Por Rômulo Caires
Diferente de outros marxistas, a categoria desenvolvimento desigual, que já aparece de forma assistemática nos escritos de Marx, tem para Lukács não apenas uma referência ao desenvolvimento econômico propriamente dito, mas refere-se a um quadro mais geral do desenvolvimento do ser social, em sua universalidade concreta, ou seja na perspectiva de um pensamento universalista que integra a heterogeneidade do ser como fundamento ineliminável.
I
Já fazem mais de 50 anos da morte de Gyorg Lukács e muitos ainda hoje discutem a relevância de sua produção intelectual. Em uma trajetória filosófica que segundo Lucien Goldmann atravessou toda a filosofia clássica alemã, de Kant a Hegel, até chegar no marxismo, Lukács encaminhou seu pensamento por múltiplas vias, quase sempre levando seus resultados até as últimas consequências, deixando por vezes transparecer descontinuidades abissais entre os diversos momentos de sua obra. Tal ensejo motivou muitos intérpretes a seccionar sua produção em diversas fases, trazendo muitas vezes o risco de perder de vista a unidade de seu percurso. Tal unidade tem sido atestada por aqueles que investigaram a totalidade de seus escritos e detectaram a recorrência de temáticas e a reelaboração de conceitos fundamentais, sem perder de vista o momento preponderante que a influência marxista ocasionou desde o que Lukács chamou de “seu caminho a Marx”.
Ainda que o Brasil seja reconhecido como um dos países do mundo onde mais se estuda a produção teórica do revolucionário húngaro, acreditamos que ainda pesa sobre tal recepção um certo desnível no que tange a fortuna crítica do que se convencionou chamar de “jovem Lukács” e o “Lukács maduro”. Ainda que seja decisivo para tal desnível de recepção o estado inacabado dos escritos que Lukács dedicou seus últimos anos de vida, consideramos que muitos dos obstáculos foram rompidos com as diversas traduções de “Para uma ontologia do ser social”. A ausência de grande interesse pela obra deve assim ser procurada em outras determinações. É patente, por exemplo, que mesmo transcorrida muitas décadas desde o seu surgimento, muitos dos argumentos utilizados para criticar o Lukács “tardio” se baseiam na crítica desferida pelos discípulos de Lukács da chamada “Escola de Budapeste”, crítica escrita no calor da leitura dos manuscritos, que em estado inacabado carecia de desenvolvimentos mais claros e reparos estilísticos. Apesar da análise da recepção luckasiana constituir tema de grande interesse, não será este o objeto que nos dedicaremos neste escrito. Elencamos a crítica dos discípulos de Lukács apenas para mostrar que mesmo pensadores ligados diretamente ao filósofo não contribuíram com uma leitura mais cuidadosa do resultado de seus esforços derradeiros. Caminharemos aqui na direção oposta à da que eles propuseram, objetivando trazer à luz a consistência teórica de algumas das grandes linhas do projeto luckasiano da Ontologia.
Para atingir tal objetivo pretendemos analisar mais detidamente a categoria de desenvolvimento desigual, relacionando a exposição desta categoria com outras categorias trabalhadas em Para uma ontologia do ser social e demais escritos referentes aos últimos anos de vida do filosofo húngaro, dando ênfase na atualidade de tais formulações para os debates contemporâneos sobre a crítica do desenvolvimentismo e debates sobre a especificidade da realidade brasileira e latino-americana, especialmente relacionados à construção de uma teorização materialista sobre a história. Diferente de outros marxistas, a categoria desenvolvimento desigual, que já aparece de forma assistemática nos escritos de Marx, tem para Lukács não apenas uma referência ao desenvolvimento econômico propriamente dito, mas refere-se a um quadro mais geral do desenvolvimento do ser social, em sua universalidade concreta, ou seja na perspectiva de um pensamento universalista que integra a heterogeneidade do ser como fundamento ineliminável. Mostraremos assim que Lukács, ao propor tal categoria consegue captar a historicidade processual da existência, não caindo no determinismo mecanicista e nem no relativismo historicista. O processo histórico aparece assim em seu movimento constituído e constituinte, com suas continuidades e descontinuidades, e o pensamento que apreende tal movimento não se assombra nem pela onipotência daquele que almeja produzir uma “teoria de tudo” e nem a impotência daqueles que veem a vida social como um amontoado de elementos caóticos, sem qualquer tipo de racionalidade imanente. Assim, Lukács nos oferece uma potente arma crítica contra a reificação capitalista em suas mais diversas modalidades, convocando uma subjetividade que não opera através da contemplação quietista mas se engaja na transformação do real.
II
Uma das peculiaridades da trajetória intelectual de Lukács dentro do marxismo está sua releitura do pensamento dialético, especialmente a matriz que germina na filosofia clássica alemã (Hegel em particular) e aos olhos de Lukács culminam na dialética materialista de Marx e Engels. Lembremos como tal resgate do ímpeto revolucionário da dialética estava distante do pensamento que hegemonizava o marxismo entre o fim do século XIX e parte do século XX, ambiente no qual Lukács se formou. No marxismo da II Internacional Marx aparece muito distante de Hegel e da categoria da totalidade, e seu pensamento aparece dividido em disciplinas apartadas, com ênfase na sociologia de talhe positivista (LUKÁCS, 2003). Tal perspectiva obnubilava o papel da práxis na constituição dos modos de sociabilidade, dando origem a um pensamento determinista e fatalista, que perdia de vista as especificidades dos diversos complexos que compõe o ser social. Lukács por outro lado sempre esteve interessado nas múltiplas mediações entre economia e cultura, como também nas relações entre ética e política.
Constituiu dessa forma um pensamento interessado em captar a determinação reflexiva entre lógica e história, sem se desviar no pensamento apriorístico característico do racionalismo formalista ou nas diversas vertentes do empirismo incapazes de generalizar os seus resultados. Segundo ele, a realidade para o empirismo “se fetichiza numa “unicidade” ou “singularidade” imediata, desprovida de ideias, que, por isso mesmo, muito facilmente podem se alçar à condição de mito irracionalista”. Tanto no racionalismo como no empirismo “relações categoriais ontológicas tão fundamentais como fenômeno-essência e singularidade-particularidade-universalidade são ignoradas no processo do pensamento, e por isso a imagem da realidade sofre uma excessiva homogeneização privada de tensões, simplificadora e, portanto, deformante (LUKÁCS 2012, p.370).” Visando uma terceira via entre racionalismo e empirismo Lukács resgatará a importância da ontologia para o pensamento marxista. Ele mostrará como é justamente a recusa do pensamento ontológico que aproximará as duas perspectivas criticadas anteriormente. A partir da influência do neokantismo e do positivismo, informada pelas conquistas das ciências naturais, é posto em marcha a dissolução, por exemplo, do conceito de substância em prol de teorizações cada vez mais orientadas em sentido gnosiológico. Lukács mostra que tais críticas às velhas concepções de substância do materialismo vulgar e do vitalismo biologicista são parcialmente acertadas, porém ao recusarem completamente o conceito de substância abrem mão de verificar as contribuições desse conceito para pensar questões de suma importância como a processualidade histórica. Nesse sentido afirma Lukács:
A substância, enquanto princípio ontológico da permanência na mudança, decerto perdeu seu velho sentido de antítese excludente em face do devir, mas obteve uma validade nova e mais profunda, já que o persistente é entendido como aquilo que continua a se manter, a se explicitar, a se renovar nos complexos reais da realidade, na medida em que a continuidade como forma interna do movimento do complexo transforma a persistência abstrato-estática numa persistência concreta no interior do devir. (…) E uma das consequências – de extrema importância para nosso problema atual – é que o conceito de substância não mais se encontra, como ocorria com a máxima nitidez em Espinosa, em contraposição excludente à historicidade. Ao contrário: a continuidade na persistência é, enquanto princípio de ser dos complexos em movimento, indício de tendências ontológicas para a historicidade como princípio do próprio ser.”. (LUKÁCS 2012, p.340-341)
Lukács ressalta que não basta apenas constatar a eternidade do movimento para especificar a concretude da historicidade. Não se trata apenas do simples movimento, mas de um movimento que se expressa a mudança numa determinada direção, que implica em transformações qualitativas tanto dos complexos em si quanto na relação entre os complexos. Com tais formulações Lukács resgata a partir do pensamento de Marx, uma genuína renovação do materialismo, que tem como ponto de partida não mais o átomo (à maneira dos velhos materialistas) nem tampouco o simples ser abstrato como aparece na Lógica de Hegel. Para Marx, segundo afirma Lukács, “todo existente deve ser sempre objetivo, ou seja, deve ser sempre parte (movente e movida) de um complexo concreto (LUKÁCS 2009, p.226)”. Esta perspectiva tem como consequência que o ser em seu conjunto é visto como um processo histórico. Além disso, as categorias desenvolvidas por Marx não são meros enunciados lógicos ou apontamentos do que é ou o que se torna, mas sim “formas moventes e movidas da própria matéria, formas do ser, determinações da existência.”
Esta grande virada no materialismo representada pelo pensamento de Marx deságua em uma concepção que trata a história não como coisa ou ente com existência própria, mas sim como o percurso das modificações das categorias fundamentais do ser. A tarefa fundamental de uma ontologia materialista tornada histórica é descobrir a “gênese, o crescimento, as contradições no interior do desenvolvimento unitário” (LUKÁCS 2009, p.239), é evidenciar que o ser humano é ao mesmo tempo produtor e produto da sociedade, algo mais que um simples exemplar de um gênero mudo, é ser social que emerge a partir do ser orgânico como uma diferenciação desta base originária. Nesta passagem de uma forma de ser mais simples para outra mais complexa verifica-se o que Lukács chamou de salto ontológico. Para Lukács “essa forma mais complexa é algo qualitativamente novo, cuja gênese não pode jamais ser simplesmente “deduzida” da forma mais simples.” (LUKÁCS 2009, p.227)
Nesse sentido, o pensador húngaro não nos oferece um tipo de filosofia da história como alguns críticos insinuam. Lukács na verdade constrói um pensamento que visa absorver as principais contribuições das ciências de sua época, não propondo assim uma via de desenvolvimento linear na qual o que vem posteriormente seria simplesmente um desdobramento deduzido do que veio antes. Dessa forma, não há um “mal de origem” que seria reproduzido no desdobrar do processo histórico, mas a constatação de que apesar do “novo” advir do “velho”, o salto que configura o novo traz em si as marcas do acaso. Não há e nem pode haver qualquer “necessitarismo”, como também não se trata do completo caos. A partir da emergência do novo é possível investigar as possíveis causas que possibilitaram que um determinado evento tenha ocorrido. O conhecimento tem assim um caráter post-festum, no qual um evento:
“mostrando-se indiscernível ou mesmo privado de sentido no imediato, insira-se com perfeição, no posterior conhecimento da trama causal que o produziu, no necessário decurso da história regido pela lei causal. Essa racionalidade não pode deixar de ser, como é óbvio, muito diferente da axiomática do racionalismo filosófico, uma vez que a afirmação da legalidade procede por caminhos bastante intrincados, tendo em vista o grande papel que tais caminhos deixam ao acaso.” (LUKÁCS 2012,, p.366)
Nessa via Lukács afirma o caráter aproximativo que o conhecimento tem em Marx, pois a própria realidade é constituída pela “infinita interação de complexos que têm relações heterogêneas em seu interior e com seu exterior”, não correspondendo a uma unidade dura e homogênea, mas sim uma síntese dinâmica de múltiplos componentes. Assim, a reflexão sobre tal realidade não é capaz de compor um quadro ou sistema fechado e isso ocorre não por qualquer deficiência ou incompletude do sujeito do conhecimento, mas pelo fato do próprio ser constituir-se como uma infinidade de fatores heterogêneos e objetivamente ativos, que interagem sem gerar como resultado nenhum tipo de sobreposição mecânica ou identidade entre os diversos complexos. Tal interação tem como consequência o fato de que as “leis só podem se afirmar na realidade apenas como tendências, as necessidades apenas como uma rede intrincada de forças opostas, apenas num processo de mediação, em meio a infinitas acidentalidades.” (LUKÁCS 2012, p.367). Essa estrutura do ser social não implica de modo algum a impossibilidade de conhecê-lo, mas indica o necessário caráter processual desse conhecimento, sempre incompleto e passível de correções, numa contínua necessidade de novas pesquisas e desdobramentos.
Uma consequência importante que podemos tirar desse resultado é que o desdobramento categorial do ser social ocorre a partir do que Lukács chamou, na esteira do próprio Marx, de desenvolvimento desigual. Antes de entrarmos na discussão dessa categoria é importante ressaltar que o primado ontológico do conhecimento e a crítica que Lukács oferece ao gnosiologismo hegemônico em nossos tempos não se funda na recusa abstrata de qualquer teoria do conhecimento. Para o filósofo o caminho da ontologia vai da realidade não conhecida que nos afeta para a cognição mais adequada possível. Os elementos investigados são obtidos a partir da análise dos complexos e são eles mesmos complexos dinâmicos. Para isolar um determinado complexo se faz necessário o uso de abstrações que visam compreendê-lo em sua dinâmica e estrutura, que são também a da realidade propriamente dita. Neste caso, a abstração “é apenas uma forma de espelhamento da realidade, mediante a qual podem ser compreendidos processos abrangentes, que forçosamente permanecem incompreensíveis em sua complexidade imediata (LUKÁCS 2012, p.148).” Porém, mesmo que os conteúdos da realidade e do espelhamento sejam os mesmos, pois há uma interatividade entre subjetividade e objetividade, se tratam de momentos diversos. Segundo Lukács “um abismo separa a homogeneidade mimética da heterogeneidade da realidade existente em si, e esse abismo é justamente o ser de uma e a essência mimética da outra”. Tal diferença entre o concreto da realidade e o concreto pensado impede que o pensamento seja apenas uma cópia passiva da realidade ou que a gênese do pensamento se identifica com a própria gênese real. Além disso, a escolha das abstrações não se dá por mero arbítrio subjetivo, mas são colhidas na própria realidade e necessitam depois ser dissolvidas e concretizadas.
III
Retornando à categoria de desenvolvimento desigual, Lukács a vê como uma via fundamental para entender a processualidade histórica de forma não teleológica e linear. No mínimo desde suas investigações em “O jovem Hegel” Lukács apontava, citando Hegel, que o processo histórico sempre vai além das ideações de cada sujeito individual. Tal formulação ganha uma maior concretização em “Para uma ontologia do ser social” justamente com a categoria de desenvolvimento desigual. Tratando da questão do desenvolvimento econômico o filósofo húngaro nota que nesse desenvolvimento podemos notar a presença de três orientações evolutivas que se realizam ainda que de forma desigual. Primeiramente podemos elencar a tendência constante no sentido de diminuição do tempo de trabalho socialmente necessário para a reprodução do ser humano. Em segundo lugar observamos que:
“esse processo de reprodução tornou-se cada vez mais nitidamente social. Quando Marx se refere a um constante “recuo das barreiras naturais”, pretende indicar, por um lado, que a vida humana (e, portanto, social) jamais pode desvincular-se inteiramente de sua base em processos naturais; mas, por outro, quer mostrar que, tanto quantitativa quanto qualitativamente, diminui de modo constante o papel do elemento puramente natural (quer na produção, quer nos produtos) e que todos os momentos decisivos da reprodução humana – basta pensar em aspectos naturais como a nutrição ou a sexualidade – acolhem em si, com intensidade cada vez maior, momentos sociais, pelos quais são constante e essencialmente transformados (LUKÁCS 2012, p.237-238).”
Por último, temos que o desenvolvimento econômico intensifica as ligações entre os diversos seres humanos que vivem no planeta, criando laços genéricos antes impossíveis. Fatos econômicos como o predomínio cada vez mais marcante do mercado mundial sinaliza uma unificação da humanidade, ainda que apenas em termos econômicos. Tal linha de desdobramento do ser social se efetiva a partir de múltiplas contradições e o caso do mercado mundial, por exemplo “gera para a vida dos homens e dos povos os mais graves e ásperos conflitos”. Lukács postula assim o reconhecimento objetivo do desenvolvimento, que apesar de se efetivar de forma não-linear e prenhe de contradições e ser postulado apenas post-festum, ou seja, não constitui um ideal valorativo ou normativo a ser perseguido, indica na verdade uma possibilidade concreta ou tendência inscrita no próprio real. Assim, quando Lukács postula o desenvolvimento desigual como uma lei do processo histórico, ele na verdade está falando de um tipo de lei de caráter tendencial.
O caráter tendencial da lei do desenvolvimento desigual “não pode deixar de ter uma validade concretamente delimitada em sentido histórico-social, uma validade historicamente determinada (LUKÁCS 2012, p.360)”. Como exposto anteriormente, Lukács não postula uma oposição entre legalidade e historicidade, mas indica que são formas estreitamente interligadas de uma realidade determinada, cuja essência é formada por complexos heterogêneos, movidos também de forma heterogênea, que se unificam em uma realidade sem perder as suas especificidades. Assim, não faz sentido para o filósofo húngaro postular que em Marx haveria uma imagem de mundo mecânico-fatalista. Há um espaço ineliminável no marxismo para o papel do acaso, que se apresenta sob formas variadas, como “desvio da média, ou seja, como dispersão nas leis estatísticas, como relação heterogênea-casual entre dois complexos e suas legalidades etc (…) De fato, nelas um múltiplo papel do acaso está ineliminavelmente dado (LUKÁCS, p.360)”. Lukács chega até a dizer que não seria difícil admitir que quanto maior a quantidade de ramificações e mediações que um indivíduo tiver diante de si ao executar o seu pôr teleológico maior será o papel do acaso.
As leis são também tendenciais pois além do acaso ineliminável há sempre a presença de contra-tendências que operam na realidade e modificam a efetivação de determinada lei. Nesse contexto não cabe postular nenhuma determinação unilateral, por exemplo, da economia nos outros momentos do ser social, mas compreender a forma particular de como a economia se relaciona com os outros momentos em um determinado período histórico específico. Notemos por exemplo, que o predomínio do momento econômico sobre os outros momentos da sociabilidade humana é específico do modo capitalista de produzir a vida. É somente na sociedade capitalista onde constatamos a existência de um sujeito automático chamado valor que, para usar a metáfora constantemente usada por Marx, suga a substância viva dos trabalhadores para continuar se reproduzindo. Em períodos anteriores da história o momento econômico, apesar de se manter enquanto pressuposto ineliminável, não possuía a mesma preponderância.
Nesse sentido, pensar o desenvolvimento desigual não é meramente apontar a diferença de poder econômico entre, por exemplo, diversos Estados-Nação, é na verdade a afirmação de que não há uma identidade entre, por exemplo, desenvolvimento econômico e desenvolvimento artístico, que tais termos nomeiam complexos distintos, com suas especificidades e que não são comensuráveis de forma imediata. Dessa forma, coloca-se para o pesquisador a necessidade de investigar concretamente os diversos complexos, estudar as vias que cada um deles se desenvolveu, sem perder de vista as conexões e relações que esses complexos mantêm entre si. Defender tal concepção de desenvolvimento não é por isso igual a defender o desenvolvimento do capitalismo. A história da dita ciência econômica é fértil de concepções que defendem o progresso de forma linear, com modelos apriorísticos a serem aplicados independentemente do local onde tal capitalismo se desenvolveu. Mesmo entre os marxistas não foi raro e até hoje se mantém presente a aplicação de modelos para a análise de realidades distintas. Na contramão de tal tendência, ao pensar o desenvolvimento desigual Lukács também está apontando a necessidade de investigar os distintos modos ou as distintas vias na qual o capitalismo se desenvolveu em cada país específico. Por essa lente não é admissível que a realidade brasileira seja desconsiderada em suas particularidades para defender supostos modelos universais de análise.
A universalidade concreta que Lukács postula não é um ponto de partida imediatamente dado mas se inscreve enquanto movimento de superação da realidade atual. Tal qual Marx, Lukács enxergou no capitalismo o primeiro modo de produzir a vida no qual o ser humano se torna consciente da sua capacidade de pôr os seus próprios pressupostos e capaz também de modificar radicalmente a sociedade em que vive. O mesmo modo de produzir a vida que nos ameaça da destruição completa traz como gérmen o horizonte de libertação da humanidade. Lukács nunca positivou o capitalismo e para constatar isso basta lembrarmos como ele disse nos anos finais de sua vida: “o pior socialismo é melhor do que o melhor capitalismo”. Nesta frase não há como se pode aparentar nenhum rebaixamento dogmático dos horizontes de transformação social. O que ocorre é que Lukács sempre teve consciência da impossibilidade de o capitalismo continuar existindo sem sugar a última gota que nos resta. Ele sempre apostou como resposta para tal dilema a revolução social. Porém, Lukács ainda é atual, mesmo mais de 50 anos depois de sua morte, porque sabia que não bastava a aplicação de modelos prontos para responder os enormes desafios de nosso tempo. As repostas de nosso tempo seremos nós que descobriremos.
REFERÊNCIAS
LUKÁCS, G. História e Consciência de Classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
___________ As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. In: O Jovem Marx e Outros Escritos de Filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009
___________ Para uma Ontologia do Ser Social I. São Paulo: Boitempo, 2012.
1 comentário em “Lukács e o desenvolvimento desigual”
Parabéns Prof. Romulo pelo panorâmica abordagem.
Ela possibilitou-me uma percepção do pensamento de Lukás necessária frente ao ‘gnosiologismo hegemônico’ – como nomeia – dos tempos atuais.
Breve estará nas mãos de meus alunos e amigos próximos, que compartilham o prazer da leitura de textos bem construídos.