Por Petrus Ian Santos Carvalho[1]
Não raramente, o ensino do direito contemporâneo tem sido objeto de diagnósticos recorrentes no universo jurídico-acadêmico, que, em suma, apontam para a sua crise. Se, em termos quantitativos, o aumento massivo do número de instituições e cursos de direito por todo o Brasil observado nas últimas décadas pode ser considerado manifestação de um pretenso êxito de uma educação jurídica nacional; em termos qualitativos, isto é sintoma de sua miséria.
Contudo, quais são as reais motivações de uma “crise” da educação jurídica? Certamente, as explicações são múltiplas. Ora aponta-se para problemas de ordem curricular, ora para problemas estritamente pedagógicos e/ou metodológicos. Tais explicações até podem ser parcialmente válidas, quando captam problemas mais aparentes do ensino jurídico; entretanto, não operam uma análise profunda das determinações últimas [não só de uma possível crise, mas principalmente] da própria educação jurídica em si.
É, nesse sentido, que o jurista, professor e filósofo Alysson Leandro Mascaro desponta como uma importante voz para a compreensão e transformação da educação jurídica. A sua pujança teórica e a potência de suas ideias desembocam na mais alta reflexão sobre o tema, ao passo em que o autor lança luzes sobre os próprios sentidos do direito e da sociedade, superando os limites formalistas e normativistas tão caros ao juspositivismo reinante na consciência jurídica hodierna.
A educação jurídica, em Alysson Mascaro, não é vista como produto do voluntarismo dos juristas e dos docentes, mas sim como reprodutora de uma manifestação estrutural das sociedades capitalistas: o direito. Desse modo, muito embora possua a educação jurídica espaços de deliberação interna, estruturalmente encontra-se jungida a questões de fundo muito mais amplas e complexas. Mascaro possibilita, nesse sentido, que se conceba a educação jurídica com base em suas determinações externas – sua relação com o direito e a sociedade –, em suas determinações internas – suas opções, propósitos e técnicas –, e em seus vínculos com a esfera institucional e regulatória[2]. As formulações de Mascaro, nessa perspectiva, ofertam aportes teóricos fundamentais ao entendimento dos caminhos da educação jurídica, posicionando-a na totalidade das relações sociais.
Para Mascaro, o direito enceta o preenchimento de um lugar específico no todo da vida social sob o modo de produção capitalista, de tal sorte que há uma qualidade exclusivamente jurídica das relações sociais[3]. O direito, nesse sentido, é ensinado precisamente a partir desta identificação do que seja jurídico, cuja natureza não é ocasional, mas se encontra entrelaçada à própria reprodução social capitalista. Institutos jurídicos, como o sujeito de direito, a autonomia da vontade, a obrigação contratual, não são frutos da elaboração conceitual de juristas, mas surgem dos vínculos sociais concretos da sociedade capitalista; são elementos capitaneados pela prática social do capitalismo. Tratando do pensamento marxiano acerca do direito, Mascaro expõe:
O direito não é um produto histórico do melhor aclaramento da consciência do jurista, nem tampouco da melhor elaboração dos conceitos. Na verdade, o direito se constitui pela necessidade histórica de as relações produtivas capitalistas estabelecerem determinadas instâncias que possibilitem a própria reprodução do sistema. Conforme as demandas capitalistas se impunham, os instrumentais jurídicos eram criados[4].
É, bem verdade, que existem conceitos secundários, que surgem no desenvolvimento da vida jurídica, como, por exemplo, a definição da maioridade civil em vinte e um ou dezoito anos. Contudo, o direito não é confeccionado, inteiramente, a partir da deliberação de legisladores e profissionais do direito. A legalidade é um desdobramento secundário da forma jurídica. O jurídico, em si, é específico ao capitalismo e imprescindível à permanência das relações de produção e das forças produtivas capitalistas[5]. De tal forma, a educação jurídica possui uma razão de ser que é reflexa à própria natureza do direito.
No entanto, afirma Mascaro, a derivação do direito e de seus institutos não opera em um plano lógico. Há lutas e conflitos que também intermediam essa derivação, razão pela qual o direito é repleto de confrontos com a estrutura das relações sociais das quais se origina. Precisamente por isto, as demandas e clamores sociais nem sempre correspondem às iniciativas do direito. Há um descompasso entre direito e sociedade que, inclusive, pode residir na própria educação jurídica. Mascaro exemplifica que, via de regra, quando se fala em crise da educação jurídica, o seu termômetro reside na apreciação da sua funcionalidade para a reprodução das relações sociais capitalistas. Isto é, mensura-se a qualidade da educação jurídica a partir do grau de satisfação dela às necessidades da reprodução social capitalista. Assim, estando o capitalismo em uma fase intervencionista, presume-se que o ensino do direito forme juristas aptos ao direito público. Se a economia se torna liberal, o ensino jurídico já não deve insistir em direitos sociais. Se o capitalismo passa dominar novos setores, espera-se que o ensino jurídico qualifique seus alunos para as demandas emergentes. De tal sorte, parece mesmo correto dizer que quando a educação jurídica se presta a ensinar e pensar o direito como métrica dos interesses da reprodução do capitalismo, está adequada.
As causas primeiras da estruturação do arcabouço jurídico derivam da lógica de reprodução das formações sociais capitalistas, portanto. Há, contudo, em um nível menos abrangente, a fixação de tessituras particulares do direito no entorno das relações sociais gerais. Conforme considera Mascaro, o jurista se depara com a sociedade e com o direito na forma de dados antepostos. Dessa forma, há uma externalidade estrutural da sociedade quanto ao direito e também uma externalidade derivada do direito em relação ao jurista, o que culmina em uma espécie de dupla externalidade: o direito é estruturado pela sociedade; e o jurista é estruturado pela sociedade e pelo direito. Cuida-se do que Mascaro chama de “externalidade secundária” ou “objetividade derivada”[6]. Tal conceito é importante para se compreender o fato de que os institutos jurídicos, embora não sejam obras advindas unicamente do pensamento, perfazem-se como objetos de constantes sistematizações, elaborações e contestações. Nesse processo situa-se a própria natureza da razão educacional do ensino: uma razão que é, em regra, funcional. O direito é maior que a atividade do jurista e o ensino do direito atrela-se, por consequência, a suas referências conservadoras. Por exemplo, a escolha das disciplinas ministradas, a bibliografia usada pelos docentes e a ênfase em determinados conteúdos e pontos em detrimento de outros demonstram que os marcos e referências de forja imediata da educação em direito possuem causas externas e sociais. As particularidades internas da educação jurídica, desse modo, são firmadas a partir do quadrante de constrangimento externo.
Partindo desses pressupostos, Mascaro se atenta ao papel da prática e do pensamento dos juristas na construção do caráter interno da educação jurídica. Para ele, também será certo afirmar que a educação do direito se completa por meio da edificação de um espaço interno, cujos modelos educacionais reproduzem-se a partir dos pressupostos internos da vida prática dos juristas e dos horizontes que postulam aqueles que ensinam e aqueles que são educados. O autor chama aqui atenção para um ponto nevrálgico: a constituição subjetiva dos juristas. O jurista também é bombardeado por valores, informações e horizontes de mundo que, em termos ideológicos, o atravessam. Assim sendo, os juristas agem no contexto de uma ideologia que os perfazem.
Nesse contexto, Mascaro afirma que as internalidades da educação jurídica se delineiam em dois planos. No primeiro plano, o plano interno formal, se observam aquelas opções no que tange à majoração ou preterição de determinadas disciplinas em detrimento de outras. Nesse quesito, observa-se um padrão de valorização das disciplinas de direito privado – o coração da reprodução social capitalista –, que é resultado também de um conservadorismo filosófico muito presente no pensamento jurídico. Além disso, a inserção profissional e os resultados obtidos em concursos também se fazem relevantes, nesse sentido. O autor nota que, comumente, o teor qualitativo dos cursos de direito avalia-se por índices de aprovação em exames e concursos, de sorte que os tópicos de concursos acabam por orientar o ensino jurídico.
No segundo plano, o plano interno existencial, Mascaro direciona especial atenção às relações, fatos e situações que são decisivos à reprodução do “tipo de vida jurídica pretendido”[7]. O autor demonstra que os horizontes profissionais e pessoais dos docentes e discentes, os seus adornos, vestimentas e modos de falar; o modo pelo qual os alunos se relacionam; o esvaziamento dos centros acadêmicos; a rejeição a conteúdos críticos e não-técnicos; e, até mesmo, a preferência a pontos de venda de alimentos e bebidas que a áreas de convivência de debate público nas universidades, são as fontes majoritárias de permanência e reprodução do conservadorismo na educação jurídica. Desse modo, a educação jurídica acaba por orientar-se à formação de um tipo de jurista específico: um jurista acrítico e técnico, despreocupado com virtudes como a honra ou a justiça social, e docilizado pela ordem de reprodução social vigente e pelos horizontes profissionais e econômicos médios. Com efeito, a educação jurídica brasileira “não tem outro horizonte a não ser justamente o de fornecer ao aluno os mecanismos intelectivos e práticos para que almeje sua estabilidade profissional como indivíduo de classe média”[8].
Aliadas às externalidades e internalidades da educação jurídica, as instituições universitárias, cujos objetivos sociais são concretos e específicos, exercem também grande impacto sobre a educação jurídica. Nessa perspectiva, Mascaro demonstra que, malgrado a existência de outras instâncias, ao lado das faculdades de direito, que operam como suportes à educação jurídica, como os cursinhos preparatórios para exames e concursos, pós graduações, cursos de extensões, mercado editorial jurídico etc., são as faculdades que ainda constituem o seu eixo principal. É na habilitação para o bacharelado e na preparação para o exercício profissional que se identificam os principais propósitos da qualificação da educação jurídica formal.
Ocorre que, ao longo dos séculos, dadas as próprias transformações do modo de produção capitalista, as faculdades de direito brasileiras passaram por grandes mudanças. A princípio, as faculdades de direito no Brasil eram instituições tradicionais, ligadas a elites nacionais e regionais, de tal sorte que, até as últimas décadas do século XX, as faculdades possuíam por horizonte ideológico de formação a perspectiva conservadora das classes que compunham seus quadros discente, docente e diretivo. É na virada do século XX para o século XXI, que uma série de alterações são carreadas na educação jurídica, na esteira das mudanças ocorridas nas correlações ideológicas, nas expectativas e nas funções operacionais de classe das faculdades de direito.
Para Mascaro, há três ordens de elementos que ensejaram tais mudanças. Em primeiro lugar, vê-se uma alteração no perfil econômico das profissões jurídicas. No campo da advocacia, há um aumento massivo da competição no mercado de trabalho. No campo das profissões públicas, a facilidade, remuneração e estabilidade dos concursos públicos orientam-se para além de uma pretensa honra intrínseca aos cargos almejados. Por conseguinte, consolida-se um processo de valorização do direito como um conjunto técnicas hábeis a proporcionar uma profissão remunerada.
Em segundo lugar, há transformações também no “mérito do conhecimento jurídico do operador do direito, do docente e do discente, o que envolve as novas fases da consolidação jurídica nacional, a saída de uma ditadura militar com uma nova Constituição, em 1988, e o próprio neoliberalismo”[9]. Para Mascaro, no campo do horizonte ideológico do jurista, verifica-se, de um lado, a despolitização das décadas de ditadura militar e, de outro lado, conforto gerado pela Constituição de 1988, que é tomada pelos juristas como um documento progressista, cidadão e democrático. Este quadro se agrava, ainda, com os efeitos causados pelos anos de neoliberalismo. A dinâmica internacional do capital, da mercadoria e das finanças constrange a política e o direito nacionais a abandonarem seus tradicionais papeis de regulação, em função de interesses moldados por padrões internacionais[10]. Dessa forma, há uma orientação à homogeneização internacional e à captura de agentes jurídicos e do poder judiciário, que resultam em profundas alterações na formação jurídica brasileira. Se, no passado, “o estamento jurídico […] adornava-se de uma cultura geral hermética e que se afirmava a partir de sua diferença para com o restante da cultura da sociedade”; no presente, malgrado o direito mantenha seus privilégios estamentais, os padrões neoliberais impõem um afastamento da “erudição gongórica e vazia do velho mundo jurídico para, em seu lugar, assentar um tecnicismo árido reputado profissional, sem maiores sofisticações intelectuais ou estéticas”[11]. Assim, os anos de ditadura militar minaram possibilidades de aprofundamento crítico. A ordem jurídica dada é tomada por eficaz, afinal o direito pós-constituição de 1988 é considerado bom e adequado. O neoliberalismo aprofunda o tecnicismo e o individualismo entre juristas. O conservadorismo do jurista contemporâneo, desse modo, sofre um reforço triplo.
Por fim, Mascaro aponta que a educação jurídica tem se transformado em um mercado[12]. Neste século, os cursos de direito tornam-se cada vez mais numerosos, sobretudo nas faculdades privadas. Enquanto em 1995, existiam cerca de 235 cursos de direito no Brasil, em 2017, este número subiu para 1.203 cursos, dentro os quais uma parcela de 86,7% corresponde a instituições privadas[13]. Mascaro (2013b) afirma que, pela facilidade de acesso e permanência que muitas instituições privadas fornecem, alunos de classes mais baixas acabam por encontrar nesses cursos uma escada para um pretenso sucesso profissional. Dadas as condições sociais e existenciais dos alunos, as instituições privadas tornam-se, por vezes, as únicas que ofertam meios suficientes ao ingresso no curso de direito e ao cumprimento dos estudos. Simultaneamente, instauram-se mudanças profundas no perfil das instituições mantenedoras das faculdades de direito. Os seus donos são indivíduos situados nas classes econômicas ou políticas dominantes, que se importam menos com glórias de satisfação pessoal no âmbito local e político que com a máxima extração de lucros. As faculdades de direito tornam-se negócios indiferentes, o que é um ponto central, que explica a própria decadência da qualidade do ensino jurídico. Afinal, os componentes curriculares passam a ser mais e mais baseados em avaliações e concursos; o conhecimento jurídico se esvazia mediante a proliferação de estudos, apostilas, resumos e métodos sistematizados de ensino e aprendizagem; alunos e professores tornam-se indistintos aos olhos das instituições; os alunos traduzem-se em meros clientes; a educação perfaz-se como prestação de serviços; e os professores são submetidos a salários e padrões produtivos adequados aos ritmos industriais de ensino. Se há crescimento quantitativo, de um lado; do outro, há desprezo pela qualidade do ensino.
Em sede de conclusão, é importante dizer que tais instrumentais teóricos consolidados pelo pensamento mascariano constroem fundamentos críticos imprescindíveis não apenas à compreensão do direito e da educação jurídica no Brasil, mas também a sua transformação. É certo que não há sentido em “disputar o direito”, uma vez considerado o caráter nuclear da forma jurídica no interior do capitalismo[14]. O direito, enquanto forma social capitalista, obnubila a natureza deletéria de um modo de produção essencialmente inóspito e exploratório. Contudo, é possível postular a construção de uma educação jurídica que permita aos estudantes e profissionais desenvolverem compreensões que tomem o direito na totalidade histórica e social, e que empreenda novas valorações e posicionamentos dos juristas frente à realidade social. Tomada em uma perspectiva crítica, a educação jurídica estaria direcionada não ao direito, mas ao justo, à “emancipação das condições sociais que geram a reprodução da exploração do próprio capitalismo”[15]. Em suma, a vivacidade das ideias de Mascaro acena à edificação de novos rumos para a formação jurídica, à necessidade de se sobrepujar os velhos marcos, referências e contornos do universo jurídico, e, mais que isso, à identificação do direito e da sociabilidade presente como “etapa a ser virada na história humana”[16].
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[1] Graduando em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Integrante do Grupo de Pesquisa “Crítica do Direito e Subjetividade Jurídica”, coordenado pelo Prof. Dr. Alysson Leandro Mascaro.
[2] MASCARO, Alysson Leandro. Sobre a educação jurídica. In: TAGLIAVINI, João Virgílio; SANTOS, João Luiz Ribeiro dos (Orgs.). Educação jurídica em questão: desafios e perspectivas a partir das avaliações. São Paulo: OAB-SP, 2013, p. 31-60.
[3] MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao estudo do direito. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2019.
[4] MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2021, p. 260.
[5] DAVOGLIO, Pedro. Forma jurídica e luta de classe. Revista Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e demcoracia, [S.L.], n. 42, p. 193-208, 2014.
[6] MASCARO, Alysson Leandro. Sobre a educação jurídica…, op. cit., p. 41.
[7] Ibid., p. 50.
[8] Ibid., p. 51.
[9] Ibid., p. 53.
[10] MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013a.
[11] MASCARO, Alysson Leandro. Crise e golpe. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 57.
[12] Nesse sentido, Vera Lúcia Jacob Chaves (O ensino superior privado-mercantil em tempos de economia financeirizada, in: CÁSSIO, Fernando (org.). Educação contra a barbárie. São Paulo: Boitempo, 2019) aponta que se trata de um fenômeno que tem ocorrido na educação como um todo. Segundo a autora, a transformação da educação em serviço lucrativo, na esteira da expansão do setor privado-mercantil no Brasil, é uma marca do capitalismo financeiro.
[13] OAB, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; FGV, Fundação Getúlio Vargas. Exame de Ordem em Números. Vol. IV. mar. 2020.
[14] DAVOGLIO, Pedro. Forma jurídica e luta de classe…, op. cit.
[15] MASCARO, Alysson Leandro. O direito como educador. México: CRÍTICA JURÍDICA, 2019, p. 5.
[16] MASCARO, Alysson Leandro. Política e crise do capitalismo atual: aportes teóricos. Rev. Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, 2018, p. 66.