Por Vinicius Souza
Uma das questões mais urgentes que se revelam nas tarefas da esquerda que se pretende radical é, sem dúvidas, dentro do campo das ideias, a batalha pelo caráter da história nacional e o papel dos de baixo dentro dessa história. Neste sentido, a Editora Dandara, um grupo editorial independente dentro do movimento negro, tem coordenado a republicação de importantes obras de um dos maiores lutadores desta batalha, Clóvis Moura.
Não é exagero dizer que, desde a sua primeira publicação em 1959 [1], ao revolucionar a historiografia social do negro, revolucionou o campo da Teoria da História no Brasil. A grande questão do pensamento mouriano é, sobretudo, as tensões entre as classes sociais que vieram a formar o país – escravizados e senhores, e a ação de luta pela reafirmação da sua condição de humano por parte dos primeiros.
A obra “Os Quilombos e a rebelião negra”, relançada recentemente pela Dandara, é mais um dos vários esforços do autor nessa batalha para trazer a luz, não só a formação social da desigualdade brasileira, mas também a formação histórica das lutas revolucionárias do povo brasileiro a partir da luta dos escravizados. O ponto central que o debate suscita é a necessidade da ação de luta para a defesa e reafirmação da humanidade dos escravizados por parte dos próprios escravizados e como tal fator foi constante na história do modo de produção escravista e, mais do que isso, essa luta foi fundamental para a própria formação social do Brasil. É uma afirmação extremamente usual e, até mesmo, panfletária (e verdadeira!) aquela que diz que é a história que nos humaniza.
A afirmação é dotada de conteúdo e verdade, no entanto, para que cumpra um papel mais profundo de mediação entre as ideias e a realidade material, é preciso dizer – mais do que o papel humanizador que a história em si tem, o que humaniza os oprimidos e condenados da terra [2] é, nestes termos, necessariamente, a história da luta destes grupos pelo reconhecimento da sua humanidade. Reconhecimento esse que só vem por um meio possível, a luta, que para os grupos historicamente explorados e oprimidos pelo projeto das elites que é o Brasil, é como a condição de respirar. Uma vez que a humanidade de um sujeito só existe a partir do reconhecimento do outro, condição imperante ao caráter humano de “seres sociais”, sendo assim, através do outro é que somos reconhecidos publicamente como humanos, para além da nossa consciência que existe para si.
Ao passo em que a humanidade do escravizado é negada pelo senhor, ou seja, o reconhecimento, inerente à vida social lhe é negado, o escravizado entra no movimento de imposição de tal reconhecimento. No mundo material, esse reconhecimento é, por sua vez, a luta pela transformação da sociedade que cria as condições para que essa negação exista [3]. Essa luta de imposição desse reconhecimento, pela ruptura e transformação profunda das coisas como elas são, esse é o ponto de defesa de Clóvis Moura em “Os Quilombos e a rebelião negra”; combater determinada historiografia hegemônica e da ordem [4], que cumpre um papel fundamental para a manutenção das desigualdades, profundamente, estruturadas na sociedade brasileira, ao negar a ação transformadora do negro ao longo da história brasileira, conformando assim a tese da democracia racial que mais do que uma negação do racismo brasileira e a formação social violenta do país, funcionando como uma forma de ocultar e amenizar as contradições sociais e manter a ordem vigente [5].
O papel do livro de Clóvis Moura se mostra ao dia reafirmando o papel do negro na luta em nome do reconhecimento da sua humanidade por parte do que veio a ser o Brasil. Usando do que Marcuse chama do direito a violência em nome da libertação, o direito de se libertar [6], o negro dedicou a vida à liberdade, seja nos quilombos, nas revoltas urbanas e nos campos, nas irmandades negras, nas rodas de capoeira, nas pequenas e grandes sabotagens, assassinatos de senhores.
O que Clóvis Moura faz, e com muito sucesso, mostra que a rebelião negra e que os quilombos são a história brasileira acontecendo de fato, sem amores positivistas. O livro de Moura cria a possibilidade, além do mais, de compreensão para o papel do negro na história brasileira hoje, se na escravidão via a quilombagem se opunha a ordem social, hoje a partir dos movimentos sociais e da luta pela superação do racismo como instrumento de mediação e manutenção da sociedade capitalista.
Dentro das concepções marxistas é possível dizer mais – Quilombos e a rebelião negra é uma carta aberta em defesa da existência da história brasileira!
Sobre o autor
Vinicius Souza é Professor de História e especialista em Direitos Humanos pelo CAAF-UNIFESP.
Notas
[1] MOURA, C. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. 5. ed. São Paulo: Fundação Maurício Grabois e Anita Garibaldi, 2014.
[2] FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
[3] FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
[4] MOURA, C. Sociologia do negro brasileiro. Editora Ática: São Paulo, 1988.
[5] FARIAS, M. Clóvis Moura e o Brasil. São Paulo: Editora Dandara, 2019.
[6] MARCUSE, H. The Problem of Violence and the Radical Opposition. University of West Berlin, 1969