.justificando.com/2016/09/20/lei-de-drogas-completa-dez-anos-sob-fortes-criticas-e-certeza-de-que-guerra-as-drogas-nao-da-certo/ Acessado em: 04/02/2022.
Para se ter uma noção de como que a guerra às drogas e o encarceramento em massa foi forte em todo Brasil no primeiro governo Dilma é interessante verificar os dados presentes no relatório nacional sobre o sistema prisional (INFOPEN) de 2014. https://www.conjur.com.br/dl/infopen-dez14.pdf Acessado em 04/06/2022 às 14:57.
- “Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado” (CÂNDIDO, 2011: 174).
BIBLIOGRAFIA:
WILLIAMS, Raymond. “O artista romântico” in: Cultura e sociedade: de Coleridge a Orwell. Petrópolis-RJ: Vozes, 2011, pp. 54-72.
CANDIDO, Antonio. “Introdução” in Formação da literatura brasileira: momentos decisivos., 1750-1880. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: FAPESP, 2009, pp. 25-39.
CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura” in Vários escritos. 5ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, pp. 171-193.
FALERO, José. Os supridores. São Paulo: Todavia, 2020.
AUTOR:
Radicado na periferia da zona norte de São Paulo, Alvaro Moreira Lima tem 22 anos, é estudante de História pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), foi bolsista no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) e de iniciação científica num projeto sobre História Indígena financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Atualmente é auxiliar de professor em uma escola da rede municipal de educação de São Paulo. Tem interesse nos temas: Raça e Classe na História do Brasil e História da América.